terça-feira, 30 de novembro de 2021

A NOIVA DO ARISTIDES

A imprensa informou que na manhã do dia 27 ou 28 de novembro de 2021 (sábado? domingo?) o presidente da república estava à margem da movimentada Rodovia Dutra, no município de Resende/RJ, acenando para as centenas de pessoas que por ali trafegam com seus veículos de passageiros e de cargas, quando a passageira de um dos carros o xingou de filho da puta e de noivinho do Aristides. 
Nessa região, localiza-se a Academia Militar das Agulhas Negras – AMAN, onde Jair estudou, formou-se oficial do exército e tinha sessões de judô com Aristides, sargento instrutor. 
O judô caracteriza-se pelo agarramento entre dois praticantes, ambos de quimono, cada qual tentando derrubar, dominar e finalizar o outro. A luta começa em pé e acaba no chão. O toque dos corpos pode, ocasionalmente, provocar a libido, despertar a sensualidade, a paixão carnal, se houver empatia ou atração física entre os contendores. Nas atividades esportivas é comum treinadores transarem com seus pupilos e pupilas. Às vezes, há namoro e até casamento.  
O episódio de sábado, ou domingo, trouxe à luz do dia o namoro do cadete Jair com o sargento instrutor. Isto explica o apelido “Noivinha do Aristides”. O cadete era mais novo do que o sargento. A revelação desse apelido traz luz também à fobia do presidente, sem necessidade de apelar a Freud. 
O presidente encontrava-se em local público, fora das atribuições do cargo, acenando aos passantes em demagógica postura, servindo-se de bens e funcionários públicos naquela particular e extemporânea campanha para se reeleger. Ao ordenar a prisão da ofensora, ele mexeu no vespeiro. Teria sido melhor para o segredo presidencial, que a polícia rodoviária federal tivesse permanecido onde estava e não saísse em perseguição da mulher. Perseguida como se fora bandida, ela foi presa em flagrante e conduzida à delegacia da polícia federal de Volta Redonda/RJ. Ao ser lavrado o boletim de ocorrência, foram anotados os termos injuriosos. Depois de assinar o compromisso de comparecer aos demais atos do inquérito policial e da ação judicial, a ofensora recuperou a liberdade. 
O episódio trouxe à tona o teor, o significado e os motivos do xingamento. No que concerne ao palavrão, parece que houve a intenção de ofender, embora em diversas ocasiões, no estádio de futebol, no bar, na roda de amigos, no ambiente doméstico, seja usado de maneira cordial ou amistosa. Quanto ao noivado homossexual, parece estar mais para caçoada, jeito brasileiro de fazer gozação. 
Da ligeireza da polícia em mostrar serviço ao presidente da república resultou escândalo. Desenterrou-se aquilo que acontecera na AMAN há 48 anos. Aliás, Jair gosta muito de visitar essa academia, conforme se depreende das suas andanças. Parece que ele sente muita saudade do antigo ninho.  
Na conduta, nas mensagens e nas manifestações públicas do presidente, nota-se exagerada preocupação em demonizar a homossexualidade. Ele faz questão de alardear que é macho. Sente necessidade de declarar publicamente que certa manhã transou com a esposa, sinal de que ele passa muito tempo sem incomodá-la. Gosta de mostrar que manda e o general obedece; que estupra mulher, desde que seja bonita; que só gera macho; que a filha foi uma “fraquejada”. Ele também gosta de exibir gestos e atitudes significativos de valentia e coragem. Evidencia a intenção de impressionar o público, de mostrar que é capaz de metralhar os seus adversários, ou de atingi-los com tiros de revólver. Toda essa “forcejada” de barra seria desnecessária se ele fosse realmente o que diz ser.  Isto lembra trecho da canção letrada por Vinicius: o homem que diz sou/ não é / porque quem é mesmo/ não diz
Quem está seguro da própria heterossexualidade não necessita dessas extroversões, exibir armas, falar grosso, cavalgar, pilotar motocicleta, como se fosse protagonista de filme de ação e aventura. 
Quem é honesto consigo mesmo não necessita esconder o fato de ter se deitado com um parceiro. Espartanos, considerados excelentes guerreiros, deitavam-se uns com outros. Filósofos atenienses não escondiam a sua preferência por rapazes. Antes da moral cristã, lesbianismo e pederastia eram comuns e socialmente aceitos em Roma. No vigor da moral cristã, no Ocidente, em conventos, seminários, internatos e presídios, as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo são frequentes e costumeiras, embora nem sempre divulgadas.
Destarte, se o presidente saísse do armário, provavelmente mais ganharia do que perderia votos. Aplacar-se-ia o seu ódio contra homossexuais e mulheres. Livrando-se do ranço, ele poderia ser feliz. 
  

domingo, 28 de novembro de 2021

CRIMES POLÍTICOS

O movimento popular em São Paulo (2013), a operação lava-jato em Curitiba (2014), o golpe de estado em Brasília (2016), a prisão do ex-presidente e as condutas ilícitas dos novos presidentes da república (2016-2021), trouxeram à balha o conceito e a tipificação do crime politico e a aplicação da pena correspondente.  
Num amplo sentido, crime consiste na ação e na omissão dolosas ou culposas contrárias às regras éticas e às regras jurídicas. As regras éticas, escritas ou não, emanam das convenções sociais e dos valores difusos e têm força persuasiva desprovida da ameaça de violência. A aplicação de algum castigo é facultativa e obedece aos desígnios da sociedade e à consciência coletiva. 
As regras jurídicas (mínimo ético imprescindível) emanam dos fatos e dos valores de maior relevo para a pessoa, para a sociedade e para o estado e são formalizadas pelo legislador. Se forem violadas dolosa ou culposamente, o consequente castigo é obrigatório. A aplicação cabe ao estado, que dispõe do monopólio da força física para manter a ordem e fazer cumprir as leis. 
No avanço da civilização, a vingança instituída substituiu a vingança pessoal. O castigo pelo mal praticado por alguém virou tarefa do estado. A justiça pelas próprias mãos entrou para a esfera do ilícito. A legítima defesa entrou para a esfera do lícito. A vítima suplica ao estado: justiça! Critérios científicos, morais e religiosos foram estabelecidos para avaliar a gravidade do mal e calcular o quantitativo da pena. 
A fim de garantir a liberdade individual, a ação e a omissão dolosas e culposas tratadas como crimes puníveis pelo estado, devem ser descritas previamente e de modo claro e preciso no texto legal. Incide o princípio de direito: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem previa cominação legal”. Nullum crimen nulla poena sine praevia lege
Ao cominar penas aos transgressores, a lei tem por escopo a proteção dos bens e valores tutelados pelo direito, tais como: vida, saúde, honra, dignidade, verdade, liberdade, igualdade, justiça, paz, trabalho, patrimônio, segurança, família, bem-estar, meio ambiente, democracia, soberania, cidadania. Destarte, o crime pode ser de natureza política, social e econômica. Os motivos de quem o pratica variam: nobre (eutanásia), torpe, fútil, pecuniário, passional, ideológico. 
As vítimas do crime de natureza política são: o cidadão, a sociedade e o estado. Como povo, governo e território são os elementos constitutivos do estado, a ação e a omissão dolosas e culposas que lhes provocam dano ou que os colocam em perigo, classificam-se como crimes politicos. Compete ao legislador ordinário descrever as ações e omissões consideradas crimes politicos. A referência a esses crimes na Constituição da República (CR/1988) é genérica, sem definição do tipo penal. Portanto, ninguém pode ser processado com base exclusiva no seu artigo 109, IV, que é precipuamente regra de competência. 
Os crimes politicos devem ser garimpados no Código Penal e nas leis esparsas como (i) a 14.177/2021 sobre segurança nacional (ii) a 1.079/1950 sobre responsabilidade do presidente da república, dos ministros, inclusive os do supremo tribunal, do procurador-geral da república, dos governadores e secretários dos estados (iii) o decreto-lei 201/1967 sobre prefeitos e vereadores (iv) a lei 2.889/1958 sobre genocídio (v) a 4.898/1965 sobre abuso de autoridade (vi) a  8.176/1991 sobre ordem econômica. Leis complementares, leis ordinárias e decretos-leis não revogados expressamente por leis posteriores, são recepcionados, total ou parcialmente, pela CR/1988. A extensão desse recebimento deve ser examinada caso a caso. 
A competência para o processo e julgamento dos crimes politicos passou da Justiça Militar para a Justiça Civil. Há crimes politicos conexos aos crimes comuns. Alguém, por exemplo, obtém fundos mediante assalto a banco (crime comum) para financiar movimento rebelde contra o governo (crime politico). Segundo a CR/1988, a competência para o processo e julgamento pode ser do Legislativo (crimes politicos) ou do Judiciário (crimes comuns e politicos). Compete ao Judiciário decidir, no caso concreto, em derradeiro grau de jurisdição, sobre a constitucionalidade dos procedimentos.   
A materialidade e a autoria do crime são provadas mediante confissão, testemunho, documento e/ou perícia. Geralmente, nos crimes comuns, instaura-se inquérito policial a fim de obter provas e instruir a denúncia a ser oferecida pelo ministério público (MP). O inquérito policial é dispensável: [I] quando às mãos do MP chegam documentos idôneos e suficentes para provar a materialidade e indicar a autoria do delito [II] quando ha inquérito parlamentar. 
Em havendo inquérito parlamentar não se há de falar em inquérito policial sobre os mesmos atos e fatos. Seria um injustificável bis in idem, explicável apenas como chicana, expediente protelatório para evitar ou retardar a ação penal. Autonomia nao se confunde com soberania. A autonomia do MP está condicionada à soberania do Poder Legislativo. O inquérito policial, na hipótese em tela, significaria capitis deminutio à autoridade soberana do Congresso Nacional. Se a materialidade e a autoria do delito estiverem provadas, o MP tem o dever funcional de propor a ação penal com base no inquérito parlamentar sem mais delongas. 
Ao MP é defeso arquivar ou engavetar inquérito parlamentar. Não lhe cabe também decidir sobre culpabilidade, pois, tal decisão compete ao magistrado no bojo do devido processo judicial. Constatada a protelação do MP, cabe a qualquer cidadão (de preferência parlamentar) com fulcro no inciso LIX, do artigo 5º, da CR/1988, oferecer denúncia perante o Judiciário contra o autor do crime apurado no inquérito parlamentar. Quanto ao chicaneiro agente do MP, ele poderá ser processado criminalmente por omissão dolosa.  
   


domingo, 21 de novembro de 2021

O BENFEITOR

Melchiades, parentes e amigos abreviavam seu nome para Mel, residia num bairro afastado da cidade, atmosfera rural, paisagem bucólica. Exercitava-se no quintal aproveitando o frescor da manhã quando vê passar pela rua de chão bruto, endereço da sua casa, jovem mulher. Tênis nos pés, bermuda e camiseta no corpo, ela caminhava e falava sozinha. Certamente, não estava no seu juízo perfeito e precisava de ajuda. Assim pensando e preocupado, Mel, descalço e vestindo apenas calção de ginástica, saiu pelo portão no intuito de interceptá-la, mas, ao se aproximar, prestativo e cauteloso, depois de observar ligeiramente as panturrilhas bem definidas, os glúteos fírmes e os seios empinados da moça, notou que ela segurava alguma coisa junto ao ouvido direito. Era um pequeno telefone sem fio. Mel sentiu alivio e frustração simultaneamente. Aliviado ficou, porque a moça falava com alguém e não sozinha. Portanto, não era maluca. Frustrado, por perder a oportunidade de praticar a sua escoteira boa ação do dia. 
Na opinião de Mel, juramento de escoteiro vale por toda a vida. Já entrando nos quarenta anos de idade,  ele ainda se via de uniforme bege, calça curta, cinto de fivela redonda e de encaixe, cantil nele pendurado, meia grossa e cinzenta até o joelho, mindinho e polegar juntos na palma da mão direita, três dedos unidos e esticados encostando na aba do chapéu semelhante ao da polícia montada canadense, em posição de continência, a saudar a bandeira nacional: “sempre alerta”.   
Na esperançosa tentativa de agarrar aquela oportunidade, prestes a escapar, e no intuito de exibir a bondade do seu coração e a sua humana solidariedade, Mel levantou dúvida que lhe pareceu conveniente e sensata: o aparelho podia estar desligado. Neste caso, a moça precisaria de ajuda. Ligado ou desligado, eis a questão. Como verificar? “Psiu, moça! Um momento aí! Posso examinar o seu telefone para ver se está funcionando”? Alternativa: “Posso usar o seu telefone? O meu está sem bateria e preciso ligar para a minha mãe antes que ela seja hospitalizada. Eu sou filho único e solteiro, ela necessita da minha atenção”. 
Desolado, cabeça baixa, braços caídos paralelos ao tórax, Mel conclui: no fim e provavelmente, eu é que irei parecer maluco, saindo desse jeito, sem banho, barba por fazer, magro, alto, pernalta, gesticulando e pedindo para telefonar. A moça poderia pensar, inclusive, que eu estava a lhe dar uma cantada. A minha boa intenção seria mal interpretada. Eu estava até disposto a convidá-la a entrar na minha casa, servir-lhe chá enquanto o médico e os enfermeiros não chegassem. Ela poderia descansar no sofá da sala ou na cama do quarto de hóspedes. Para maior conforto, ela poderia descalçar os tênis, tirar a bermuda e a camiseta e se deitar. Respeitosamente, eu a cobriria com lençol branco e limpo. 
A voz da experiência intrometeu-se no monólogo de Mel: “Nem sempre falar ao telefone desligado é maluquice. Pode haver algum propósito nisto”. 
Como assim?  Irritado, Mel interpela a voz intrometida, chata e desmancha prazeres. A resposta da voz foi imediata: 
“Simples, meu caro”. Pelo tom irônico, a voz parecia estar se divertindo às custas dele, menosprezando a sua inteligência e debochando da sua honesta iniciativa. Há pessoas que gostam de humilhar a si próprias, penitentes inveteradas. A voz intrometida parecia supor que estava se dirigindo a uma pessoa desse tipo. Prossegue: “A pessoa finge que está falando ao telefone para enganar, para se livrar de alguém ou de situação indesejável, ou para impressionar o público, passar a imagem de pessoa importante. Esse fingimento também é usado para fins artísticos em cenas de teatro, cinema, televisão. O ator, ou atriz, simula estar conversando ao telefone com outro protagonista”.   
A réplica de Mel foi na bucha:  Escute aqui, voz intrometida. Você está vendo aqui alguma vagoneta sobre trilhos com equipamento de filmagem e cinegrafista? Você está vendo aqui na minha rua alguém filmando essa moça? Não? Então, não se intrometa onde você não foi chamada! A boa ação escoteira é minha, desinteressada, até mesmo cristã, inspirada na doutrina de Jesus, no propósito de amar e ajudar o próximo. Só porque a moça tinha dourados cabelos que brilhavam sob a luz solar, claros e verdes olhos, nariz afilado, lábios carnudos, quase mais bonita do que Angelina Jolie, você acha que eu me intimidaria e deixaria de lhe prestar auxílio? Você está muito enganada!  
A voz da experiência deu um muxoxo de incredulidade e desdém. Mel não gostou nem um pouquinho. Aborrecido, desistiu do seu intento beneficente. Sozinho e solteiro, entrou em casa e preparou o café matinal. 


segunda-feira, 15 de novembro de 2021

REPÚBLICA

A palavra república tem origem latina: res publica. Significa coisa pública, o que é da propriedade e do interesse de todos os membros de uma comunidade. Na esfera política, os romanos referiam-se ao status rei publica, ou seja, ao estado da coisa pública, dos negócios de geral interesse do povo (independência + soberania + cidadania + ordem + progresso + bem-estar + segurança + direitos e deveres). O estado republicano opõe-se ao estado monárquico. Significa que o estado republicano é patrimônio da nação, do povo, do conjunto de cidadãos; que o chefe de estado republicano não é o seu proprietário e sim o seu zelador e administrador; que o chefe de estado, os ministros, os secretários, os legisladores e os magistrados têm que zelar pelo bem comum, pela manutenção e integridade do bem público, seja sob governo aristocrático (da elite, como o de Fernando Henrique), seja sob governo demagógico (da massa popular, como o de Luiz Inácio). 
No Brasil e em outros países, o estado republicano tem sido tratado como República, simplesmente. Antes de ser república, o Brasil, após a independência política, foi um estado monárquico sob a dinastia Bragança (1822/1889). O estado era tratado como propriedade particular dessa família. O primeiro imperador dissolveu a primeira assembleia constituinte ante os ardores republicanos de alguns deputados. Outorgou a primeira carta constitucional à nação brasileira de acordo com a sua vontade e manteve a realeza e a nobreza superiores ao povo (1824). Decorridos 65 anos dessa outorga, os oficiais militares de alta patente golpearam o estado monárquico, derrubaram o imperador e se instalaram no governo (1889). O povo ficou alheio a esse movimento político da caserna, estupefato com a queda e o exílio do seu estimado imperador. 
Na data de hoje, 15 de novembro, comemora-se a proclamação da república. Aquele evento histórico nos vem à lembrança. No curso destes 132 anos (1889/2021) a república brasileira já alternou democracia e autocracia algumas vezes. Tanto nos períodos democráticos como nos períodos autocráticos, o autoritarismo tem sido frequente no proceder dos chefes de estado, ministros, legisladores e juízes, como se tal conduta fosse ditada pelo DNA de quem exerce o poder político nesta república.           


domingo, 7 de novembro de 2021

SURUÍ

A voz de uma índia brasileira retumbou no alvorecer da 26ª Conferência da Cúpula para Mudança do Clima (COP26) em Glasgow, Escócia, 1º/11/2021. Txai Suruí, 24 anos de idade, estudante de direito, ocupou a tribuna para, em inglês, denunciar o desmatamento da Amazônia, salientar a importância da floresta para a vida dos indígenas, pedir a imediata execução das medidas protetivas. Ela foi ouvida com atenção e respeito por líderes mundiais. A essa moça de pequena estatura física e de grande estatura moral coube representar o Brasil. 
Descubro agora, depois de viver mais de 80 anos, que Suruí é o nome de uma nação indígena. Antes, para mim, suruí era só o nome da farinha de mandioca moída que, na infância, eu e meus irmãos misturávamos ao feijão no prato, cobríamos com arroz, juntávamos a carne e seu delicioso molho, sob o atento e afetuoso olhar da nossa mãe, olhos castanho-escuros que pareciam sorrir de satisfação. À nossa mesa jamais faltou comida, apesar da pobreza. A imagem daquela índia a discursar lembrou-me das índias avós dos meus avôs, uma do Norte e outra do Sul do Brasil. Essas raízes talvez expliquem a minha sensibilidade em relação à causa indígena.
Em 1980, o cacique xavante Mario Juruna pretendia comparecer ao fórum internacional das comunidades indígenas no Tribunal Bertrand Russell em Roterdã, Holanda. O governo brasileiro impediu a sua saída do país sob o argumento de que índio era incapaz para os atos da vida civilizada. De Porto Alegre/RS alguém interpôs mandado de segurança por telegrama. Soubemos disto, eu, minha esposa Jussara, nossos amigos Jorge Beja e esposa Clarinda, quando estávamos em Teresópolis/RJ, na casa de pessoa amiga. Manifestei a minha opinião: a medida judicial adequada é o habeas corpus e não o mandado de segurança. O cacique estava sendo cerceado na sua liberdade de locomoção. Regressamos ao Rio e no meu apartamento em Ipanema redigimos petição de habeas corpus. Beja assinou e a protocolou no Tribunal Federal de Recursos (atual Superior Tribunal de Justiça). O ministro Washington Bolívar de Brito foi o relator. 
Para evitar atraso no julgamento por eventual questionamento sobre o fato de um dos signatários ser juiz de direito, resolvi não assinar a petição, embora como cidadão pudesse fazê-lo. A impetração de habeas corpus dispensa procuração e atuação de advogado. O cacique nada pediu. Nós não o conhecíamos e com ele não tivemos contato algum. O nosso trabalho foi independente, voluntário e gratuito, produto da nossa consciência social e jurídica. O tribunal concedeu a ordem. O cacique viajou para a Holanda e ocupou a cadeira que permanecia vazia naquele sodalício internacional. Para alegria e surpresa nossa, o nome de Jorge Beja foi lançado no livro Guinness World Records. 
Antes de encerrar o ano letivo de 1980, um dos professores do mestrado em ciências jurídicas da PUC/RJ ficou curioso acerca dos fundamentos daquele habeas corpus. Disse-lhe que o atenderia se ele aceitasse a minha explanação por escrito como trabalho final da sua disciplina (Direito Constitucional). Ele aceitou a proposta. Então, elaborei o trabalho sob a égide da carta constitucional de 1969, apresentando as seguintes teses: [1] Capacidade plena do índio de expressar seus pensamentos e defender a sua cultura [2] Identidade nacional e cultural da comunidade indígena [3] Equiparação ao protetorado de direito internacional [4] Analogia com o direito de passagem do ocupante de prédio encravado [5] As exigências do estado brasileiro para o índio integrar a nação brasileira significam trata-lo como estrangeiro e reconhecer a autonomia da nação indígena. 
Em 1986, na iminência de se instaurar assembleia constituinte no país, o desembargador Fernando Whitaker da Cunha, catedrático de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que havia participado, em 1981, da banca examinadora diante da qual defendi a minha dissertação de mestrado (“Poder Constituinte e Constituição” que ele considerou tese de doutorado) sugeriu-me a elaboração de um artigo a ser publicado na Revista de Informação Legislativa do Senado Federal. Aceitei a sugestão. Baseado na petição e no trabalho acadêmico mencionados e com o título “A Proteção Jurídica das Comunidades Indígenas do Brasil”, o artigo foi publicado na citada revista (nº 93, jan-mar/1987). Ao invés da breve referência aos índios nas disposições finais das constituições anteriores, o legislador constituinte de 1987/1988 deu-lhes tratamento extenso em capítulo próprio sob o título da ordem social na Constituição da República. 
Na década de 1990, quando lecionava na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, eu afirmei, em uma das aulas, que os índios não eram brasileiros, eis que tinham as suas próprias nações antes de a sociedade e o estado brasileiros existirem. Alguns estagiários reagiram severamente como se estivessem diante de um burguês fascista. Tornei a explicar a extensão e a compreensão dos artigos 22, XIV + 231/232 da Constituição da República de 1988, cujo pressuposto lógico e sociológico é a independência das nações indígenas (organização social, costumes, línguas, crenças, tradições, direito natural originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam). Desde que seja da sua livre vontade e preencha os requisitos legais, o índio pode se incorporar à nação brasileira e ter dupla nacionalidade: (i) a originária da comunidade natural (ii) a adquirida da sociedade política organizada. A aguerrida jovem Txai Suruí é um exemplo disto. 

BIBLIOGRAFIA. [1] Fragoso, Heleno Cláudio. Direito Penal e Direitos Humanos. Rio. Forense. 1977. [2] Levi-Strauss, Claude. O Pensamento Selvagem. SP. Nacional. 1976. [3] Ribeiro, Darcy. Os Índios e a Civilização. Petrópolis. Vozes. 1979. [4] Rugiero, Roberto. Instituições de Direito Civil. Rio. Saraiva. 1971. [5] Declaração Universal dos Direitos do Homem. Porto Alegre. Sulina. 1968. [6] Constituições Brasileiras. Império e Republica. SP. Sugestões Literárias. 1978. [7] Lei 6.001. Estatuto do Índio. 1973. [8] HC 4.876 + 4.880. Tribunal Federal de Recursos. Voto do Relator. 1980.