domingo, 30 de junho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO VI



Ante as péssimas condições de vida, os operários reagiram. Em São Paulo houve greve que começou na capital, espalhou-se pelo interior do Estado e ultrapassou suas fronteiras, incluindo quebra-quebra, saques, tomada de bondes, inatividade das fábricas e dos transportes ferroviários (1917). Os grevistas pleiteavam melhor padrão de vida (salários dignos, condições satisfatórias de trabalho, boa qualidade dos alimentos, redução dos preços dos bens de primeira necessidade e do aluguel da moradia). Anarquistas italianos, espanhóis e portugueses faziam parte da classe operária brasileira. Objetivando o amparo material e a defesa de direitos, a classe operária organizou sindicatos e instituições beneficentes de socorro mútuo. Diante da pressão social, o governo criou a Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Ferroviários, primeiro passo da sua atuação no terreno previdenciário (1923). Militava contra os operários a fartura de mão-de-obra do que se aproveitava a classe patronal para aviltar o valor da força de trabalho e negligenciar a salubridade. Dispondo do poder político, a classe patronal servia-se do aparelho estatal para reprimir os movimentos sociais dos trabalhadores. Ficou célebre a afirmação atribuída ao presidente Washington Luiz de que a questão social era questão de polícia. O presidente teria dito que a questão operária interessava mais à ordem pública do que à ordem social, porém prevaleceu a expressão divulgada pelos opositores.  

O ativismo do Partido Comunista Brasileiro e a rebelião dos tenentes do Exército levaram o presidente Artur Bernardes a decretar estado de sítio (1923 a 1926). Os jovens oficiais estavam descontentes com os oficiais superiores que se colocavam a serviço dos aristocratas ao invés de servirem à nação. Qualificavam de corrupto o sistema político em vigor. Mostravam-se preocupados com o custo de vida e as precárias condições existenciais de grande parcela da população. No pleito presidencial esses jovens oficiais apoiavam Nilo Peçanha, candidato da oposição. Em torno dessa candidatura uniram-se Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, movimento conhecido como reação republicana. O mineiro Artur Bernardes venceu as eleições. O governo fechou o Clube Militar e prendeu seu presidente, marechal Hermes da Fonseca, cujo filho, capitão Euclides da Fonseca, tomou o Forte de Copacabana e atacou o quartel-general do Exército. A arrojada ação repercutiu em outras unidades militares. Num gesto corajoso, rebelde e suicida, um grupo de oficiais e praças ignorou o estado de sítio e saiu do Forte de Copacabana para enfrentar a tropa do governo. Dos revoltosos, somente dois sobreviveram: Siqueira Campos e Eduardo Gomes. Posteriormente, unidades militares de São Paulo se rebelaram contra o governo central (1924). Os oficiais reivindicavam um governo provisório, a convocação de uma assembléia constituinte e reforma política que incluísse o voto secreto. Houve combates nas ruas e bairros da cidade de São Paulo. Os rebeldes marcharam para o Sul e se juntaram aos rebeldes gaúchos no Paraná, de onde partiram para o norte do país. Formaram a denominada Coluna Prestes. Venceram as batalhas travadas com as forças do governo em todo o percurso. O propósito da marcha era: (1) despertar a consciência do povo brasileiro para a perversidade do sistema político em vigor e a necessidade de um novo modelo; (2) mostrar discordância com a conduta servil dos comandantes militares. O povo aguardou o desfecho. Depois de três anos de marcha e percorrer cerca de 30.000 km, Luiz Carlos Prestes declarou encerrada a missão por entender que não restava motivo para prosseguir, pois Bernardes não era mais presidente e os reflexos positivos da rebelião já se faziam sentir. Os líderes da revolta exilaram-se na Bolívia (quarenta anos mais tarde foi morto nesse país o revolucionário Ernesto Guevara, o “Che”). A dissidência no seio da oficialidade advertira o Brasil sobre a nova realidade mundial descortinada nos céus europeus.
As desavenças entre os países europeus culminaram na guerra mundial de 1914 a 1918. Em conseqüência do conflito, o mercado europeu retraiu-se. O preço do café despencou. A economia brasileira encolheu. Impossibilitado de pagar a dívida externa, o governo brasileiro valeu-se da moratória até 1927, quando reiniciou os pagamentos. A situação agravou-se com a crise mundial do capitalismo iniciada em 1929 com o estouro da bolsa de valores de Nova Iorque. Escoaram-se os créditos brasileiros ganhos durante a guerra mundial provenientes do fornecimento de cacau, açúcar e borracha aos aliados. Enquanto o governo dos EUA, abatido pela crise, trocava o capitalismo liberal pelo capitalismo intervencionista, o governo brasileiro buscava solução caseira. Para suceder Washington Luiz na presidência, disputavam as eleições pela situação o paulista Julio Prestes e pela oposição o gaúcho Getúlio Vargas. Pernambucanos, baianos, cariocas e gaúchos uniram-se para acabar com o domínio de paulistas e mineiros na política nacional. Alegando fraude nas eleições em que fora derrotado, Vargas rebela-se contra a ordem vigente. Minas Gerais e Paraíba se colocam como vítimas da fraude e se unem ao Rio Grande do Sul. As forças rebeldes destituíram Washington Luiz da presidência, impediram a posse de Julio Prestes e assumiram o comando da nação. Enquanto uma junta militar ocupava o governo central, o comando da revolução sediado na cidade de Ponta Grossa, PR, desloca-se para a cidade do Rio de Janeiro. O novo governo pretende realizar o programa da Aliança Liberal exposto por Vargas durante a campanha eleitoral. A primeira república chegava ao fim (1889 a 1930).

No Rio de Janeiro, Getúlio Vargas recebe a chefia do governo das mãos da junta militar em 03 de novembro de 1930 e baixa o decreto 19.398, de 11 do mesmo mês (carta constitucional da transição) instituindo o Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil. Tem início a segunda república. O governo provisório acumula as funções legislativa e executiva até a eleição da assembléia constituinte. Foram dissolvidos todos os órgãos deliberativos nas esferas federal, estadual e municipal. O direito anterior ficou sujeito às mudanças introduzidas pelo novo regime. Na esfera do direito privado continuaram em vigor as relações jurídicas constituídas na forma da lei e foram assegurados os direitos adquiridos. Na esfera do direito público só foram mantidas as relações jurídicas harmônicas com o interesse público e com a moralidade administrativa. Para cada Estado federado foi nomeado um interventor (esgarça-se a federação). O governo provisório se propôs a garantir a segurança pública e a reorganizar a república. A futura Constituição deveria manter a forma republicana federativa de Estado sem restringir os direitos dos municípios e os direitos individuais arrolados na Constituição de 1891. Até lá, ficaram suspensas as garantias constitucionais e excluídos da apreciação judicial os atos do governo. Criou-se um tribunal especial para processo e julgamento de crimes políticos e funcionais definidos em lei e excluídos da garantia do habeas corpus.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO V



A matéria econômica e social regulada na legislação imperial foi recepcionada nas disposições gerais da Constituição republicana de 1891. O direito de propriedade foi mantido, ressalvada a desapropriação por necessidade ou utilidade pública. A propriedade das marcas de fábrica foi assegurada. Os inventos industriais pertenciam aos seus autores com garantia de privilégio temporário. Aos autores de obras literárias e artísticas era garantido o direito exclusivo de reproduzi-las pela imprensa ou por qualquer outro processo mecânico. À exceção do flagrante delito, a prisão só era permitida após a pronúncia do acusado, salvo os casos determinados em lei e mediante ordem escrita da autoridade competente. Sem culpa formada ninguém podia permanecer na prisão, nem a ela ser levado, ou nela detido, se prestasse fiança idônea nos casos admitidos em lei. Ninguém seria sentenciado senão pela autoridade competente em virtude de lei anterior. Aos acusados era assegurada ampla defesa. Nenhuma pena passaria da pessoa do sentenciado. Foram abolidas as penas de galés, banimento e morte, ressalvada a legislação militar em tempo de guerra. Foi mantido o júri. O habeas corpus servia à defesa de direitos na esfera cível e criminal (o mandado de segurança só veio mais tarde).

A república enfrentou dificuldades econômicas e políticas. O excesso na emissão da moeda e a especulação desenfreada em detrimento da aplicação do capital no setor produtivo causaram inflação, aumento do custo de vida, falência e endividamento externo. Ao ver as suas propostas derrotadas, o presidente Deodoro da Fonseca perdeu a paciência, dissolveu o Congresso e prendeu parlamentares da oposição. Diante da reação popular, especialmente dos trabalhadores da Central do Brasil e dos oficiais superiores da Marinha, Deodoro renunciou ao mandato em novembro de 1891. Nos termos da Constituição (art.42), devia ser convocada nova eleição, pois o mandato presidencial ainda não cobrira dois anos. Floriano Peixoto, vice-presidente, fez tabula rasa do preceito constitucional e permaneceu na presidência até o fim do quadriênio. Generais do Exército protestaram e foram presos. A Marinha se revoltou. A luta naval estendeu-se pela costa brasileira do Rio de Janeiro até Santa Catarina. No Rio Grande do Sul, opositores ao governo Floriano (federal) e ao governo Julio de Castilhos (estadual) também se revoltaram. As duas rebeliões (marítima e terrestre) foram pacificadas no governo Prudente de Morais, após quatro anos de luta (1891 a 1895). Morreram cerca de 10.000 combatentes (maragatos x pica-paus).

No Nordeste, o beato Antonio Conselheiro liderava uma comunidade situada em Canudos, interior da Bahia, de aproximadamente 25.000 pessoas simples, pobres e crédulas que aspiravam um futuro radiante e abençoado. Tinham suas próprias leis. Pretendiam autonomia por discordar dos tributos municipais e dos rumos laicos da república. Depois de três expedições bem armadas e mal sucedidas, o governo venceu a quarta, exterminou os habitantes de Canudos e destruiu cerca de 5.000 casas (1896 a 1897). No Estado do Ceará, o município de Juazeiro foi palco da rebelião popular contra o governo (1913 a 1914). Liderada pelo Padre Cícero (carismático benfeitor da gente humilde, prefeito de Juazeiro e dono de considerável patrimônio obtido no curso da sua vida religiosa e política) e pelo deputado Floro Bartolomeu (médico e amigo de Cícero) a rebelião fundiu crença religiosa e interesse oligárquico. Romeiros e jagunços foram recrutados pelos dois líderes. Vencidas as forças da oligarquia rival, governador destituído do cargo, novas eleições realizadas, Padre Cícero é eleito vice-governador e mantém liderança política até a sua morte (1934). A fama de santo milagreiro permanece até hoje. O interior nordestino foi percorrido pelo cangaço, movimento social originado nas desavenças entre famílias e nos pleitos de justiça e vingança, mescla de justiceiros e bandidos acoitados por fazendeiros (1820 a 1940).

No Sul, os Estados do Paraná e de Santa Catarina disputaram vasta área rica em madeira e erva-mate (47.880 km²). O litígio começou em 1900 e terminou em 1917 por acordo entre os dois governos (o Paraná rejeitara decisão do Supremo Tribunal Federal). A área litigiosa recebeu o nome de Contestado. Ocupando menos da metade dessa área, havia 50.000 pessoas (estimativa pelo mínimo) distribuídas em comunidades de camponeses e ferroviários desempregados (a ferrovia que ligava São Paulo ao Rio Grande do Sul e atravessava a região foi concluída em 1910). Diante da invasão de suas terras por latifundiários e companhias dos EUA (ferroviária e madeireira), essa população se armou e defendeu a sua posse. O primeiro líder, José Maria (monge secular, beato, curandeiro) se opôs à república (coisa do diabo), defendeu a independência dos diversos povoados da região (vilas santas) com leis próprias sob forma de monarquia (celestial). Força militar paranaense desloca-se para a vila de Palmas a fim de expulsar o monge e seu grupo (300 homens) que ali chegaram vindos de Taquaruçu, localidade catarinense. Trava-se a primeira batalha (1912). Morrem o comandante militar e o monge {na Lapa, município paranaense, a memória do monge é reverenciada em uma gruta (a gente simples o considerava santo); em Curitiba, importante via de circulação recebeu o nome do comandante militar: Avenida João Gualberto}. No ano seguinte (1913) prossegue a luta sob novas lideranças (Maria Rosa, Deodato). Os posseiros venceram as primeiras batalhas. As vilas foram atacadas por terra e ar {8.000 soldados e dois aeroplanos. Deprimido e desgostoso com a má aplicação do seu invento (guerra mundial, revolução em SP) Alberto Santos Dumont se suicidou em 1932, no Guarujá, SP, antes de completar 60 anos de idade}. Depois de sete expedições do governo, a guerra do Contestado terminou com a prisão do último líder (1916). Cerca de 20.000 pessoas morreram e 9.000 casas foram queimadas. A república diabólica venceu a monarquia celestial. 

A economia brasileira se manteve essencialmente agrícola (café como principal produto). Campônios sem terra para lavrar, sem gado para cuidar, sem mina para explorar, vieram para a cidade e se empregaram em serviços gerais na indústria, no comércio, nas casas de família; formavam a camada baixa da sociedade. Profissionais liberais, funcionários públicos, oficiais militares, clérigos, proprietários de imóveis, pequenos comerciantes, formavam a camada média da sociedade. Fazendeiros, usineiros, industriais, banqueiros, grandes comerciantes e bispos formavam a camada alta da sociedade (aristocracia rural e urbana). O espírito nobiliário e o desprezo por trabalho manual estavam enraizados na sociedade brasileira; as camadas alta e média tinham os olhos postos na França, Inglaterra e EUA e macaqueavam os costumes e a moda alienígenas. A cultura nacional era menosprezada (carnaval, música popular, esporte, literatura). A política nacional gravitava em torno dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais; os demais Estados seguiam a reboque. A competição pelos cargos eletivos primou pela deslealdade e violência. A disputa política estava adstrita aos membros das oligarquias regionais. No interior do país o mando político estava nas mãos dos coronéis. Havia permanente tensão entre governo federal e governo estadual. Cargos públicos eram preenchidos por apadrinhados; moralidade e eficiência pouco importavam. O diploma de bacharel em direito facilitava o acesso aos altos escalões da administração pública e a progressão nas carreiras política e diplomática. Havia fábricas (têxtil, química, farmacêutica, metalúrgica, mecânica, cerâmica, roupas, calçados, alimentos, bebidas, fumo, couro, borracha, madeira, mobiliário, papel), casas comerciais e bancárias, além das companhias (gás, seguros, navegação, estradas de ferro, mineração, transportes urbanos). Sem leis protetoras dos trabalhadores, os salários eram baixos, jornada de trabalho até 16 horas, famílias mal nutridas, moradias sem conforto, aluguel caro, saúde e higiene mal cuidadas, crianças e adolescentes submetidos ao regime de trabalho dos adultos, empregadores sem espírito humanitário.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

PLEBISCITO




O engodo. Entrou na pauta do governo o plebiscito, tipo de consulta que se faz ao povo sobre assunto de interesse geral visando a uma futura norma jurídica ou a um ato administrativo. Pelo que se vê do noticiário, a presidência da república, os deputados e os senadores estão ludibriando o povo. Todos fingem atender as reivindicações feitas nas recentes manifestações das ruas. Todos conhecem as reivindicações expostas de viva voz pela massa popular e repetidas através dos meios de comunicação social. Logo, plebiscito para saber o que todos sabem é perda de tempo. Então, porque está sendo ventilado? Porque esse tipo de plebiscito que visa a futuro ato legislativo ou administrativo depende de autorização do Congresso Nacional, o que coloca em relevo o papel dos deputados e senadores. Desprestigiados perante a nação os políticos valem-se desse processo para melhorar a imagem; de olhos postos na próxima eleição, eles aparecerão como pessoas interessadas na defesa dos interesses do povo.

A soberania popular. Os parlamentares utilizarão sofismas para escapar das propostas do povo. Colocarão na mesa argumentos tais como: o plebiscito serve apenas para orientar os governantes, não cria obrigação alguma; o Congresso Nacional exerce a soberania constituída, por isto é livre para dispor como bem lhe convier, inclusive para decidir contra o resultado do plebiscito. A canalha congressista silencia sobre o fundamento da democracia: todo poder emana do povo. A soberania é do povo e não dos seus representantes; estes a exercem em nome daquele. O resultado do plebiscito é uma decisão do povo e não mera opinião ou sugestão como quer essa canalha. A decisão do povo resulta do exercício direto da soberania popular; obriga governantes e governados enquanto vigorar a democracia.

Ausência de representatividade moral. Nos negócios do Estado brasileiro, os congressistas só representam o povo formalmente em razão do voto. Materialmente, há muitos anos eles não representam o povo. Cuidam apenas dos negócios próprios e dos grupos aos quais estão vinculados política e economicamente. Difícil encontrar entre eles alguém que esteja a serviço do bem comum e da felicidade da nação. Fácil encontrar entre eles criminosos, inclusive condenados pelo Judiciário no devido processo jurídico. Ao invés de homens e mulheres virtuosos, de pessoas do mais alto padrão ético e intelectual para bem representar a nação e desempenhar a relevante função de ditar as leis, encontram-se no Congresso Nacional pessoas de má formação moral, gente que não presta. Estas pessoas é que trabalham para que as reivindicações do povo sejam tratadas mediante Emenda à Constituição e não por uma assembléia constituinte. No processo de emenda elas podem manipular à vontade e se valer da politicagem de sempre. Da assembléia constituinte essas pessoas podem ficar fora porque haverá candidaturas avulsas, candidatos sem filiação partidária. O povo já se manifestou contra os partidos atuais. A escolha dos deputados constituintes caberá ao povo. A escória poderá ser excluída, o que não interessa aos que se encontram no Congresso Nacional. 

Plebiscito aceitável. Diante da voz do povo ouvida nas ruas em movimento social legítimo e oportuno, o plebiscito cabível seria exclusivamente para o povo decidir se quer manter a atual Constituição ou se quer uma nova. Se a resposta for positiva, a Presidente da República convoca assembléia constituinte composta por deputados exclusivos, filiados ou não a partidos políticos, eleitos pelo povo. Encerrados os trabalhos, extinguem-se os mandatos sem se converterem em mandatos ordinários. Esse tipo de plebiscito independe de autorização do Congresso Nacional. Basta decreto presidencial.

Emenda à Constituição. Caso a decisão do povo seja negativa, não haverá nova Constituição; as reivindicações do povo serão lançadas na vigente Constituição através de emenda e em leis ordinárias. Se o povo for consultado novamente sobre quais reivindicações pretende que sejam disciplinadas na vigente Constituição e em lei ordinária, o plebiscito, neste caso, dependerá de autorização do Congresso Nacional, porque não visa a um processo constituinte e sim a um processo legislativo da competência daquele poder constituído.   
 


quarta-feira, 26 de junho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO IV



O ato formal da instauração da república foi o decreto nº. 1 de 15 de novembro de 1889. Comissão nomeada pelo governo provisório elaborou projeto de Constituição, submeteu-o à apreciação de Ruy Barbosa e do Congresso Constituinte que, sob o influxo liberal, promulgou-o como Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1891). Foi adotado o modelo republicano laico, federativo e democrático. As províncias foram convertidas em Estados unidos por um vínculo perpétuo e indissolúvel, apesar de nada ser perpétuo ou indissolúvel no mundo político. Dos fatos sociais decorrem mudanças. A realeza defensora perpétua do Brasil teve o seu ocaso em 1889. A federação indissolúvel dissolveu-se duas vezes (1930 e 1964) e se restabeleceu outras duas vezes (1946 e 1988).

O município neutro criado no Império foi convertido em Distrito Federal. Reservou-se uma área de 14.400 km² no planalto central para nela ser construída a futura capital do Brasil (o que se tornou realidade 70 anos depois com a construção de Brasília). Criou-se o mecanismo da intervenção federal nos Estados para: (1) repelir invasão estrangeira (ou de um Estado em outro); (2) assegurar a integridade nacional, o respeito aos princípios constitucionais, o livre exercício de qualquer dos poderes públicos estaduais e a execução das leis e sentenças federais; (3) reorganizar finanças estaduais; (4) por termo a guerra civil. Foram estabelecidos limites ao poder de tributar. A competência tributária foi distribuída entre a União e os Estados. O legislador constituinte arrolou as atribuições federais e deixou para os Estados as atribuições residuais; aboliu privilégios de nascimento e foros de nobreza; extinguiu as ordens honoríficas com todas as suas prerrogativas e regalias, os títulos nobiliárquicos e de Conselho; tornou obrigatório o serviço militar; vedou guerra de conquista; instituiu tribunal para liquidar as contas do governo e verificar a sua legalidade antes de serem prestadas ao Congresso Nacional; permitiu emendas à Constituição (excetuadas as cláusulas pétreas, qualquer dispositivo podia ser alterado mediante procedimento legislativo especial).

O exercício do poder político coube a três órgãos da soberania nacional, independentes e harmônicos entre si: legislativo, executivo e judiciário. O poder moderador concentrado em um só órgão soçobrou junto com a monarquia. A função moderadora sob o novo regime descentralizou-se e assumiu a forma de controle recíproco entre os poderes constituídos (sistema de freios e contrapesos). Foram adotados: (1) o sistema de governo representativo e presidencialista; (2) o modelo bicameral de Legislativo (Câmara dos Deputados + Senado) e legislatura de três anos, assegurada representação da minoria. No exercício do mandato os parlamentares eram invioláveis por seus votos, opiniões e palavras; não podiam ser presos ou processados criminalmente sem prévia licença das suas respectivas casas legislativas. O Senado era presidido pelo Vice-Presidente da República, porém, se funcionasse como tribunal de justiça para julgar o Presidente da República, seria presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Neste caso, se houvesse condenação, a pena aplicada limitava-se à perda do cargo e à incapacidade para exercer outro cargo público.

O voto era direto e reservado aos cidadãos maiores de 21 anos, desde que alistados (o que implicava saber ler e escrever). Mulheres, mendigos, analfabetos, soldados e religiosos não foram incluídos no processo eleitoral. A cidadania podia ser suspensa por incapacidade física ou moral e por condenação criminal. O brasileiro perdia a cidadania por naturalização em país estrangeiro, ou por aceitar sem licença do governo brasileiro emprego ou pensão de governo estrangeiro. O Presidente da República era eleito pelo sufrágio direto para um mandato de quatro anos, proibida a reeleição; estava sujeito a processo perante o STF nos crimes comuns e perante o Senado nos crimes de responsabilidade. Competia-lhe: promulgar e publicar as leis; declarar a guerra, celebrar a paz e decretar o estado de sítio; relatar a situação do país ao Congresso Nacional e convocá-lo em caráter extraordinário; manter relações com nações estrangeiras, negociações e tratados na área internacional; nomear ou demitir livremente os ministros de Estado; prover os cargos civis e militares federais; nomear os juízes do STF, magistrados federais, ministros e membros do corpo diplomático e consular; exercer o comando supremo do Exército e da Marinha (a Aeronáutica ainda não existia). As forças armadas fundadas na hierarquia e na disciplina foram erigidas em instituições nacionais permanentes destinadas à defesa da pátria, da Constituição e da lei. Os oficiais do Exército e da Marinha só perderiam as patentes se condenados à pena de prisão superior a dois anos. Os militares teriam foro especial nos delitos militares.

O primeiro mandato presidencial coube aos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto (1891 a 1894). Seguiram-se: Prudente de Morais (1895 a 1898), Campos Sales (1899 a 1902), Rodrigo Alves (1903 a 1906), Afonso Pena e Nilo Peçanha (1907 a 1910), Hermes da Fonseca (1911 a 1914), Wenceslau Brás (1915 a 1918), Epitácio Pessoa (1919 a 1922), Artur Bernardes (1923 a 1926) e Washington Luis (1927 a 1930).

Aos magistrados foram dadas garantias de vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos; proibiu-se foro privilegiado, salvo para as causas que por sua natureza fossem da competência de juízos especiais. Nenhum recurso judicial era permitido contra: (1) a intervenção federal nos Estados; (2) a declaração do estado de sítio; (3) a verificação dos poderes, reconhecimento, posse, legitimidade e perda de mandato dos membros do Legislativo e do Executivo. Esta última vedação ensejou abusos e fraudes eleitorais que desembocaram na revolução getulista (1930). Aos tribunais era defeso conhecer atos do Legislativo ou do Executivo praticados na vigência do estado de sítio. Havia judiciário federal e judiciário estadual, cada qual respeitando a competência do outro, consoante forma federativa de Estado adotada.

Aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país era assegurada inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade. Além dos explícitos, o legislador constituinte admitiu direitos implícitos que derivassem da forma de governo e dos princípios adotados. As garantias ficavam suspensas durante o estado de sítio. Ninguém estava obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei. Todos eram iguais perante a lei. Nenhum imposto de qualquer natureza seria cobrado sem lei que o autorizasse. Todos eram livres para se associar ou se reunir sem armas, entrar ou sair do país, manifestar o pensamento, exercer qualquer ofício ou profissão, representar aos poderes públicos, denunciar abusos das autoridades e promover a responsabilidade dos culpados. A religião podia ser praticada pública e livremente (sem forma exterior de templo se não fosse católica). Por motivo de crença ou de função religiosa nenhum brasileiro podia ser privado dos seus direitos civis e políticos, nem se eximir do cumprimento de dever cívico. Nenhum culto ou igreja gozaria de subvenção oficial nem teria relações de dependência ou aliança com governo federal ou estadual. O ensino era laico nos estabelecimentos públicos. A casa e a correspondência eram invioláveis. Os cargos públicos eram acessíveis a todos.

terça-feira, 25 de junho de 2013

CONSTITUINTE



Assembléia Nacional Constituinte.  Toma esse nome a reunião de pessoas destinada a elaborar a lei fundamental do Estado. Afina-se à democracia quando seus membros são escolhidos pelo povo.

Assembléia Nacional Constituinte Exclusiva. Uma vez elaborada a lei fundamental do Estado, a assembléia se dissolve sem se converter em assembléia constituída (câmara ou senado); os deputados constituintes também não se convertem em parlamentares do poder constituído (deputados federais ou senadores da república).

Limites jurídicos da assembléia. Não há. Os limites são morais e políticos. A assembléia deve refletir os valores morais vigentes na sociedade e adotar o sistema de governo republicano e democrático que se extrai da recente manifestação popular. Dentro desses parâmetros de legitimidade e consoante a voz do povo, a assembléia estabelecerá a nova ordem política, econômica e social.    

Convocação. Ato puramente político. Cabe ao Chefe de Estado e de Governo (Presidente da República) praticá-lo sem necessidade de amparo no direito em vigor. A ordem que se deseja implantar tem seus próprios alicerces; não há de se firmar na ordem que se deseja mudar. A norma posterior substitui (revoga ou derroga) a norma anterior.

Plebiscito para convocação. Facultativo. Cabível se o Chefe de Estado e de Governo pretende consultar o povo sobre a oportunidade e conveniência de uma nova Constituição. Independe de autorização do Congresso Nacional. Cuida-se no contexto atual de iniciativa política exclusiva e genuína, fora da incidência de preceitos da ordem jurídica vigente (CF 49, XV + lei 9.709, 2º, §1º). Ademais, elaborar a Constituição do Brasil é ato do poder constituinte nacional e não ato legislativo ou administrativo do poder constituído. Exercício direto da soberania popular segundo o enunciado democrático: todo poder emana do povo. A vontade popular já foi manifestada nas passeatas. Na atual conjuntura, embora facultativo, o plebiscito é desnecessário; a assembléia constituinte pode ser convocada mediante decreto presidencial. 

Deputados constituintes. Avulsos, sem filiação partidária. Nas passeatas o povo rechaçou os partidos políticos atuais e mostrou que os mandatários em exercício no Congresso Nacional não o representam de modo legítimo e honroso. Os candidatos devem ter idoneidade moral e intelectual para a função.

Manifestação popular.  Estado = povo + governo + território. Em movimento social de protesto e reivindicação a violência é forma de expressão direta e legítima quando a causa é justa. A fúria do povo é normal e revela descontentamento com o status quo. Ao depredar o patrimônio público a massa popular está depredando o que é dela mesma; ao depredar o patrimônio particular, está danificando o que não lhe pertence; em ambos os casos, a massa popular está descarregando energia acumulada e mostrando a sua insatisfação. No Brasil há exemplos desse fato social tanto no Império como na República. Na Europa os exemplos mais lembrados são as revoluções francesa e russa. Depredar é inevitável. Sem isto as autoridades e os que se beneficiam do status quo se acomodam e o povo continua a ver navios. O jogo social é esse: o governo defende a ordem vigente e o povo promove a desordem para implantar nova ordem. O povo luta por um Brasil melhor, mesmo sem um projeto racional bem elaborado. Comissão de notáveis organizada pela Presidente da República pode formular esse projeto que servirá de base para o trabalho da assembléia constituinte. 

Suspensão do movimento social. Os manifestantes devem suspender o movimento por alguns meses e aguardar o efeito das medidas já tomadas pelo governo. A Presidente da República veio a público e mostrou-se afinada com a vontade do povo. Ouviu a voz das ruas. Merece crédito. As lideranças difusas e os meios de comunicação social devem contribuir para acalmar os manifestantes e suspender o movimento (até para que este não se banalize e perca a legitimidade).

sábado, 22 de junho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO III



A deposição pelo governo central da junta governativa eleita pelo povo causou forte reação liberal em Pernambuco (1822). Com a outorga da Carta Imperial (1824) a oposição republicana inflamou-se. O caldo entornou quando o governador escolhido pelo povo (Paes de Andrade) foi substituído por outro (Pais Barreto). Os pernambucanos recusaram o indicado, mantiveram o eleito, romperam com o poder central e organizaram a Confederação do Equador (referência à linha planetária). As províncias do Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e Bahia aderiram à confederação. Os líderes confederados convocaram assembléia constituinte para organizar um Estado nos moldes dos EUA. Divergências internas enfraqueceram o movimento republicano que terminou derrotado pelas forças imperiais de terra e mar.

No Sul, a Província Cisplatina pretendia desligar-se do Brasil e integrar-se às Províncias Unidas do Rio da Prata (Argentina). Apoiados pela população local, os platinos invadiram a província. O governo brasileiro reagiu com força militar (1825). Três anos depois, com a intermediação da Inglaterra, as partes beligerantes celebraram a paz, ocasião em que foi reconhecida a independência da Cisplatina e a sua conversão em Estado soberano: República Oriental do Uruguai (1828).

No período da regência que se seguiu à abdicação de Pedro I (1831 a 1840) houve levantes populares como a cabanagem, na Província do Grão-Pará, a sabinada na Província da Bahia e a balaiada, na Província do Maranhão. A cabanagem proveio das agruras daquela gente pobre e trabalhadora (sertanejos, ribeirinhos, negros, índios, caboclos, mulatos), cujas habitações pareciam cabanas, de onde derivou o nome desse movimento social (1835 a 1840). Os cabanos pleiteavam melhores condições de vida. Desatendidos e reprimidos pelo governo, reagiram e partiram para a luta armada. Sem planejamento, guiavam-se pela emoção e pela intuição. Expulsaram o presidente da província, assumiram o governo, mas não sabiam o que fazer. Embora insatisfeitos com o status quo, faltava-lhes ideário e projeto de mudança (só vontade e insatisfação eram insuficientes para governar). A sabinada, nome derivado do seu líder, o médico Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, foi uma revolta urbana que obteve a adesão de parte das forças imperiais, libertou Bento Gonçalves da prisão em Salvador, expulsou o presidente da província e proclamou a República da Bahia (1837 a 1838). Por causa do seu ofício, Francisco dos Anjos Ferreira recebeu o apelido de Balaio. O movimento liderado por ele e que se caracterizou como guerrilha rural, recebeu o nome de balaiada. Ele se revoltou contra a autoridade pública quando viu impunes os policiais que violentaram suas duas filhas. À semelhança do outro Ferreira (Virgulino, o Lampião) formou um bando, percorreu o interior da província praticando violência e ampliou sua revolta contra o governo imperial (1838 a 1841).

Os distúrbios continuaram com Pedro II no governo (maioridade antecipada). Em Pernambuco, marginalizados da atividade econômica, os brasileiros revoltaram-se contra os lusitanos (comerciantes e senhores de engenho). Denominado revolta praieira (nome derivado da Rua da Praia onde se localizava o jornal dos liberais) o movimento começou na capital e adentrou a província apoiado pelos liberais radicais (1844 a 1850). Os pernambucanos almejavam participar da atividade comercial, obter garantia de trabalho e voto livre e universal, entre outros direitos. No Sul, descontentes com a centralização política e com a concorrência platina no comércio do couro e do charque, ruralistas se revoltaram. Na estância, peões e escravos largavam o trabalho e pegavam em armas para defender os interesses do patrão e suas idéias separatistas e republicanas. Conhecido como guerra dos farrapos, esse movimento foi liderado por Bento Gonçalves, aclamado Presidente da República Riograndense (1835 a 1845). A revolução farroupilha estendeu-se à Província de Santa Catarina onde foi proclamada a República Juliana. Houve, ainda, operações militares na Argentina, contra o governo de Rosas (1851 a 1852); no Uruguai, contra o governo de Aguirre (1864); e no Paraguai, contra o governo de Solano Lopez (1864 a 1870).

A deposição de Pedro II resultou do golpe contra a monarquia desferido por um grupo de militares. A população ficou surpresa. Política era negócio da elite (donos de fazendas e engenhos, banqueiros, empresários, bacharéis, intelectuais). Liberais de um lado e conservadores de outro disputavam o governo; todos ricos ou bem amparados no erário. A parcela humilde da população se entristeceu com o exílio do Imperador, homem sexagenário, culto, estimado e visto como um pai bondoso. O movimento republicano intensificou-se diante dos efeitos sociais e econômicos da abolição da escravatura. As idéias republicanas vinham de longe, motivaram a dissolução da primeira assembléia constituinte e geraram conflitos internos até desaguarem no golpe militar de 1889. Essas idéias espelhavam a vocação da América para a república (oposta à vocação da Europa para a monarquia). Depois da independência, as colônias européias no continente americano se tornaram repúblicas.

A América Portuguesa formara uma sociedade escravocrata do século XVI ao XIX. A pretexto da perda da mão-de-obra escrava, os fazendeiros e senhores de engenho colocaram-se contra a monarquia. Os destinos do Brasil continuavam nas alvas mãos do patriciado (feição aristocrática da sociedade brasileira). A exploração da borracha na região amazônica aumentou a riqueza da aristocracia rural, trouxe luxos urbanos e empregos a nordestinos e nortistas. No sul do Brasil, os cafeicultores progressistas reivindicavam maior autonomia às províncias e a descentralização do poder político visando à pronta e eficiente solução dos seus problemas. Pleiteavam incentivo à imigração, financiamento de ferrovias e crédito à produção. O setor agrário e o exportador predominavam na economia. O surto industrial, a expansão das ferrovias e dos estabelecimentos de crédito, o desenvolvimento do comércio e dos serviços urbanos geraram uma classe média urbana que pouco a pouco foi se fortalecendo com maior participação na vida política e se integrando à corrente republicana. Essa corrente ganhou um forte elo ao ser apoiada pela igreja católica desde que o governo imperial se recusou a acatar bula do Papa que proibia vínculo de católicos com maçons (1864). Obedecendo à bula, os bispos expulsaram os maçons das irmandades religiosas (1873). O governo imperial processou os bispos e os condenou à prisão com trabalhos forçados (depois, eles foram anistiados). Separação entre Estado e Igreja fazia parte do ideário republicano.

Após a guerra com o Paraguai, o exército brasileiro se fortaleceu e não mais se conformou com o pouco apreço que lhe devotava o mundo civil. Oficiais e alunos da Escola Militar aderiram ao positivismo de Augusto Comte. Isto lhes ensejou autoridade intelectual e um rumo político e ideológico seguro. Os militares estavam contrariados com algumas decisões do governo imperial, inclusive as concernentes à captura de escravos; achavam-se também no direito de participar do governo de modo mais efetivo. O militarismo integrou a vida republicana desde o nascedouro. O exército recrutou pessoal em todas as camadas sociais, equipou-se materialmente, elaborou doutrina militar e criou mentalidade própria das forças armadas, o que lhe ensejou papel institucional relevante.

terça-feira, 18 de junho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO II


O Poder Executivo e o Poder Moderador tinham como titular o Imperador. O Executivo era exercido através do ministério; o Moderador era privativo e exercido pessoalmente pelo Imperador. A função executiva consistia em abrir e encerrar as sessões anuais da Assembléia Geral Ordinária; expedir atos normativos necessários à execução das leis; prover o necessário à segurança interna e externa do Estado; declarar a guerra e fazer a paz; dirigir as negociações políticas com as nações estrangeiras e celebrar tratados de aliança; nomear magistrados, bispos, embaixadores e comandantes das forças armadas; prover benefícios eclesiásticos e empregos públicos; conceder cartas de naturalização, títulos, honras, ordens militares e distinções; outorgar beneplácito aos decretos dos concílios, letras apostólicas e quaisquer outras normas eclesiásticas que não contrariassem a Carta Imperial. A função moderadora consistia em nomear senadores e ministros, convocar reunião extraordinária da Assembléia Geral (Câmara + Senado), prorrogar ou adiar as reuniões ordinárias, sancionar os projetos de lei, dissolver a Câmara dos Deputados, aprovar e suspender as resoluções dos conselhos provinciais, suspender os magistrados, perdoar e atenuar penas impostas aos réus, conceder anistia. O Imperador exerceu plenamente o poder político: reinou e governou.

Nenhuma autoridade poderia avocar as causas pendentes ou sustá-las, nem rever os processos findos. Vedava-se foro privilegiado e comissões especiais nas causas cíveis e criminais, à exceção das causas que por sua natureza fossem da competência de juízos particulares. Previa-se a elaboração dos códigos civil e criminal para substituir as ordenações portuguesas. Os juízes eram vitalícios, removíveis ou suspensos quando o Imperador, após ouvir o magistrado e o Conselho de Estado, provesse a queixa que lhe fosse apresentada. Os juízes respondiam por abuso de poder e prevaricação. Na hipótese de suborno, peculato e concussão, qualquer do povo poderia promover ação popular contra o juiz infrator.

Os direitos fundamentais da pessoa natural e do cidadão constavam do texto no modelo liberal europeu do século XIX (1801-1900). A Carta Imperial garantia aos brasileiros a inviolabilidade dos direitos civis e políticos fundados na liberdade, segurança individual e propriedade. Esses direitos não podiam ser suspensos, salvo por ato do Poder Legislativo nos casos de rebelião ou de invasão inimiga. Se a assembléia não estivesse reunida, o Imperador podia tomar essa providência (suspensão) como medida provisória e indispensável, revogando-a tão logo cessada a necessidade urgente que a motivou. Ninguém seria perseguido por causa de religião, desde que respeitasse a do Estado (católica) e não ofendesse a moral pública. Eram amplas as liberdades de pensamento e locomoção. O direito de propriedade era pleno, porém, se o bem público assim o exigisse, o governo poderia usar a propriedade privada mediante prévia indenização. Os inventores tinham a propriedade das suas descobertas ou produções (com privilégio exclusivo temporário ou indenização pela perda que sofressem em virtude da vulgarização). A casa e as cartas eram invioláveis. Todo cidadão podia apresentar petição ou reclamação por escrito aos poderes públicos e expor qualquer infração à Carta (distingue-se o gênero petição da espécie reclamação). Os princípios da liberdade e da legalidade orientavam a declaração de direitos na sua formulação clássica: ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei. Nenhuma lei seria estabelecida sem utilidade pública e nem teria efeito retroativo. Somente nos limites da lei alguém poderia ser privado da sua liberdade. Ninguém seria sentenciado senão pela autoridade competente e em virtude de lei anterior. A lei era igual para todos, na proteção e no castigo. Todo cidadão podia ser admitido aos cargos públicos de acordo com os seus talentos e virtudes; somente por utilidade pública seriam admitidos privilégios essenciais ligados aos cargos. Os empregados públicos respondiam pelos abusos e omissões praticados no exercício das suas funções. Foram abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente (foram vedadas penas cruéis). Nenhuma pena passaria da pessoa do delinqüente. As cadeias seriam seguras, limpas, bem arejadas e haveria casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza dos seus crimes (o legislador brasileiro é bom no papel; as leis brasileiras são avançadas para o seu tempo; já o cumprimento delas...).

A Carta Imperial organizava um Estado católico e considerava constitucional apenas o que dizia respeito aos limites e atribuições dos poderes políticos e aos direitos individuais. A reforma dessa matéria exigia um procedimento legislativo especial. As demais matérias podiam ser modificadas mediante o procedimento legislativo ordinário. Em matéria econômica e social a Carta limitava-se a: (1) abolir as corporações de ofício; (2) autorizar todo gênero de trabalho, de cultura, indústria e comércio, desde que não fosse prejudicial aos costumes, à segurança e à saúde dos cidadãos; (3) garantir os socorros públicos, a instrução primária gratuita, colégios e universidades para o ensino das ciências, belas letras e artes.

A economia do Brasil imperial repousava sobre o latifúndio (fazendas e engenhos) e o trabalho servil (escravos e agregados). Exportava-se café, açúcar, algodão, fumo, cacau, erva-mate, couro. Importavam-se máquinas, equipamentos, ferramentas e bens de consumo. A lavoura cafeeira predominou a partir de 1840. Nessa época tem inicio o processo de colonização interna com a vinda de imigrantes europeus por iniciativa dos fazendeiros e do governo. No primeiro caso, havia servidão por dívida decorrente: (1) das despesas de viagem financiada pelo fazendeiro; (2) das compras de mantimentos e utensílios no armazém do fazendeiro. No segundo caso, o governo brasileiro incentivava a imigração, distribuía terras e prestava ajuda financeira durante um ano aos imigrantes. Algumas famílias de imigrantes tiveram sucesso; outras se agregaram às fazendas ou se mudaram para centros urbanos. Cerca de 3.000 famílias estadunidenses de pele alva imigraram do sul dos EUA após a guerra da secessão (1865). A colônia estadunidense de São Paulo teve sucesso (hoje, cidade de Americana); a da Amazônia fracassou (vencidos pelas dificuldades na floresta, os gringos, na pobreza, assumiram postura cabocla).

Paulatinamente, a mão-de-obra escrava foi substituída pela assalariada até a abolição final da escravatura, quando o negro deixa de ser coisa e adquire o status de pessoa (1888). Sujeito de direitos, mas pobre e analfabeto, o negro livre só conseguiu cidadania ativa com o advento da república após aprender a ler e a escrever (sem o que não se alistava eleitor). A sua ascensão social foi lenta e sofrida em virtude da situação de extrema inferioridade da qual partiu e para a qual contribuíam o preconceito, a preferência pelo imigrante europeu e o caráter aristocrático da sociedade brasileira (branca e mestiça). Na zona urbana o comércio estava nas mãos de portugueses, ingleses e franceses. A indústria (tecidos, chapéus, cerveja, sabão) desenvolve-se a partir de 1850 quando são fundados bancos e companhias (de gás, seguros, navegação, estradas de ferro, mineração, transportes urbanos).

sábado, 15 de junho de 2013

SUPREMO TRIBUNAL E LEGISLATIVO



Senador da república propõe ação judicial de mandado de segurança para obstar o andamento de projeto de lei sobre novos partidos políticos. Sustenta que a matéria do projeto é inconstitucional por colidir com o artigo 17 caput e §3º, da Constituição. Alega que foi violado o seu direito líquido e certo de não participar da elaboração de lei inconstitucional. A ação foi recebida no Supremo Tribunal Federal (STF). O relator mandou suspender os trâmites do projeto a pedido do impetrante. Na sessão de julgamento (12 e 13/06/2013) os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli concederam a ordem para arquivar o projeto. Os ministros Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio negaram a ordem. Faltam os votos da ministra Carmen Lúcia e dos ministros Joaquim Barbosa e Celso de Mello.

Os ministros examinaram a admissibilidade do mandado sob dois aspectos: (I) a presença de direito líquido e certo; (II) a competência do tribunal para intervir no processo legislativo.  A maioria decidiu pela inadmissibilidade do mandado.  

A exigência de liquidez e certeza consta do inciso LXIX, do artigo 5º, da Constituição da República nos seguintes termos: Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.

A unidade semântica da expressão líquido e certo é defendida por alguns tratadistas como termo complexo de uma única idéia. Todavia, possível é concebê-la como pluralidade semântica. Liquidez é expressão que deriva de um dos estados da matéria (sólido, líquido, gasoso). Na esfera jurídica, liquidez significa o estado em que se encontra o direito para satisfação direta e imediata; montante de um crédito sem despesa, acréscimo ou desconto. Direito líquido é como água transparente em que se pode mergulhar com segurança sem necessidade de limpeza prévia. Certeza é um dos estados da inteligência (ignorância, dúvida, opinião, certeza). Na esfera jurídica, certeza significa evidência do direito, apreensão do objeto direta e sem jaça. Líquido é o direito que pode ser exercido de imediato sem necessidade de integração; para o seu adimplemento não exige procedimentos intermediários de liquidação judicial ou extrajudicial. Certo é o direito cuja existência está provada e se mostra evidente à inteligência; apreensível de forma direta, dispensa demonstração.

Os votos vencedores reconheceram que não há direito líquido e certo na impetração, o que retira do impetrante legitimidade para ocupar o pólo ativo do mandado de segurança. Na sua liberdade pessoal e de representante de Estado federado, o senador pode participar ou não participar dos tramites de qualquer projeto de lei. Se participar, ele poderá livremente se posicionar a favor ou contra a matéria em discussão. Essa liberdade não foi violada. O impetrante criou artificialmente um direito para levar o conteúdo do projeto ao conhecimento do STF e assim abortar a gestação da lei mediante o controle prévio da constitucionalidade.

O mandado de segurança não podia ser recebido como ação coletiva, nem como ação direta de inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade, porque o pólo ativo dessas ações está vedado a pessoa natural, sendo reservado às entidades relacionadas na Constituição, tais como: partido político, organização sindical, associação civil, chefe de governo federal ou estadual, mesa do senado, da câmara ou de assembléia legislativa. Destarte, o exame das outras matérias estava prejudicado. Mesmo assim, os ministros resolveram avançar.

Os votos vencedores estão em sintonia com o direito vigente no Brasil. Em não havendo vício nos trâmites do projeto de lei, o controle jurisdicional é incabível. Em razão da independência dos poderes declarada no artigo 2º da Constituição, o Judiciário não pode impedir a deliberação do Senado e da Câmara sobre o conteúdo das proposições legislativas. Na vigente ordem jurídica brasileira a regra é a não intervenção do Judiciário no processo legislativo. A intervenção é excepcional, só admissível quando: (1) normas processuais forem desrespeitadas pelo legislador (violação do devido processo legislativo); (2) proposta de emenda à Constituição tender a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais. Nestes casos excepcionais, o controle jurisdicional se faz antes de a norma ingressar no ordenamento jurídico do Estado. Em ambos os casos, o controle é prévio e repressivo: impede ou proíbe o curso do projeto e a deliberação da proposta.

A suspensão dos trâmites do projeto de lei no caso em tela caracterizou injustificável agressão ao direito, um ato abusivo do tribunal. Felizmente até agora, a maioria dos ministros decidiu cassar a liminar e indeferir a maliciosa ação mandamental. Ante a inexistência de vício formal, o projeto de lei há de seguir seus trâmites pelo Legislativo e Executivo. A comissão de constituição e justiça de cada casa legislativa controla a constitucionalidade do projeto. Se aprovado, o projeto é enviado à presidência da república onde é submetido a novo controle de constitucionalidade. Se não for vetado, o projeto converte-se em lei ao ser promulgado e publicado. Além desse controle interno no processo legislativo, há o controle externo feito pelo Judiciário quando provocado por ação judicial adequada.

Na jurisdição constitucional (prestada pelo Judiciário) o controle prévio é exceção; a regra é o controle posterior, quando a norma já se integrou à ordem jurídica. O controle prévio de caráter excepcional, técnico e democrático se distingue do controle preventivo ideológico e autocrático. Controle preventivo é tão audaz, safado e violento como a guerra preventiva inventada pelo governo dos EUA. Parte da jurisprudência reflete idéias e práticas autocráticas de alguns períodos da história brasileira. Em relação ao período democrático atual essa jurisprudência é anacrônica. Conservadores por profissão, alguns juízes demoram a se adaptar aos novos tempos; outros gostam dos velhos tempos, nutrem caráter autoritário e praticam arbitrariedade.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO


A primeira experiência constitucional do Brasil foi de reino unido ao de Portugal. A rainha Maria, o príncipe João, familiares, cortesãos, burocratas, serviçais e forças armadas trasladaram-se de Portugal para a América Portuguesa no início do século XIX a fim de escapar da investida de Napoleão no continente europeu. O príncipe regente (a rainha foi considerada incapaz de reinar por debilidade mental) abre os portos brasileiros ao comércio internacional em 1808. Cresceram as importações e exportações de mercadorias. A colônia progredia enquanto a metrópole estagnava e sofria com a incômoda presença dos franceses. Da colônia americana João declarou guerra à França e invadiu a Guiana Francesa com apoio da Inglaterra que, em troca, recebeu algumas vantagens, tais como: renovação dos direitos sobre a Ilha da Madeira, porto em Santa Catarina, esquadra de guerra no litoral brasileiro, juizes por ela nomeados para aplicar a jurisprudência inglesa nos julgamentos de súditos ingleses residentes na colônia, abolição gradual da escravatura, reexportação de gêneros tropicais, tarifas alfandegárias preferenciais.

O príncipe regente elevou o status da colônia americana para reino brasileiro em 1815. Certamente, o príncipe lusitano sentia-se infeliz e humilhado governando de uma colônia. Rei reina em reino. O novo reino rege-se pela lei fundamental do velho reino português. Com a morte da rainha em 1816, o príncipe herdeiro, agora com o título de D. João VI, assume a coroa real, mas permanece no reino brasileiro, mesmo cessada a ameaça napoleônica. Houve razões estratégicas, além do fator psicológico, para a expedição da carta régia que elevou a colônia a reino. Os defensores do absolutismo monárquico reagiam ao movimento liberal e constitucionalista na Europa e temiam seus efeitos na América. No Congresso de Viena de 1814 a 1815, o representante do monarca francês sugeriu a elevação do status do Brasil sob o argumento de que isto contentaria os súditos brasileiros e desestimularia a expansão do liberalismo. A esperteza durou pouco. A revolução liberal deflagra-se na cidade do Porto e toma conta de Portugal em 1820. Os revolucionários organizam uma junta governativa que convoca as Cortes Gerais Constituintes. Biparte-se o exercício do poder: Cortes + Rei. Por discordarem das propostas prejudiciais ao Brasil, os deputados brasileiros eleitos pelas províncias brasileiras às Cortes reunidas em Lisboa foram hostilizados pelos deputados portugueses, fato que Pedro menciona na fala do trono de 1823. A Constituição do Reino Unido (Brasil + Portugal) veio à luz em 1822, nos moldes propostos pelos deputados portugueses.

Com a vitória dos liberais lusitanos e o retorno da sede da monarquia a Portugal, as Cortes sentiram-se fortalecidas e tomaram várias medidas constrangedoras, entre as quais, o envio de tropas para substituir as que se encontravam no Brasil e que se mostravam leais a Pedro. A intenção era a de recolonizar o Brasil. O príncipe resistiu às ordens emanadas das Cortes e rompeu o vínculo do reino brasileiro com o reino português em 1822. Aristocratas, governadores e tropas leais a Portugal ensejaram combates de norte a sul do Brasil. As forças nacionais organizadas por José Bonifácio e integradas por brasileiros e por estrangeiros contratados conseguiram derrotar as tropas lusas. Apadrinhados pela Inglaterra, os governos do Brasil e de Portugal celebraram a paz por tratado de 1825, em que o governo português do pai (D. João VI) reconhecia a independência do Brasil, e o governo brasileiro do filho (D. Pedro I) se comprometia a pagar dois milhões de libras esterlinas a Portugal a título de indenização. Essa quantia correspondia à dívida de Portugal com a Inglaterra e saiu dos cofres brasileiros diretamente para os cofres britânicos.

Convocada por Pedro em junho de 1822, a assembléia constituinte reuniu-se em maio de 1823. Os anseios republicanos ali manifestados algumas vezes de modo grosseiro e ofensivo levaram-na à dissolução por decreto do príncipe, cioso do trono, do poder moderador e da liberdade dentro da ordem (12.11.1823). Tropas cercaram o prédio para proteger deputados monarquistas das agressões de pessoas que arregimentadas pelos deputados republicanos lotavam a galeria e o recinto do plenário, segundo narrativa de Pedro quando imperador. Nesta mensagem, o imperador lembra a outra lida ao ser instalada a assembléia constituinte quando advertira os deputados de que a Constituição brasileira teria de ser digna dele. O Conselho por ele nomeado elaborou a primeira Constituição exclusivamente brasileira (1824). Destarte, o primeiro Chefe de Estado do Brasil independente (não mais reino unido) foi um príncipe português que outorgou uma Carta Imperial aos brasileiros, reinou por breve tempo, abdicou do trono em favor do filho (1831), voltou a Portugal, derrubou o rei Miguel, seu irmão, outorgou uma Carta Imperial aos lusitanos, colocou a filha no trono e morreu em paz (1834).

A primeira Constituição exclusivamente brasileira resultou do exercício autocrático do poder constituinte pelo príncipe. Daí ser mais apropriado tratá-la como Carta Imperial por seu parentesco com as cartas régias expedidas pelos monarcas. Reserva-se o termo Constituição para o documento gerado no exercício democrático do poder constituinte. O príncipe adotou para o Brasil o modelo da monarquia constitucional européia. Havia flexível separação entre quatro poderes: legislativo, executivo, moderador e judicial.

No império brasileiro o Poder Legislativo era exercido pelos representantes do povo escolhidos pelos eleitores de província que, por sua vez, eram escolhidos pelos eleitores de paróquia. O sistema era bicameral (Câmara dos Deputados + Câmara dos Senadores). A cidadania ativa cabia exclusivamente aos homens maiores de 25 anos, salvo se fossem casados ou oficiais militares com mais de 21 anos de idade, bacharéis formados ou clérigos de ordens sacras. Estavam excluídos do direito de votar nas assembléias paroquiais: (I) os filhos que estivessem na companhia dos pais (salvo se prestassem serviços em ofícios públicos); (II) os criados de servir e os criados da casa imperial que não portassem galão branco; (III) os administradores das fazendas rurais e de fábricas; (IV) os religiosos e quaisquer pessoas que vivessem em comunidade claustral; (V) os que não tivessem renda líquida anual de cem mil réis por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego. Para ser eleitor de província o cidadão devia ter uma renda líquida anual de duzentos mil réis. Para ser eleito deputado a renda anual do candidato devia ser de quatrocentos mil réis. Os libertos (ex-escravos) e os criminosos não podiam ser eleitores. Eram inelegíveis os estrangeiros naturalizados e os que não seguissem a religião do Estado (católica). Em virtude dessas restrições, o corpo eleitoral era pequeno e manipulável. A massa popular estava alijada do processo eleitoral.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

PILULAS



Na escola primária, minha professora ensinava: ao chegar a algum lugar você deve cumprimentar quem lá estiver. Achei aquilo bonito. Você deve cumprimentar os mais velhos e não esperar que eles te cumprimentem, ela dizia. Pensei: deixar de cumprimentar os mais novos também não é falta de educação? Pelo meu semblante ela certamente notou a minha estranheza. Claro que não a contestei. Nós, crianças, respeitávamos os pais, os professores e os idosos. Vejam como sou antigo! Coloquei a lição em prática. Como resposta, eu recebia olhares de censura que pareciam dizer: garoto atrevido! Naquele tempo criança não se metia na conversa de adulto. O meu cumprimento interrompia a reunião. Achei melhor ficar quieto. Seguiria a lição da professora quando fosse adulto. 

Minha mãe advertia: respeite suas namoradas; não faça mal a elas; lembre-se que você tem irmãs. Tradução: não transe com elas e não lhes tire a virgindade. Para noivar e casar a virgindade da moça era requisito essencial. Ao descobrir que a moça não era mais “moça” o marido enganado a devolvia à casa paterna. Se aquelas advertências maternas houvessem ocorrido nos anos 70 eu teria dito: pô mãe, antes de transar com a namorada lembrar da minha irmã? Isto é incesto psíquico! Não transar com a namorada por que tenho irmã? Isto é castração psíquica! Minha namorada de 14 anos era apetitosa. Polaca de olhos verdes, pele macia, seios arredondados, pernas torneadas, que meus fogosos 18 anos acariciavam. O pai dela não queria o namoro; só depois de a filha completar 16 anos e com alguém de futuro e não com um pé-rapado como eu. A mãe dela apoiava o namoro. Deixei-a virgem (a filha). As advertências da minha mãe funcionavam ainda; depois, caíram em desuso.  

Triste é constatar as dificuldades e o sofrimento dos nossos irmãos desafortunados. Os mais afortunados devem evitar o sentimento de culpa, regozijar-se e agradecer a Deus por não dependerem da previdência social para cuidar da saúde. A contribuição previdenciária paga por exigência legal é vista por alguns afortunados como contribuição aos desafortunados. Se houvesse a igualdade mencionada no direito e na política (e mais compaixão) a diferença entre afortunados e desafortunados não seria tão acentuada. O bem-estar e as condições para uma vida feliz devem ficar ao alcance de todos. Para atingir essa relativa igualdade há que evitar o nivelamento por baixo. O nivelamento há de ser por cima: enriquecer o pobre.

No Brasil, as famílias dos presidiários ganham salário enquanto perdurar a reclusão. Cada membro da família (esposa, companheira, filho) recebe quase o dobro do salário mínimo. Segundo o número de dependentes do criminoso, a renda mensal pode atingir mais de três mil reais. O salário-reclusão é pago com as contribuições do trabalhador à previdência social. Há trabalhador ganhando menos do que presidiário. Os recursos da previdência oficial devem beneficiar o trabalhador e não o criminoso. O trabalhador não deve ganhar menos do que o presidiário, nem o salário do professor ser inferior ao de motorista servidor público.

Da mentalidade tacanha provém a decisão dos governantes, a partir do governo Kubitschek, de reduzir a rede ferroviária. Para implantar a indústria automobilística não havia necessidade alguma de acabar com o transporte ferroviário. A república brasileira não estava obrigada a assinar contratos com a cláusula de abandono das ferrovias. Os países do hemisfério norte mantiveram as suas ferrovias, ampliaram a malha e aperfeiçoaram os trens. Por covardia e estupidez, os governantes brasileiros sucumbiram ante as exigências da indústria estrangeira.

O improvável equipara-se a uma fronteira móvel, hoje está no ponto x, amanhã no ponto y, à medida que se amplia o conhecimento humano. À medida que a ciência progride a ignorância regride. Com o conhecimento cresce a percepção da nossa ignorância. Quanto mais evolui o espírito humano mais a superstição empalidece.