quarta-feira, 25 de setembro de 2013

PERFEIÇÃO II



O IDEAL E O REAL

O ideal de perfeição para indivíduos e povos consubstancia-se nas excelsas qualidades atribuídas à divindade. Esta ficção serviu de base ao evangelista para afirmar que Jesus veio para levar a lei e os profetas à perfeição (Bíblia, NT, Mt 5: 17). Ao citar a “lei” o evangelista referia-se aos cinco primeiros livros da Bíblia que, em conjunto, formam o pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). Ao citar os “profetas” o evangelista referia-se aos oráculos proféticos e sermões atribuídos aos profetas israelitas e judeus. Desde Elias (875 a.C.) até Malaquias (450 a.C.) cerca de 20 profetas se destacaram. Profeta, naquela época e cultura, era a pessoa carismática que dizia ter visões do futuro e expressar a vontade de Javé (ou Jeová) deus do povo hebreu. A fonte da autoridade dos profetas sobre o povo e os governantes era a crença de que eles falavam sob inspiração divina (em todas as épocas e lugares os estelionatários da fé religiosa se dizem inspirados por Deus). Quando se excediam nas admoestações, os profetas eram punidos. Isto aconteceu com João Batista e Jesus. Visando a cativar adeptos e mudar os costumes, os dois, no entusiasmo da catequese, excederam-se na agressividade e provocaram a ira do rei, dos sacerdotes e de parcela do povo judeu. João foi decapitado por ordem do rei (Herodes Antipas) e Jesus foi crucificado em execução da sentença proferida pelo tribunal judeu (Sinédrio). No sermão da montanha, Jesus menciona os maus tratos sofridos pelos profetas. Na sinagoga da cidade em que moravam seus pais ele reclama da desconfiança do povo: nenhum profeta é bem aceito em sua pátria.
O deus bíblico considerava os profetas um bando de mentirosos: “São mentiras que proferiram os profetas em meu nome. Não os enviei, não lhes dei ordem e nem mesmo lhes falei. Visões de mentiras, adivinhações vãs, invenções de suas mentes, eis o que profetizam” (Bíblia, AT, Jeremias 14: 14/16). Se assim é, então Jesus veio para levar as mentiras dos profetas à perfeição e tornar-se um mentiroso maior do que eles, um mentiroso perfeito. Quanto à “lei”, se ditada por deus, como consta da escritura, então veio perfeita. Não se leva à perfeição o que já é perfeito. Se o apóstolo Mateus ouviu bem e disse a verdade, então Jesus sabia que a “lei” tinha origem terrena e não divina; que o pentateuco fora escrito por judeus liderados pelo sacerdote Esdras em torno do ano 400 a.C.; que sendo a “lei” obra humana, podia ser aperfeiçoada. Aliás, conforme narrativa de Flávio Josefo, apologista judeu do século I da era cristã, algumas tribos e respectivos chefes faziam oposição a Moisés e o qualificavam de tirano; acusavam-no de haver trocado a escravatura do Egito pela escravatura dele; consideravam tiranas as leis por ele baixadas e não acreditavam que fossem de origem divina (Antigüedades Judias – I. Madri. Akal/Clásica, 1997, p. 206/207). Da Bíblia consta que Javé confiou a Moisés dez mandamentos. Se isto fosse verdade, o carimbo divino teria impedido Jesus de reduzi-los a apenas dois (AT, Êxodo 20: 1/17; NT, Mt 22: 37/40).
A idéia de imperfeição humana combinada com a de alma individual foi o lastro da crença na evolução espiritual e na reencarnação. Essa crença foi chamada inicialmente de bramanismo e posteriormente de hinduísmo (Índia, 3.000 a.C.). Gerado no ventre do hinduísmo, o budismo (Índia, 600 a.C.) supõe o renascimento cíclico para o homem libertar-se do desejo, do prazer, da dor, do sofrimento e atingir a perfeição. Na Europa, a crença brâmane foi lançada em termos ocidentais com pretensões científicas pelo professor de ciências naturais Hipólito Leão Denizar Rivail, pseudônimo Allan Kardec, construtor e divulgador do espiritismo (1857). A doutrina espírita inclui: (1) crença na trajetória do espírito com destino à perfeição através de reencarnações, o que supõe a individualidade e a imperfeição da alma; (2) idéias e fatos atribuídos à manifestação de seres incorpóreos denominados espíritos que habitam um mundo próprio e se comunicam com os seres corpóreos {ao entrarem no corpo de pessoas receptivas (médiuns) os espíritos dos mortos transmitem mensagens e realizam curas}.   
A tese sobre evolução biológica foi exposta na Grécia antiga por Anaximandro (600 a.C.): a vida surgiu na água; a partir do recuo das águas do mar a vida animal evoluiu do organismo simples ao complexo até o humano. Precursor do evolucionismo na ciência ocidental, o francês João Batista Pedro Antonio de Monet, “Cavaleiro de Lamarck”, conhecido como Jean-Baptiste Lamarck, publica a sua teoria da evolução das espécies em 1809, ano em que Darwin nascia e Kardec tinha cinco anos de idade. Esse naturalista afirmava a tendência natural dos seres rumo à perfeição. Sustentava que no evolver de cada espécie os caracteres necessários e úteis são conservados e se desenvolvem; os que não servem mais são descartados. Charles Darwin publica em 1859 a sua teoria da evolução das espécies que tem sido invocada como respaldo científico do espiritismo. Contemporâneo de Kardec e de Darwin, o biólogo inglês Alfred Russel Wallace, co-autor da teoria da evolução, acreditava na influência do mundo invisível sobre o visível e afirmava ser real a comunicação com espíritos (1865). Ainda no século XIX, o filósofo inglês Herbert Spencer aplica a teoria de Darwin à sociedade humana; afirma que a evolução social é parte da evolução universal e que esta implica a sobrevivência do mais apto.
Quanto à evolução cósmica, o hinduísmo inclui a crença na grande respiração de Brahma (expansão e contração do universo); o filósofo Anaximandro referia-se à mudança rítmica de períodos contínuos de criação e decadência; os astrofísicos afirmam a ocorrência de uma explosão inicial e a possibilidade do universo se contrair depois de chegar ao limite da sua atual expansão.

sábado, 21 de setembro de 2013

PERFEIÇÃO



O ABSTRATO E O CONCRETO

Admiro a flor pintada no quadro. Perfeito o amor-perfeito. O desenho e as cores coincidem com a flor cuja imagem está gravada na minha memória. Após o deslumbre, olho o jardim. Noto que um amor-perfeito não é igual ao outro. Qual deles é o perfeito amor-perfeito? Volto ao quadro. Olho e penso: admirei a pintura, a reprodução, a arte do pintor e não o modelo original. As cordas da sensibilidade vibraram tocadas por algum estímulo além do visual. A pintura desperta em mim sensações agradáveis e um significado que pode ser diferente do pretendido pelo pintor. Já foi dito alhures que a obra de arte adquire significado próprio para quem a contempla e nem sempre desperta o mesmo sentimento em diferentes pessoas. Cada observador tem a sua particular compreensão. Vê-la-á sob o prisma da perfeição geométrica ou da beleza diáfana.
Busca-se a perfeição em tudo e ela em nada se encontra a não ser na mente. Pensamento radical. Recorro a um pensamento menos radical que admite perfeição objetiva: ausência de defeitos nas pessoas, nas plantas, nos animais, nas coisas, nas instituições. Ensaio uma noção positiva: perfeito é o ente natural ou cultural que atingiu a plenitude das suas características estruturais e funcionais. Animado com essa definição, arrisco uma variante para introduzir propósito: perfeito é o ente completo nos seus elementos essenciais e que cumpre a sua finalidade com êxito. Rompo os limites: perfeito é o ser na sua infinita extensão e ínfima compreensão. Retorno da metafísica à física. Sigo a trilha do ser e do fazer na dimensão material do mundo: a conduta ou a obra de alguém será perfeita ou imperfeita segundo a tábua de valores e os modelos estabelecidos e desenhados na mente, adquiridos no lar, na escola, na igreja, na sociedade em que vivo.
Na avaliação da conduta e da produção humana contribuem: a minha crença, o meu ideário, o meu senso ético e estético e o meu discernimento. Nessa avaliação, que pressupõe o meu estado consciente, sofro influência externa, pois sou produto do meio natural e social. Posso reagir à pressão social, mas não evita-la, salvo se me tornar anacoreta. Minha reação pode ser legítima ou ilegítima, segundo se conforme ou não com o bem comum. Valores vigentes na sociedade servem de balizas: santidade, bondade, utilidade, verdade, justiça, beleza. Do ponto de vista ético, considero perfeita a pessoa de conduta ilibada cujas virtudes encontram-se no estado mais refinado segundo os parâmetros estabelecidos pela nação. Posso conceber um padrão em que se considera perfeita a pessoa: (1) que acredita em Deus e respeita a crença e a descrença alheia; (2) que se dedica ao bem-estar do próximo com o máximo de bondade; (3) que se mostra útil e traz concórdia à família e à sociedade; (4) que cultiva bons pensamentos e bons sentimentos; (5) primorosa na sua arte, na sua profissão, no seu existir; (6) inteligente e lúcida no seu saber; (7) disciplinada, veraz e justa no seu agir.
Excelsas qualidades e ausência de anomalias físicas e morais caracterizam a pessoa perfeita em abstrato. Todavia, a experiência revela que, em concreto, não há pessoa virtuosa o tempo todo e em todas as circunstâncias; que ninguém é perfeito quando avaliado rigorosamente segundo os padrões religiosos, éticos, estéticos e jurídicos vigentes na comunidade. Ademais, reina discordância entre pessoas, povos e culturas sobre o que se encaixa no bem ou no mal. O sofista Protágoras já se referia a esse desacordo (Grécia, 600 a.C.): não há verdades absolutas ou padrões eternos de direito e de justiça, salvo verdades particulares válidas para certo tempo e lugar; a moralidade varia de povo para povo; o que é certo para os espartanos é errado para os atenienses; verdade, justiça e beleza estão relacionadas aos interesses e às necessidades do homem (Edward Macnall Burns. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre, Globo, 1955, p. 192). Verdade aquém dos Pirineus, falsidade além dos Pirineus, dizia Blaise Pascal (França, século XVII) aludindo ao relativismo dos conceitos humanos (Pensamentos. São Paulo, Nova Cultural, 1999, p.109/110).
Nas relações econômicas, sociais e políticas os humanos ora são coerentes, ora contraditórios; ora benfeitores, ora malfeitores. Para uns, o socialismo é perfeito; para outros, o capitalismo ou o modelo híbrido. Para uns, perfeita é a poligamia; para outros, a monogamia. Para uns, perfeito é o sistema autocrático de governo; para outros, o democrático. Dante Alighieri defendia a autocracia e apelidava de regimes tortuosos a democracia, a oligarquia e a tirania. (Da Monarquia. São Paulo. Brasil Editora, 1960, p.156). Winston Churchill afirmava a superioridade da democracia quando comparada a outros regimes políticos. Nessa área não há perfeição e sim adequação. O sistema político pode variar no tempo, segundo as vicissitudes do povo: num momento, a autocracia apresenta-se como a mais adequada; em outro momento, a democracia. Isto vem ilustrado pela história de Roma: no período inicial, a monarquia se mostrou adequada, pois o povo romano prezava mais a autoridade e a estabilidade política do que a liberdade e a democracia; no período intermediário, prevaleceu a república aristocrática e a ascendência do senado; nos períodos críticos, instituía-se a ditadura temporária; no último período, vigorou o regime imperial. Segundo a índole, a cultura e o momento histórico de um povo, o governo adequado pode ser monárquico ou republicano, autocrático ou democrático, parlamentarista ou presidencialista. Há muitos exemplos dessas alternativas na história política dos povos: Alemanha, Brasil, China, França, Índia, Inglaterra, Irã, Itália, Líbia, Rússia, Síria. Verifica-se, pois, a impertinência de um povo pretender impor o seu sistema político a outro povo de diferente índole e cultura.
Sensato foi o legislador constituinte brasileiro ao incluir entre os princípios das relações internacionais a autodeterminação e independência dos povos e a igualdade entre os Estados.
Insensato foi o juiz brasileiro ao amenizar a situação de criminosos do colarinho branco, desprestigiar sentença condenatória proferida no devido processo jurídico por tribunal supremo em instância única e privilegiar o interesse privado daquela súcia em detrimento do interesse público da nação. A questão acidental suplantou a questão essencial. A forma embocou a matéria. O adjetivo empanou o substantivo. A logorreia e a pantomima camuflaram o engodo. O sofisma subverteu a hierarquia das leis e escarneceu dos valores morais em vigor. 
Há 100 anos, Ruy Barboza se dizia desapontado com o supremo tribunal. Há 40 anos, Bulhões de Mattos, meu colega de toga no Estado da Guanabara, assim manifestava o seu desencanto nos autos de um processo: Supremo? Só de frango.

sábado, 14 de setembro de 2013

CHICANA III



Nas sessões dos dias 11 e 12 de setembro de 2013, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) discutiram sobre o cabimento do recurso de embargos infringentes em ação penal originária (ação que começa e termina no tribunal por disposição expressa da Constituição). O público assistiu ao espetáculo nada edificante da costumeira balbúrdia, da falta de cortesia e de serenidade, da mistura da fase dos debates com a fase da votação, dos pronunciamentos paralelos e simultâneos, da interrupção abrupta de quem está proferindo voto, da transgressão à ética judiciária. Ao invés de manifestar a discordância de maneira educada e amistosa na sua vez de votar, o ministro atropela e menoscaba o colega; esquece-se de que no julgamento da ação ou do recurso o voto é sentença individual que flui da consciência, da convicção, da formação moral e jurídica do juiz. Se o voto vai se somar à maioria ou à minoria é o que menos importa. O respeitoso silêncio do público quando um juiz está proferindo o seu voto devia ser imitado pelos outros juízes; respeitar-se-ia a pessoa do juiz, a instituição que ele encarna e a nação que ele representa. Preito à justiça indica maturidade política de um povo.    
No processo judicial, embargo é recurso utilizado pela parte com o propósito de impedir que uma decisão produza efeito imediato. O vocábulo é empregado no plural: embargos. A legislação processual admite três modalidades de embargos: (I) divergentes; (II) declaratórios; (III) infringentes. Os embargos de divergência são opostos quando matéria igual é decidida de modo diferente por órgãos distintos (a decisão de uma câmara ou de uma turma difere da decisão de outra ou do plenário sobre o mesmo assunto). Ao prover os embargos de divergência o tribunal pacifica a matéria e fixa jurisprudência para os casos semelhantes. Os embargos de declaração visam a escoimar a decisão recorrida sem quebrantá-la. A lei processual menciona a obscuridade, a ambigüidade, a omissão e a contradição como vícios da decisão que justificam a interposição desse recurso. Os embargos infringentes visam a quebrantar a decisão embargada. A parte vencida pleiteia a inversão do resultado de modo a sair vencedora. Este recurso alicerça-se na divergência interna (no mesmo órgão julgador), sem confundir-se com o recurso alicerçado na divergência externa (entre órgãos julgadores distintos). Tanto os embargos de declaração como os infringentes são julgados pelo prolator da decisão embargada.
Precipitaram-se os embargantes e o magistrado. Os embargantes porque ainda não começara a fluir o prazo para a interposição dos embargos infringentes. O magistrado porque os embargos de declaração ainda estavam pendentes. Se tivesse exercido a função judicante como juiz de carreira, o relator teria exarado na petição recursal o seguinte despacho: Aguarde-se o julgamento dos embargos de declaração. Após, voltem conclusos. No entanto, o relator indeferiu liminarmente a petição recursal apresentada por dois condenados. Sustentou que o recurso não foi contemplado na lei que instituiu normas procedimentais perante o STF; que a omissão implica revogação da norma do regimento interno do tribunal que disciplinava tal recurso. Os condenados recorreram da decisão do relator mediante agravo. Na sessão de julgamento do agravo o relator manteve a sua decisão. Os ministros Luiz Fux, Cármen Lucia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio acompanharam o voto do relator, negaram provimento ao agravo e não admitiram os embargos infringentes. O ministro Roberto Barroso inaugurou a divergência ao decidir pela reforma da decisão do relator e pelo cabimento dos embargos infringentes. Fez um histórico desde as ordenações portuguesas até as leis brasileiras que trataram desse recurso; estribou-se nos códigos de processo penal e civil e no regimento interno do STF; disse que o regimento recebeu força de lei por ter sido elaborado sob a égide da Carta de 1969; que o regimento foi recepcionado pela Constituição de 1988; que a norma regimental é compatível com a lei 8.038/1990. Acompanharam a divergência os ministros Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, que deram provimento ao agravo e admitiram os embargos infringentes. Houve empate na votação (5 x 5). O desempate caberá ao ministro Celso de Mello, último a votar.
O Estado como instituição composta de governo, povo e território, tem como agentes da sua soberania os parlamentares, o chefe de governo e os juízes. Investidos de poder político e em sintonia com os princípios e as normas de direito, os juízes resolvem controvérsias no âmbito do processo judicial. No julgamento em tela, transparece o aspecto político da função jurisdicional. De um lado, o grupo de juízes que representa o governo stricto sensu e procura amenizar a situação dos criminosos de colarinho branco; de outro, o grupo de juízes que representa o povo lato sensu e procura manter a condenação dos criminosos. Marcou presença a chicana, a manobra astuciosa. Os direitos do homem e do cidadão, formidável conquista da civilização ocidental, perdem legitimidade quando exercidos em favor de abusos e chicanas. Em nome do direito de ampla defesa procrastina-se a execução do julgado; tenta-se mudar o veredicto mediante novo julgamento propiciado pelos embargos infringentes.
Na instrução e no julgamento da ação penal 470 o direito à ampla defesa foi respeitado. Mais de 50 sessões foram dedicadas à postulação das partes, à produção de provas e aos extensos debates (inclusive entre os juízes). A sentença é o limite da acusação e da defesa, o termo final do processo judicial. No entanto, em nome da liberdade, os condenados pretendem a titularidade de um direito sem freios e sem limite no tempo. Há um momento em que deve prevalecer a autoridade da sentença. Os condenados serviram-se do recurso cabível: embargos de declaração. O tribunal apreciou esse recurso em várias sessões onde houve intensos e dramáticos debates entre os juízes. As questões levantadas pelos condenados foram amplamente examinadas e alguns embargos foram providos para atenuar as penas aplicadas.
Na esfera penal, os embargos infringentes são admitidos quando reunidas as seguintes condições: (i) o processo estar em segundo grau de jurisdição (segunda instância) o que supõe origem no primeiro grau; (ii) a decisão ser desfavorável ao réu; (iii) ter havido divergência (decisão não unânime). Na ação penal originária não há grau de jurisdição, não há escala jurisdicional, a instância é única; logo, falta o pressuposto de admissão dos embargos. Na esfera civil, os embargos infringentes são admitidos quando reunidas as seguintes condições: (i) estar o processo em grau de apelação; (ii) a decisão reformar sentença de mérito; (iii) haver divergência (decisão não unânime). A lei abre exceção para admitir os embargos na ação rescisória. Entretanto, na esfera penal, a lei não abre exceção para a ação originária.
A questão da vigência da norma regimental surgiu com a interposição do recurso de embargos infringentes e tinha de ser enfrentada pelo tribunal. Não se trata de casuísmo e sim do juízo de admissibilidade próprio da função jurisdicional. Assim como a petição inicial, também a petição recursal passa pelo crivo desse juízo. A petição pode ser deferida ou indeferida pelo magistrado, conforme esteja ou não amparada no direito. A norma regimental, ainda que tivesse força de lei, não podia prevalecer sobre lei posterior. Embora prestigie os regimentos internos dos tribunais, a nova lei não contempla aquele recurso no capítulo específico da ação penal originária, nem tampouco o inclui no capítulo que trata dos recursos.
Os atuais governistas sentem-se injustiçados pelo fato de a quadrilha de Fernando Henrique estar impune enquanto a quadrilha de Luiz Inácio foi punida. A impunidade de uma quadrilha não justifica a impunidade da outra. O sentimento de injustiça é compreensível. Porém, a culpa pela impunidade não pode ser atribuída aos juízes e tribunais e sim ao braço político do Ministério Público e da polícia. A malta de Fernando Henrique tem sido habilidosa na tarefa de impedir a apuração da responsabilidade criminal dos seus integrantes. Além disto, faltou um Roberto Jefferson para abrir as entranhas da referida malta.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

AMISTOSO



Boston, EUA, 10/09/2013. Brasil x Portugal (3 x 1).
No esporte coletivo, o vocábulo amistoso tem um significado próprio: disputa fora de campeonato, sem implicar classificação ou contagem de pontos. Quando muito, disputa-se um troféu, mas não um título de campeão. O significado comum de amigo e amigável aplica-se ao espírito esportivo: as equipes devem se tratar como adversárias e não como inimigas, quer em jogos de campeonato, quer em jogos amistosos. Recomenda-se boa educação, civilidade, lealdade e respeito humano. Isto não impede a virilidade no jogar, o empenho das equipes, o férreo combate sem ser feroz ou violento, a luta pela vitória, mas não ao preço do aniquilamento físico do adversário. A grave lesão intencionalmente provocada no jogador poderá inutilizá-lo para exercer a profissão. Os jogadores devem preservar a integridade física uns dos outros, reciprocamente, sejam ou não da mesma equipe. Tolerar a violência é ser conivente com o infrator. O árbitro não deve contemporizar. Há de usar o seu poder de direito e expulsar da competição o jogador violento e desleal.
O jogo de ontem à noite entre as seleções de futebol do Brasil e de Portugal teve lances de lamentável rispidez. Os portugueses não queriam sofrer o que os australianos sofreram na partida com os brasileiros (6 x 0). Baixaram o cassetete. Cristiano Ronaldo arranjou uma tendenite e saltou do barco. Deixou a bomba nas mãos de Nani. Preservou a sua imagem de melhor jogador do mundo (para a Fifa). Evitou ficar à sombra de Neymar. Este jogador brasileiro (agora em Barcelona) foi o principal alvo das pancadas. Respondeu jogando bom futebol, técnico e artístico. Em campo, os jogadores brasileiros mostraram dignidade, confiança, segurança e habilidade. O futebol brasileiro parece que voltou aos bons tempos, com valor próprio, sem imitar o europeu. Que prossiga assim! 
O cabeceio de Tiago Silva, do qual resultou o gol brasileiro, deve merecer atenção especial dos seus companheiros. Cabecear sempre para o chão para dificultar a defesa do goleiro é um figurino que não deve ser seguido à risca. Muitos gols se perderam por causa dessa preocupação. O cabeceio deve ser livre, para baixo ou para cima, direto ou para o lado, segundo as circunstâncias e o senso de oportunidade do cabeceador. O jogador deve seguir mais a sua intuição e se preocupar menos com o figurino e com a galera.
Maicon, sem alcançar por completo a bola no alto, cabeceou em direção ao seu próprio gol. A intenção era recuar a bola para o goleiro por recomendação do seu colega de zaga. O receio de fazer gol contra sua própria meta o fez cabecear para baixo. O atacante português que estava próximo se aproveitou para fazer o gol. Isto lembra que em torno de cada ser humano há um campo magnético chamado aura. Mesmo sem ver a pessoa é possível perceber a sua presença através da aura. Certamente, Maicon não sentiu a aura do português. 

sábado, 7 de setembro de 2013

DEGENERESCÊNCIA



O CORPO A MENTE E O TEMPO

Mens sana in corpore sano – ideal romano que aprendi quando cursava o ginásio no Colégio Estadual do Paraná (1950 a 1954). Esse ideal inspirava nossas aulas práticas de educação física. O frio curitibano era um desafio. Exigia coragem para entrar naquela piscina de ladrilhos, água límpida e bem cuidada. Em uma das pontas situavam-se dois baixos trampolins de mola, um de cada lado; entre eles e a separá-los, erguiam-se duas altas plataformas para mergulhos ousados, simples ou acrobáticos. No fundo da piscina havia estreitas e paralelas faixas de ladrilho preto, sentido longitudinal, que serviam de guia ao nadador. Na quadra coberta e fechada jogava-se vôlei e basquete. Ao ar livre (quando não chovia) no campo e na pista de atletismo a turma jogava futebol, arremessava dardo e peso, corria, saltava obstáculos e fazia ginástica. Tudo sob a orientação e vigilância do professor. Os alunos de melhor desempenho em cada modalidade esportiva e atlética eram selecionados para representar o colégio nas olimpíadas estudantis. Os maristas (Colégio Santa Maria) eram nossos mais temíveis adversários. Nas arquibancadas, alegre e jovial agitação das torcidas.  
Ao pleno desenvolvimento do corpo segue-se a degenerescência. Com a passagem do tempo o desgaste se faz notar. Para os ativos, os dias se sucedem com rapidez; para os inativos, os dias são pachorrentos e nostálgicos. Visão e audição perdem acuidade, braços e pernas perdem agilidade, lembranças embaralhadas, assuntos repetidos. A dificuldade em extrair o material depositado na memória atrapalha a associação típica do pensar. Nessa fase, a lucidez procede mais da intuição do que do raciocínio. O processo intuitivo dispensa as intermediárias operações da inteligência; a percepção é direta e imediata.
A lei brasileira considera idosa a pessoa com idade igual ou superior a 60 anos. Todavia, sob a lei da natureza e conforme o estado físico e mental, a pessoa pode se considerar idosa a partir dos 90 anos de idade. Independente da escolaridade, a pessoa idosa contemplará o passado e o presente com o filosófico olhar que o tempo e a experiência lhe proporcionaram.
Sofre mais aquele que pretende ser jovem na velhice. Manter-se jovem de corpo é uma impossibilidade biológica. As leis da natureza atuam indiferentes aos artifícios humanos. Essa realidade não desmerece os cuidados da pessoa idosa com o corpo. Ao contrário, mostra-se recomendável o cultivo de hábitos morígeros como a dieta balanceada no comer e beber; prover-se de proteínas, sais minerais, cálcio; caminhar e fazer ginástica regularmente.
Manter-se jovem de espírito é outra impossibilidade e um engano axiológico. Idade tem o corpo e não o espírito. Juventude não é um valor e sim um período da vida com suas descobertas e seus malogros. Há jovens saudáveis e doentes, eficientes e deficientes, honestos e delinqüentes, ingênuos e ardilosos.
Para cada faixa etária há procedimentos adequados que trazem saúde e alegria à existência humana, tais como: nutrir pensamentos construtivos e bons sentimentos, manter a mente ativa, meditar, orar, ouvir música, cantar, dançar, dedicar-se a alguma arte ou profissão, praticar esporte, fazer o que gosta se estiver ao seu alcance e a ninguém prejudicar, transar sexualmente, ver no horizonte o sol surgir do mar e se esconder atrás da montanha, olhar as ondas se espreguiçando na areia, contemplar as estrelas, curtir a tempestade, observar os pingos da chuva (como na canção: é de manhã vem o sol / e os pingos da chuva que ontem caiu / ainda estão a brilhar).
Para o conúbio do ano, recomenda-se ao idoso heterossexual: (1) preparar-se com seis meses de antecedência {suaves estimulantes endócrinos, evitar droga forte cujos efeitos colaterais são desagradáveis como os do viagra}; (2) transar com quem tenha empatia {apesar de a relação sexual ser animalesca, com carinho fica mais suave}; (3) no dia da conjunção carnal não se afobar, pois a ansiedade prejudica a ereção; (4) não ejacular mais de uma vez, pois o excesso pode causar enfarte. Mutatis mutandis, a receita serve também para os idosos heróicos e felizardos que conseguem transar duas vezes ao ano.
A personalidade anímica (vulgarmente tratada como espírito ou alma) é infensa à ação do tempo; não é jovem, nem velha; está fora da jurisdição de Cronos. Entretanto, o budismo e doutrinas semelhantes admitem a influência do tempo no mundo espiritual; ensinam que a personalidade anímica amadurece vivendo encarnações no decorrer dos séculos; que seres iluminados (Bodhisattva) permanecem na roda das encarnações para ajudar a humanidade.
“Alma velha, sabedoria acumulada no curso de várias encarnações” constitui pensamento espiritualista (hinduísta, budista, espírita) que satisfaz a vaidade de quem pretende ser mais iluminado e evoluído do que o seu semelhante. Tal pensamento enseja hierarquia. Tal vaidade impulsiona competição: (i) no seio do grupo, causando cisões; (ii) entre pessoas de crenças distintas, gerando conflitos; (iii) entre escolas esotéricas, igrejas, terreiros de umbanda, centros espíritas, alimentando disputas pela posse da verdade e pelo mercado da fé.
Segundo a escritura cristã, ao perceber competição entre os apóstolos, Jesus teria dito: o que entre vós é o maior torne-se como o último e o que governa seja como o servo; todo o que quiser tornar-se grande entre vós, seja o vosso servo e todo o que entre vós quiser ser o primeiro seja escravo de todos (Bíblia, Novo Testamento, Lc 22: 26 + Mc 10: 43/44 + Mt 20: 26/27). Na última ceia antes da crucificação (de acordo com o evangelho, houve comilança depois da crucificação até o ressurgente subir aos céus) dirigindo-se aos apóstolos, Jesus teria dado um mandamento específico sobre o amor fraterno visando a afastar rivalidade entre eles: “Dou-vos um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim, também, vós deveis amar-vos uns aos outros. Nisto, todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Bíblia, NT, Jo 13: 34/35 + 15: 9). Anteriormente, quando ensinava no templo, Jesus havia reduzido os dez mandamentos de Moisés a dois apenas: (1) amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda tua alma e de todo teu espírito; (2) amarás teu próximo como a ti mesmo. Nesses dois mandamentos se resumem toda a Lei e os Profetas (Bíblia, NT, Mt 22: 37/40 + Mc 12: 28/34 + Lc 10: 25/27).   
Admitindo-se – para fins de argumentação – que a personalidade anímica passa por um processo evolutivo, verificar-se-á a falta de instrumento racional para medir-lhe o estágio. A medida importará em julgamento moral e, neste caso, cabe a advertência do evangelho atribuída a Jesus: “não julgueis e não sereis julgados, porque do mesmo modo que julgardes sereis também vós julgados e com a medida com que tiverdes medido também vós sereis medidos; primeiro tira a trave de teu olho e depois enxergarás para tirar o argueiro do olho do teu irmão” (Bíblia, NT, Mt 7:1/5 + Lc 6: 37/42).
Diante da realidade histórica do mundo ocidental, verifica-se que os preceitos supostamente ditados por Jesus não ecoaram no espírito daqueles que se intitulam cristãos (católicos + protestantes). O mandamento do amor fraterno só vigorou entre os apóstolos enquanto Jesus estava com eles. Depois veio a disputa pela liderança, o choque dos egos e o desfile das vaidades que permanecem até hoje. No curso da história houve cismas dos quais resultaram igrejas cristãs rivais. A sede mercadológica no século XX multiplicou as seitas protestantes e provocou nova corrida do ouro. A hipocrisia campeia entre os infiéis que se apresentam como fiéis. Da consciência, porém, o indivíduo não escapa. Possível enganar o outro, mas não a si próprio. O indivíduo tenta seduzi-la com um manto cravejado de pedras preciosas, porém a consciência o desnuda na sua essencial transparência.