segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

JESUS & SEXUALIDADE

O filme brasileiro “Porta dos Fundos – Especial de Natal – A Primeira Tentação de Cristo” teve sua exibição judicialmente impugnada. A autora da ação alega que o filme ofende o princípio da dignidade da pessoa humana e extrapola a liberdade de expressão ao retratar Jesus como homossexual pueril, a mãe dele (Maria) como adúltera desbocada e o pai dele (José) como idiota traído. A promotora de justiça opinou pelo deferimento do pedido da autora da ação. A juíza indeferiu o pedido de concessão liminar. A causa será julgada depois de cumpridos os trâmites legais. Apoiada na jurisprudência, a juíza disse que lhe cabe verificar tão somente a licitude ou a ilicitude das expressões artísticas, se incitam à violência, ao ódio, se violam direitos humanos. Concluiu não haver ilicitude no filme e sim humor de mau gosto, termos chulos, expressões grosseiras relacionadas aos símbolos religiosos, paródia satírica religiosa nada engraçada; que o assunto cabe ao crítico de arte e não ao juiz de direito. 
A sátira começa no título da obra, implícita referência à “A Última Tentação de Cristo” filme de Martin Scorsese pouco fiel à narrativa do Novo Testamento (parte cristã da Bíblia). No filme do diretor nova-iorquino nada havia de brega ou de baixo nível e sim a história de Jesus mostrada sob ângulo diferente, mais humano e menos divino. O filme brasileiro entra na categoria das pornochanchadas. Zombaria com o propósito de provocar escândalo e a reação do público cristão (católicos, protestantes, espíritas). Puro divertimento ao gosto do populacho, sem criatividade alguma, desprovido de razoável grau de inteligência e de imaginação. Bandalhice.
Há versões profanas extraídas dos evangelhos sobre a humanidade e a sexualidade de Jesus. O amor às crianças, visto como pedofilia. O amor aos apóstolos, visto como homossexualidade. O amor de Jesus por Maria Madalena, visto como bissexualidade. O apóstolo João, jovem adolescente, se dizia o amado de Jesus, o que lembra Sócrates e seus jovens amantes. Os apóstolos tinham ciúme das relações entre Jesus e Madalena (Pedro era o mais exaltado). Tiago e João queriam ser os preferidos. Os 10 apóstolos restantes protestaram. Houve mais apóstolos de ambos os sexos, porém só 12 do sexo masculino faziam parte do círculo interno traçado por Jesus. Dos 4 evangelistas somente João e Mateus são contemporâneos de Jesus. Quanto a Marcos e Lucas, não o conheceram. Dos evangelhos apócrifos também se extraem aspectos da humanidade e sexualidade de Jesus.
Depois de assistir ao filme do Scorsese (1988) e de ler “O Código da Vinci” de Dan Brown (2003), resolvi meter a minha colher nesse mingau. Escrevi “O Evangelho da Irmandade” (2006). Edição nacional limitada a 500 exemplares, sem fim lucrativo. Deixei-os fora do circuito comercial. Foram distribuídos gratuitamente a parentes, amigos e pessoas que se interessam pelo assunto. Restam 80 exemplares. Nos EUA, a versão do livro em inglês foi publicada nas duas modalidades: impressa e eletrônica. Antes da publicação, o editor ianque sugeriu algumas modificações, por mim acatadas, e emitiu a seguinte opinião traduzida do inglês para o português: Obra adequada à categoria e ao público alvo, única no gênero, cujo título reflete o conteúdo. Capa atraente para os leitores. [O título e a capa do livro foram idealizados por Odílio Abreu, meu concunhado que vive em Toronto/Canadá]. Palavras chaves apropriadas. Abertura do livro fascinante que induz o leitor a ir adiante na leitura. Referindo-se a mim, o editor prossegue: O autor de modo engenhoso, esforçou-se para reescrever a história de Jesus e outros líderes religiosos sob uma luz histórica diferente. Nas partes puramente narrativas há beleza na linguagem. O cenário realça a história e é importante para o enredo. O cenário é descrito sem retardar o passo, de maneira agradável. Clareza na imagem dos personagens. Boa descrição dos maneirismos e traços da personalidade dos personagens. O comportamento dos personagens parece real. Há entre eles uma dinâmica bem motivada e realista. A obra está repleta de personagens interessantes.     
A parte ficcional da obra ficou por conta da licença artística. As circunstâncias da concepção e do nascimento de Jesus e aspectos da sua juventude e maturidade são expostos de forma sintonizada com a vida real. O lado intelectual e místico de Jesus revela-se na escola de mistérios, no seu noviciado e gradativa ascensão às classes dos adeptos, dos profetas e dos iluminados, onde participava dos seminários em torno dos aspectos naturais e espirituais do mundo. Os meandros da revolução moral e religiosa vêm descritos segundo os procedimentos conspiratórios comuns à vida associativa dos humanos. A narrativa inclui o êxtase de Jesus na véspera da crucifixão, a encenada ressurreição, a organização da igreja primitiva, o papel de Maria Madalena e os últimos dias na Gália. Há interlúdios: homossexualismo, pedofilia, adultério, crime, suicídio, rebeldia, investigações, julgamentos, vida doméstica e social, primeira experiência sexual, namoro, núpcias, prole. Os interlúdios refletem o realismo e a verossimilhança do enredo.
O livro pode ser utilizado como roteiro de filme para cinema e televisão, como percebeu o arguto editor ianque, filme do nível igual ou superior ao dos filmes “A Última Tentação de Cristo” e “O Código da Vinci”. O livro inclui misticismo, filosofia, costumes, sensualidade, sem a lente clerical ou religiosa. Eventual sintonia com evangelhos apócrifos ou com manuscritos antigos deve ser debitada aos estudos realizados. Da pesquisa bibliográfica feita por mim, entre outras fontes, constam: “Antigo Testamento” (parte hebraica da Bíblia), “Novo Testamento” (parte cristã da Bíblia), "Antiguidades Judaicas" de Flávio Josefo, “La Vida Mística de Jesus”, de H. Spencer Lewis, "Imitação de Cristo", de Tomás de Kempis, “O Cristo Cósmico e os Essênios” de Huberto Rohden, "Nem Marx Nem Jesus" de Jean-François Revel, "O Evangelho Perdido” de Burton L. Mack, “O Santo Graal e a Linhagem Sagrada” obra coletiva (Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincoln), “Maria Madalena” de Margaret George, “Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto”, coletânea organizada por Hershel Shanks, “Operação Cavalo de Troia” de J.J. Benítez,

sábado, 21 de dezembro de 2019

RACIOCÍNIO POLÍTICO - 2

A civilização ocidental herdou da Grécia antiga a palavra política que significa arte de governar a cidade-estado. Na sequência histórica, o vocábulo adquiriu algumas conotações, tais como: [i] ciência e filosofia que têm por objeto o fenômeno político [ii] conjunto das diretrizes estabelecidas por organizações civis, militares, religiosas, para seu funcionamento e a consecução dos seus objetivos [iii] linhas de pensamento e de ação obedecidas de modo regular pelas pessoas, tanto na vida privada como nas relações sociais, componentes das respectivas visões de mundo. Destarte, entram no vocabulário expressões como estas: política nacional, política internacional, política do governo, política do tribunal, política partidária, política dos Neves, política de segurança, política fiscal, política educacional, política assistencial, política ambiental, política fundiária, política sindical, política empresarial, política da Igreja et cétera.
No que tange ao funcionamento do estado, a política consiste no conjunto de ideias, programas, projetos, meios e ações para realização do bem comum. No Brasil, o bem comum está sintetizado na bandeira nacional: ordem & progresso, harmonia desejável entre a estática social (equilíbrio) e a dinâmica social (movimento) referida por Augusto Comte. Os princípios e objetivos fundamentais do estado brasileiro constam da Constituição da República: [i] soberania, tripartição do poder político, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político [ii] independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre os estados, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos, repúdio ao terrorismo e ao racismo, cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, concessão de asilo político  [iii] construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e de outras formas de discriminação. [CR 1º/4º].
O governante que contrariar esses princípios e objetivos comete crime de responsabilidade, perde o cargo e fica inabilitado por 8 anos para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis. O atual presidente da república brasileira vem contrariando de forma contumaz e desabrida esses princípios e objetivos, quer na esfera interna, quer na esfera internacional. A instauração de processo de impeachment, nestas circunstâncias, é imperativo político, ético e jurídico. A nação brasileira não merece suportar a vergonha e os danos de ter um delinquente como chefe de estado e de governo. [CR 52, p.u. + 85/86]. 
Propósitos altruísticos são inerentes aos fins legítimos do estado. A atividade política compreende: [i] medidas voltadas para a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a justiça, a felicidade geral da nação, o bem estar do maior número possível de cidadãos, a segurança de todos, o desenvolvimento econômico e social [ii] elaboração das leis em sintonia com os princípios e objetivos fundamentais [iii] decisões alicerçadas na soberania nacional visando à estabilidade das instituições e aos bons resultados dos negócios do estado [iv]  formulação das políticas setoriais [v] execução menos onerosa das decisões formalizadas nas leis, nos decretos e nas sentenças judiciais.   
Como arte de governar o estado, a política tem aspectos racionais, sentimentais, éticos e estéticos decorrentes dos seus fins humanos, do seu pragmatismo e das diferentes forças sociais a que é chamada a coordenar. A política moderna supõe confronto entre forças sociais opostas que lutam pela conquista, manutenção e exercício do poder político. Tais forças são integradas por indivíduos carismáticos, grupos civis, militares, religiosos, partidos políticos e têm como objetivo assumir o governo do estado ou influir nas decisões governamentais de modo direto ou indireto, dar-lhe fisionomia e metodologia próprias, controlar a sociedade civil, disciplinar a conduta dos cidadãos, fiscalizar, incentivar e planejar a economia. Os opositores exercem pressão através dos seus representantes no Legislativo e dos movimentos sociais (petições, passeatas, comícios, invasões, assentamentos, tráfico de influência, desobediência civil).
O jogo político não tem sido limpo, quer no Ocidente, quer no Oriente. Apesar disto, a política não prescinde de elementos lógicos, éticos, estéticos, das linguagens técnica e erudita, dos meios de comunicação em massa, dos usos preventivo e repressivo da força física (polícia, exército), tudo com a finalidade de garantir a vigência e a eficácia das decisões governamentais. Isto pressupõe poder político, ou seja, aptidão e capacidade humanas iluminadas pela inteligência, movidas pela vontade e dirigidas a fins políticos. Nota-se, na estrutura do poder político, a presença das forças persuasivas e coercitivas de natureza física, moral e jurídica. A moralidade pública e a obediência ao ordenamento jurídico são coordenadas essenciais ao poder político e à nação. Em situação de normalidade a força física tem efeito dissuasivo. Esse tipo de força destina-se a manter a ordem e o respeito à lei. Nas relações internacionais, a política do estado pode ser de expansão, de aproximação ou de isolamento, motivada por ideologia ou não, seja por ambicionar domínio, seja por interesse econômico ou por intercâmbio cultural. A posição do estado no cenário internacional pode ser relevante ou insignificante, dependendo da clarividência ou da estupidez do seu governante.
Na maior parte dos estados democráticos modernos, o programa básico do governo vem desenhado na Constituição. A partir dessa base, cada governante estabelece as prioridades para o período do seu governo. Desde a experiência política da primeira metade do século XX (1901/1950), os governos têm adotado o planejamento social e econômico válido para certos períodos (anual, trimestral, quinquenal). O planejamento elaborado por equipe técnica é forma racional de administrar o patrimônio do estado. A lei orçamentária tem nele um guia seguro. Cuida-se de método de organizar serviços, obras e investimentos, calcular os recursos materiais e financeiros necessários às respectivas execuções, estipular metas. A corrupção, a ladroagem, a desonestidade em geral, são fatores corrosivos dos planos de governo com reflexos negativos na vida dos cidadãos. Algumas vezes, os planos, as leis orçamentárias, os decretos de execução, já saem viciados da fonte.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

RACIOCÍNIO POLÍTICO

De proposições antecedentes a inteligência infere proposição consequente. Esta operação mental recebe o nome de raciocínio. A forma silogística é modelar. Nas relações cotidianas, contudo, as pessoas não usam tal modelo. Da proposição antecedente menor partem direto para a proposição consequente. Ao invés de dizerem:  todo ser vivo é mortal (premissa maior); o grilo é ser vivo (premissa menor); logo, o grilo é mortal (conclusão), elas dizem: o grilo é ser vivo, portanto é mortal. A história natural testemunha a vida e a morte de plantas e de animais racionais e irracionais. Essa experiência traz a certeza de que a mortalidade é inerente aos seres vivos.
O raciocínio pode ser: (i) abstrato, quando opera só com números, símbolos ou ideias desvinculadas da experiência, como na Matemática e na Metafísica (ii) concreto, quando opera com coisas do mundo natural ou com fatos do mundo cultural, como na Biologia e na Sociologia. Ao seguir de modo metódico determinadas regras na busca da verdade, o raciocínio qualifica-se como científico. Quando o raciocínio tem por alvo a justiça, o bem comum, o rigor lógico fica em segundo plano. Entram em cena a razoabilidade, a proporcionalidade, o senso ético e estético, os motivos de oportunidade e conveniência. Disto, resultam os aspectos político e jurídico da arte de raciocinar. Os reais motivos das decisões políticas e jurídicas, às vezes, ficam ocultos. 

Raciocínio político. 
Desse tipo de raciocínio resultam decisões políticas anteriores e posteriores ao estado. As decisões anteriores são tomadas pelo titular do poder constituinte (massa, elite, rei, ditador) fundadas em certos valores, princípios, costumes, tradições e crenças que conformam o estado e configuram a existência política do povo, do governo, do território e do patrimônio comum. As decisões posteriores são tomadas pelos titulares dos poderes constituídos (parlamentares, chefes de governo, magistrados) em consonância com a lei fundamental do estado (Constituição, Carta). Na vigência da ordem jurídica, o raciocínio político não difere do raciocínio jurídico, salvo no que tange ao conteúdo das proposições. As vias lógicas do político e do jurista são as mesmas: indução, dedução, analogia, razoabilidade, proporcionalidade. A diferença consiste na hierarquização dos critérios. Na decisão política prevalecem o necessário, o útil, o interessante e o possível. Na decisão jurídica prevalecem o justo, o verdadeiro, o razoável e o proporcional. O caráter pragmático da ação política faz a diferença, mormente diante das crises econômicas e dos movimentos sociais no mundo contemporâneo. As carências do povo e do governo exigem atendimento. O raciocínio político decide sobre as prioridades e os meios de satisfazê-las. 
Nos países democráticos, as decisões e a conduta dos governantes, lato sensu (legisladores, administradores, juízes) estão sujeitas ao princípio da responsabilidade. Os parlamentares pesquisam a opinião pública e evitam contrariar a vontade do povo. A elaboração das leis obedece a regras formais e tem como objetivo realizar o bem comum, a segurança e o desenvolvimento econômico e social. Os parlamentares (i) seguem as diretrizes dos seus partidos (ii) criam tributos e outras fontes de receita e disciplinam a respectiva aplicação (iii) tomam decisões orientados por interesses das pessoas e dos grupos que os apoiaram na campanha eleitoral (iv) atendem às suplicas dos seus eleitores, correligionários, parentes, amigos. Há parlamentares que defendem os interesses dos banqueiros, empresários, militares, religiosos; há outros que defendem os interesses dos trabalhadores, da Universidade, da massa popular. Nas deliberações (i) divergem quanto ao interesse nacional (ii) investigam a matéria que interessa ao cidadão, à sociedade e ao estado (iii) buscam informações e esclarecimentos sobre as necessidades da massa e das elites (iv) formulam normas adequadas a cada classe. 
Os governantes stricto sensu (presidentes, governadores, prefeitos) prestam obediência às leis e colocam-nas em prática. Ainda que haja margem legal à discricionariedade, o abuso tipifica crime. Os governantes estabelecem as metas de curto, médio e longo prazo para a prestação de serviços e para a realização de obras e de negócios. Informados das disponibilidades orçamentárias, traçam planos de governo e estratégias a fim de executá-los. A ação governamental desenvolve-se dentro das balizas postas pela Constituição. Ampara-se nos princípios e objetivos fundamentais do estado, tais como: justiça, dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, solidariedade, pluralismo político, segurança, independência, soberania. A produção legislativa e a atividade executiva tomam esses princípios e objetivos como premissas maiores do raciocínio político. 
A experiência de homens e mulheres revelou que o governo sintonizado com a felicidade do povo torna remota a possibilidade de revolução e facilita a estabilidade institucional (premissa maior). O governo X adota política favorável à felicidade do povo (premissa menor). Logo, o governo X facilita a estabilidade institucional e torna remota a possibilidade de revolução (conclusão). Este raciocínio político está correto na forma, porém, duvidoso no conteúdo. O golpe de estado pode não ser possibilidade remota. A cultura política dos diferentes povos não é homogênea.  
A Constituição contém os princípios e os objetivos fundamentais do estado democrático de direito. Todos devem obediência a esses princípios e objetivos. O governante cuja política contraria esses princípios e objetivos viola o tipo de estado instituído pelo legislador constituinte e deve ser destituído do cargo (premissas maiores). O governante atualmente em exercício contraria princípios e objetivos fundamentais do estado democrático de direito (premissa menor).  Logo, o governante atual deve ser destituído do cargo (conclusão). Este raciocínio político está correto quanto à forma, porém, quanto ao conteúdo, a premissa menor depende de prova.  

Raciocínio jurídico. 
O estudo desse tipo de raciocínio tem se baseado na forma silogística das sentenças judiciais: (i) premissa maior = norma jurídica em vigor (ii) premissa menor = juízo de afirmação ou negação da prática ilícita (iii) conclusão = juízo de procedência ou improcedência da pretensão inicialmente deduzida pelo postulante. Os juízes operam simultaneamente nos planos ontológico (esfera do que é = dos fatos) e deontológico (esfera do que deve ser = das normas). Nas causas que presidem, examinam os argumentos das partes, a autenticidade e a validade das provas. Seguem as vias lógicas da indução, dedução e analogia e formam a sua convicção. Depois, procedem ao enquadramento do caso nos princípios e normas constitucionais e legais. Destarte, após o momento da verdade, vem o da justiça. Na passagem do plano mental (convicção) para o plano operacional (enquadramento jurídico, realização da justiça) entram em cena o razoável, o proporcional, o sensato, a reflexão do juiz sobre as consequências da sua decisão. 
Certa vez, por volta de 1980, no bar dos magistrados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, um colega mais antigo sentou-se ao redor da mesa na qual eu me encontrava. Cenho franzido, fisionomia preocupada. Motivo: caso criminal que ele iria sentenciar. O ministério público produzira prova que a defesa não conseguira afastar. O colega tinha de condenar o réu. Isto o angustiava. Apesar de estar convicto da culpabilidade do réu, o colega entendia que a condenação não traria benefício algum à sociedade e sim prejuízo ao futuro promissor de um jovem. Depois do desabafo dele, eu sugeri a solução. Disse-lhe: “Esse crime só é punível se doloso; então, para aliviar a tua consciência, diga na sentença o que você me disse aqui; diga que apesar da prova produzida pela acusação, você não está convencido de que o réu tenha agido dolosamente”. Os olhos do colega brilharam. Sua fisionomia mudou, o semblante desanuviou, como se lhe fosse tirado das costas um peso enorme. Levantou-se, deu-me forte aperto de mão e saiu. Parecia emocionado. 
Se aquele caso estivesse sob a minha jurisdição, eu teria condenado o jovem réu (hoje, sexagenário). Dura lex sed lex. Futuro promissor não exclui o crime. Futurismo e judicatura não combinam. Cada juiz possui temperamento e visão de mundo próprios. Cada caso tem características próprias. A decisão absolutória proferida por meu colega pode ter sido mais justa do que teria sido a minha se fosse eu o juiz do caso. A minha decisão condenatória estaria correta do ponto de vista lógico, porém, seria injusta do ponto de vista axiológico. Quem sabe?    

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

GOVERNO versus CIDADÃO - 2

Nas sociedades democráticas, o poder político pertence ao povo. No exercício desse poder em grau máximo, o povo organiza o estado mediante princípios e regras fundamentais gravados num documento com força normativa denominado Constituição. A partir do século XIX (1801/1900), vigora em países da Europa e da América, com algumas nuances, o seguinte padrão: cidadãos de ambos os sexos, escolhidos pelo povo, reunidos em assembleia constituinte (i) ditam os direitos e deveres individuais e coletivos (ii) estabelecem o tipo de estado e de governo (iii) criam órgãos para desempenho de funções políticas e administrativas (iv) outorgam a esses órgãos poderes independentes (v) adotam o modelo orgânico tripartido: legislativo, executivo e judiciário. Nesses moldes, ficam disciplinadas as relações entre governantes e governados. De um lado, os governados com seu poder constituinte soberano e a sua liberdade limitada pelo direito; de outro lado, os governantes com seus poderes constituídos encerrados num sistema de competências. 
O Brasil seguiu esse padrão quando foram votadas as constituições de 1891, 1934, 1945 e 1988. Fugiu parcialmente desse padrão quando foram outorgadas as cartas de 1824, 1937, 1967 e 1969. Historicamente, o estado brasileiro oscila entre a forma democrática e a forma autocrática de governo. O autoritarismo próprio da autocracia tem marcado presença nos períodos democráticos. Nas sessões do Supremo Tribunal Federal (STF) é possível detectar a oscilação. Neste particular, interessante observar a coreografia das mãos e dos braços com a qual alguns ministros ilustram as suas ideias e palavras como se estivessem pesando pretensões e argumentos dos litigantes. A coreografia evoca imagem da balança da justiça. A pesagem revela o pendor do ministro à autocracia ou à democracia, conforme deposite mais peso no prato do governo ou no prato do cidadão.
No conflito com os interesses do governo, os direitos fundamentais do cidadão devem prevalecer porque constituem limites impostos pelo legislador constituinte à ação governamental. A distribuição da matéria no texto constitucional já indica a prevalência: (i) primeiro, os princípios, direitos e garantias fundamentais (ii) depois, a organização dos poderes do estado (iii) finalmente, a ordem econômica e social. Esta distribuição não é gratuita, nem aleatória. Trata-se de um sistema jurídico criado pelo legislador constituinte de 1987/1988 como reação ao período em que os interesses do governo sobrepunham-se aos direitos do cidadão e a autoridade sufocava a liberdade (1964/1985). A atual distribuição da matéria retrata a prioridade da democracia e dos direitos humanos. Portanto, enquanto vigorar a Constituição de 1988, os direitos e garantias fundamentais não podem ser sacrificados ou flexibilizados por doutrinas, programas e projetos dos governantes.
Com fulcro nos imprescindíveis princípios da independência, da irresponsabilidade funcional e do livre convencimento, alguns juízes federais, sob a máscara da legalidade, abusam do poder jurisdicional. O que era sabido no círculo forense, chegou agora ao conhecimento geral com operações do tipo “mensalão” e “lava-jato” e reportagens como as do sítio The Intercept Brasil.
Os citados princípios não dispensam o juiz de alicerçar suas decisões em provas idôneas. Livre convencimento significa que o juiz deve pesar sem preconceito, sem condicionamento hierárquico e sem tergiversar, cada prova trazida pelas partes aos autos do processo. Se, para algum fato, só determinado tipo de prova for admitido (por exemplo: a escritura pública em relação à propriedade imóvel) o juiz não deve descartá-lo. Na sentença, o juiz deve justificar o peso atribuído às provas. [CPP 157 + 381].
Quando bem intencionado, firme no propósito de aplicar corretamente o direito positivo e fazer justiça, o juiz pode, na esfera do processo penal, durante a instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências que entender necessárias para dirimir dúvida sobre ponto relevante (CPP 156). Isto não significa produzir prova, tarefa que cabe privativamente às partes (princípio dispositivo). Significa, isto sim, exercício da legal competência inquisitiva do juiz destinada a ensejar julgamento justo, restrita à pesquisa da verdade e que ajuda na avaliação da prova contida nos autos. A iniciativa encaixa-se no modelo acusatório adotado pela processualística brasileira. Esse modelo tem as seguintes características: [i] pretensão punitiva e persecutio criminis privativas do estado (das quais as partes não podem dispor) [ii] acusação formulada mediante denúncia do agente do ministério público ou queixa do ofendido [iii] defesa oral e escrita formulada pelo acusado [iv] provas produzidas exclusivamente pelas partes [v] presidência do processo e julgamento do caso por juiz imparcial e independente.
Presidir o processo com a decisão já tomada desde o inicio tipifica parcialidade. O juiz tem o dever de examinar as provas com isenção de ânimo e honestidade. Ao considerar os argumentos das partes e à medida que as provas são apresentadas, o juiz vai formando a sua convicção. Utiliza as vias da indução, da dedução, do razoável, do proporcional e da sensatez. Firmada a sua convicção, o juiz enquadra a sua decisão no ordenamento jurídico em consonância com a sua experiência, seus conhecimentos e sua consciência. Sobre as questões de direito mais frequentes, o juiz tem opinião formada. Sobre os casos repetitivos, o juiz aplica os precedentes jurisprudenciais. Sobre a matéria de fato, o juiz busca distinguir a realidade da fantasia, observa se há diferença com aquilo que ordinariamente acontece na sociedade, se há peculiaridade relevante. A sutileza do raciocínio jurídico está mais nas diferenças do que nas semelhanças.
O aspecto inquisitivo do poder do magistrado difere do inquisitorial da Igreja. Falta à inquisição religiosa a garantia do devido processo jurídico. O fundamento da inquisição é a fé enquanto que o alicerce da jurisdição estatal é a razão. No entanto, há juízes inquisidores como aqueles da operação lava-jato. Um deles, hoje ministro da justiça, contrariado com a decisão do STF sobre a prisão em segunda instância, fala da sensação de abandono da justiça com a soltura de criminosos e de que não existe justiça. Diz que discorda, mas repeita o tribunal. O pirralho morde e assopra. Enquanto não houver sentença condenatória transitada em julgado, ninguém pode ser taxado oficialmente de criminoso. Quem o fizer, comete crime contra a honra.
Ao invés de criticar o tribunal e ofender quem ainda não foi condenado definitivamente, esse pivete devia agradecer a Deus. Sim, porque se existisse a justiça de cuja falta reclama, ele e outros tucanos corruptos já estariam na cadeia há muito tempo. A experiência forense revela que tanto há juízes parciais, arbitrários, nazifascistas, como há juízes imparciais, corretos e democratas; tanto há esperteza enganosa, como há sinceridade. Só não há santidade.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

GOVERNO versus CIDADÃO

Em tempo de guerra externa, governo e cidadão se unem em defesa do estado. [Povo + governo + território + patrimônio = estado]. Em tempo de paz, governo e cidadão travam batalhas domésticas. 
Quando o cidadão causa danos a terceiros, à sociedade, ao estado, ou extrapola o seu direito de defesa, o governo reage. No exercício do poder de polícia e para manter a ordem e o respeito à lei, o governo fiscaliza e controla as ações individuais e coletivas do cidadão, reprime manifestações, efetua prisões, apreende coisas, aplica multa, estabelece estratégias preventivas e repressivas. 
O cidadão reage aos atos do governo que caracterizam submissão ao governo estrangeiro, restringem indevidamente a cidadania, ofendem a dignidade da pessoa humana, prejudicam o setor trabalhista ou a livre iniciativa, violam direitos e garantias fundamentais, excedem o poder de tributar e de regulamentar, extrapolam limites da Ética e do Direito. Os descontentes com o governo ora são a maioria do povo, ora a minoria. Algumas vezes, não há trégua sequer nas comemorações cívicas e nos divertimentos coletivos públicos ou privados. 
No âmbito judicial, há litígio entre o governo (= estado = pessoa jurídica de direito público) e o cidadão (= pessoa natural = pessoa jurídica de direito privado = sociedade civil) motivado por questões de natureza penal, civil ou administrativa. No âmbito político, quando a ação governamental reveste caráter delituoso e/ou tirânico, o cidadão reage, individual ou coletivamente, de modo pacífico ou de mão armada. Há exemplos históricos antigos e recentes.  
A grande conquista da civilização ocidental no campo da política e do direito foi colocar a liberdade acima da autoridade, os direitos humanos acima dos poderes do estado, as garantias individuais e os mecanismos de controle funcionando como freios à tirania e à arbitrariedade. A revolução francesa de 1789 inverteu a milenar situação de inferioridade do povo. De súdito, o povo passou a ser titular do poder soberano. Contribuiu ao movimento revolucionário que provocou essa mudança extraordinária, a teoria do abade francês Emmanuel Sieyès, segundo a qual, o poder constituinte pertence ao povo, verdadeiro construtor e mantenedor da sociedade – não ao clero, nem à nobreza. [“Qu´est-ce que le Tiers État?”. Genebra. Droz. 1970, pp.180 + segs.]. 
A mencionada teoria faz parte do acervo cultural dos países europeus e americanos. A ação do governo passou a ser limitada pelos direitos humanos e monitorada pelos governados. A limitação e o controle foram disciplinados em documento com força normativa máxima, elaborado pelos representantes do povo reunidos em assembleia constituinte. Desse documento, denominado “Constituição”, constam os princípios e normas fundamentais que estruturam juridicamente o estado. A supremacia da Constituição decorre da soberania do povo. Na opinião de Karl Loewenstein, soberania popular e constituição escrita converteram-se, prática e ideologicamente, em conceitos sinônimos (“Teoria da la Constitucion”. Barcelona. Ariel. 1979, p.160). 
A ascensão do proletariado (classe operária) teve início no século XIX (1801/1900), após difusão da teoria socialista do filósofo alemão Karl Marx e da encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII. No século seguinte, a revolução russa colocou em prática a teoria marxista (1917). Segundo Ferdinand Lassalle, professor de origem polonesa, teórico social democrata, a Constituição nada mais será do que simples folha de papel se não corresponder aos fatores reais do poder. Vivendo na Alemanha do século XIX, o professor lista esses fatores: monarquia, nobreza, banqueiros, burguesia e classe operária. [“Que é uma Constituição?”. Porto Alegre. Villa Martha. 1980, pp. 21 + segs.]. Com o avanço da técnica e da ciência, nos séculos XX e XXI, a lista dos fatores pode ser assim atualizada: banqueiros, empresários, trabalhadores, militares, religiosos, universidades, organizações civis, meios de comunicação social em massa (imprensa, rádio, televisão, rede de computadores, celulares).
A democracia sofre periódicos abalos. Na primeira metade do século XX (1901/1950), governos autocráticos assumiram papel de relevo no mundo: fascismo na Itália, nazismo na Alemanha, com reflexos no Brasil e outros países americanos, em Portugal e outros países europeus, no Japão e outros países asiáticos, no Egito e outros países africanos. Da resistência ao expansionismo desse movimento autocrático resultou a segunda guerra mundial (1939/1945). Milhões de feridos e mortos (crianças, adolescentes, adultos), cidades arrasadas, desabastecimento, fome, doença, miséria. Os governos exibiram a ferocidade do lado demoníaco da natureza humana. 
Depois da guerra, dezenas de estados assinaram documento normativo de vigência internacional, no intuito de proteger as futuras gerações desse flagelo e reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, na igualdade jurídica das nações grandes e pequenas, na justiça e no respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional. Estados Unidos da América, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, União das Repúblicas Soviéticas Socialistas, República da China e França, constam como membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas. [Carta das Nações Unidas, 26/06/1945]. 
Durante a quinta parte do século XXI (2001/2020), o fascismo e o nazismo, que estavam ocultos como brasas sob cinzas, renasceram em todos os continentes. A extrema direita aproveitou-se dos problemas econômicos e sociais da atualidade, inclusive os gerados pelos imigrantes e refugiados, para buscar domínio político. Repete as táticas da década de 1930, agora com o auxílio da media televisiva e da rede de computadores, espalhando notícias e anúncios falsos a fim de inculcar medo e captar prosélitos. Agita a população. Usa violência. Semeia ódio. Gera perplexidade. Alimenta a frustração e o sofrimento da massa popular. Conquista o voto de parcela do eleitorado no sistema democrático que está a destruir. Propaga a necessidade e a vantagem de um governo forte e militarizado para enfrentar supostas resistências à realização do bem comum, do desenvolvimento econômico e do combate à criminalidade. Considera os direitos humanos, as organizações civis que os defendem e os juízes que os respeitam, empecilhos à execução daqueles fins. Essa mentalidade nazifascista penetra a sociedade e o estado como vírus de uma enfermidade.