domingo, 30 de julho de 2023

ANIMAIS SELVAGENS II

Com recente emenda, o último parágrafo do artigo intitulado “Animais Selvagens”, publicado neste blog em 23/07/2023, ficou assim redigido:
O senso comum do presidente da república comparou aqueles ofensores aos animais selvagens. Biologicamente, os humanos são animais sem qualquer semelhança com o amoroso e misericordioso deus dos cristãos (Pai Celestial) embora muito parecidos com o cruel e genocida deus dos judeus (Javé). A qualificação de “selvagem” afasta do humano a racionalidade e faz emergir a herança atávica do homem da Idade da Pedra. 
Animais selvagens não podem circular livremente no meio de pessoas civilizadas. Urge colocá-los em jaula. Quando se fala no extermínio dessa espécie animal sobrevivida do período pré-civilizado da evolução humana, fala-se da extinção no sentido moral e não no sentido físico. Cogita-se de medidas preventivas e repressivas sintonizadas (i) com o direito de proteger a vida e a integridade das pessoas e das instituições democráticas e (ii) com o fim político de assegurar o pleno vigor da Constituição da República
Convém complementar esse texto. Lê-se no Gênesis, primeiro livro da Bíblia: “Disse também Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”... “E criou Deus o homem à sua imagem; fê-lo à imagem de Deus e criou-os macho e fêmea”... “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente”. 
Se esses versículos fossem a expressão da verdade, então, Deus seria um indivíduo feio, ignorante, instável, inseguro, criador de um mundo caótico. Nessa hipótese, a divergência entre Albert Einstein e Max Born resolver-se-ia a favor deste último e de seus colegas defensores da mecânica quântica e da matemática do caos. Além de jogar dados, Deus também apostaria na roleta. 
O primeiro tipo humano “feito à imagem e semelhança de deus” era um homem feio, ignorante, instável, inseguro, que andava como barata tonta na superfície terrestre. O primeiro homem pode ter sido o de Java (Pithecanthropus Erectus) ou o de Pequim (Sinanthropus Pekingensis) ou o de Piltdown  (Eoanthropus Dawsoni). Todos esses exemplares viveram no primeiro período da evolução humana (Eolítico). Esses tipos eram feios, ignorantes, nômades, semelhantes aos macacos na postura e na estrutura física. Portanto, naquele período, a imagem do homem e a imagem de deus coincidiam com a imagem do macaco. 
No período seguinte (Paleolítico Inferior) viveram dois tipos: o homem de Heidelberg e o homem de Neandertal. Ambos tinham características simiescas embora fossem do gênero homo mais hábil e inteligente do que os tipos que o antecederam. Portanto, nesse período, a imagem de deus nada melhorou do ponto de vista estético; ainda lembrava a imagem do macaco. 
No período seguinte (Paleolítico Superior) predominou o gênero homo sapiens, mais industrioso, sociável e de maior capacidade craniana do que os tipos anteriores. Esteticamente, a imagem de deus melhorou, conformando-se à imagem do novo homem. 
O período seguinte (Neolítico) foi o último da fase pré-civilizada da cultura humana. Tipo humano ereto, fisicamente proporcionado, senhor do mais amplo e intuitivo conhecimento da natureza, relações sociais complexas, novas técnicas e alargamento das artes. Nesse período, ocorre a deificação de forças sobrenaturais (espíritos poderosos). Nascem os deuses e a religião entre os demais elementos constituintes da organização da cidade (início da civilização). Melhora a imagem do deus bíblico. 
Rompendo com o politeísmo e respectivos sacerdotes, o faraó Amenhotep IV (Aquenaton) fundou o monoteísmo. Após a morte desse faraó, o politeísmo foi restabelecido no Egito, porém, o monoteísmo sobreviveu no povo hebreu que lá vivia há 450 anos. O príncipe egípcio chamado Moisés garantiu tal sobrevivência ao impor, a fio de espada, essa religião aos hebreus. Dos cinco primeiros livros da Bíblia (Pentateuco), todos escritos no século IV a.C., por Esdras, sacerdote judeu e sua equipe, durante o exílio na Babilônia, verifica-se que o deus de Moisés, apelidado Javé ou Jeová, era machista, exclusivista, cruel, vingativo, genocida. Na versão desses eruditos e espertos escritores bíblicos, Javé criou o homem do limbo da terra à sua imagem e semelhança. Certamente, os escritores referiam-se ao homem hebreu do povo “escolhido” e da terra “prometida”. Destarte, esse homem teria a imagem característica do seu deus Javé: machista, exclusivista, cruel, vingativo, genocida.
Assim como a criatura humana evoluiu da fase bruta à fase civilizada no curso de milhões de anos, o criador divino mencionado na escritura hebraica também evoluiu. Ele se tornou menos feio, mais inteligente e bem postado, pacientemente lapidado pelos sacerdotes monoteístas, tal como se faz com o diamante bruto. Da fase selvagem, o deus evoluiu para a fase civilizada. Nesta, a têmpera diabólica de Javé, deus do Antigo Testamento, foi substituída pela amorosa têmpera do Pai Celestial, deus do Novo Testamento. Alá, deus dos muçulmanos, nasceu da costela de Javé.
Apesar das falsidades e superstições nelas contidas, as escrituras das religiões monoteístas são colocadas por seus crentes acima dos tratados científicos do mundo contemporâneo. Fé religiosa empanando o saber científico. Prevalência da estupidez sobre a inteligência. Treva oculta a luz, como a nuvem oculta o sol. 
No mundo da cultura há progressões e regressões. Ativo processo das mutações para melhor e para pior no curso da história humana. Personalidades representativas e celebridades têm suas imagens retocadas nesse processo. Sirva de exemplo a ocidentalizada imagem de Jesus, profeta israelita. Desde a obra de Leonardo da Vinci, a imagem do profeta distanciou-se das características étnicas dos judeus e israelitas. Na Europa e na América, o profeta, cuja real fisionomia é desconhecida, não é retratado de cabelos curtos, nariz adunco, estatura mediana, atarracado, de cenho franzido ao escorraçar pessoas do templo. Em pinturas, esculturas e gravuras, Jesus ostenta beleza de causar inveja aos galãs de Hollywood como Clark Gable, Errol Flynn, Tyrone Power e outros. A imagem hollywoodiana de Jesus encanta as mulheres, freiras ou não, e nelas provoca suspiros e fantasias. 
Protágoras tinha razão: “O homem é a medida de todas as coisas”. 

Bíblia Sagrada. Antigo Testamento. Gênesis 01: 26/27. Rio. Edição Barsa. 1967.
Bíblia Sagrada. Antigo Testamento. Gênesis 02: 7. SP. Editora Ave Maria. 1987.  
Burns, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. Rio. Editora Globo. 1955.  
Chardin, Pierre Teilhard de. O Fenómeno Humano. Portugal/Porto. Tavares Martins.  1970. 
Mahfuz, Naguib. Akhenaton. O Rei Herege. Rio/SP. Editora Record. 2005.
Stewart, Ian. Será que Deus Joga Dados? Rio. Jorge Zahar. 1991. 
Velasco, Francisco Diez. Breve Historia de las Religiones. Madri. Alianza Editorial. 2008. 

domingo, 23 de julho de 2023

ANIMAIS SELVAGENS

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral promoveu representação criminal contra cidadãos residentes na cidade paulista de Santa Bárbara do Oeste. Motivo: agressão verbal sofrida por ele e física sofrida por seu filho no dia 14/07/2023, nas dependências do aeroporto da capital italiana. 
A polícia federal brasileira iniciou ampla investigação sobre o fato gerador e seus consectários. Tendo em vista o atual estremecimento político no Brasil provocado pelo ativismo da extrema direita, o fato poderá ser objeto não só da ação penal privada como também de ação penal pública. Nos respectivos processos judiciais, acusadores e acusados têm iguais direitos de postulação e produção de provas. Confissões, testemunhos, documentos, laudos periciais, têm igual valor probatório em abstrato e são pesados pelo juiz no caso concreto. Não há “rei" e nem "rainha” das provas. Ao juiz e ao  tribunal cabe (i) o impulso oficial (ii) a fiscalização dos procedimentos (iii) assegurar às partes igualdade de tratamento (iv) proferir decisões com base no conjunto probatório, na Lei, na Constituição e na sua consciência.    
A progressão da atividade nazifascista no Brasil é de conhecimento nacional e internacional, cuja intensidade aumentou desde a campanha eleitoral de 2018. Houve tentativas de golpe em sequência regular a partir das eleições de 2022. A mais grave ocorreu em 08/01/2023. Pessoas da direita e da extrema direita do espectro político, isoladas ou em grupos, atacam verbal e fisicamente pessoas da esquerda, ou pessoas simpáticas ao governo atual, ou pessoas simplesmente defensoras do estado democrático de direito. Há também ataques homofóbicos e por preconceito de gênero, de cor e de raça, oriundos do movimento nazifascista. 
Ingenuidade, pois, acreditar que o episódio de Roma circunscreve-se à relação pessoal entre ofensores e ofendidos. De acordo com os indícios, trata-se de crime complexo. Visto de cima, enquadrado no cenário nacional, o episódio recomenda investigação profunda como medida de cautela contra o inconstitucional avanço do nazifascismo em terras brasileiras. Ainda que abrigado em partido político, o nazifascismo civil e militar não encontra amparo no direito posto pela assembleia constituinte de 1987/1988. Portanto, no caso em tela, a reação da autoridade pública brasileira foi proporcional ao fato noticiado. A conexão de atos ilícitos praticados pelos mesmos agentes em dias e locais distintos é fenômeno comum na sociedade. Constatado um dos atos, vêm à tona outros até mais graves do que o primeiro. As investigações obedecem à sequência do processo de apuração da materialidade e da autoria dos delitos conexos, mesmo sem contiguidade, eis que os essenciais motivos do agente podem estar longe do palco da ação imediata. De acordo com o noticiário, a polícia federal agiu de forma regular e compatível com o caso, dentro das normas do código de processo penal. 
Na linguagem matemática, proporção significa relação entre grandezas, como na regra: “Com 3 quantidades conhecidas procura-se uma quarta quantidade incógnita que complete uma proporção geométrica”. Exemplo: proporção (i) de oxigênio e hidrogênio na composição da água (ii) de água, areia, cal e cimento na composição da argamassa (iii) entre a base e a altura da construção (iv) na simetria estética do corpo humano entre o tamanho da cabeça e o tamanho do tronco, ou, entre o comprimento das pernas e a altura da cintura. 
[A palavra incógnita fez sucesso ao entrar no vocabulário dos adolescentes alunos do curso ginasial do Colégio Estadual do Paraná em 1953].
Na linguagem literária, proporção consiste na expressão verbal (escrita ou oral) da relação das diferentes partes de um todo, quer comparadas entre si, quer indivualmente comparadas com o todo. Inclui as ideias de quantidade (igual, maior, menor), de harmonia e de equilíbrio. Exemplo: proporção entre (i) os ingredientes de um bolo (ii) o trabalho e a remuneração do trabalhador (iii) a moralidade e a cultura de um povo (iv) o tipo do crime, a pena prevista na lei e a pena aplicada no caso concreto. 
Na matemática, contam-se quantidades e medem-se distâncias. Na literatura, contam-se estórias e medem-se valores morais. Na religião, contam-se dinheiro com exatidão e estórias com modulação e medem-se as penitências conforme a posição. Qual o critério para medir a distância entre: (1) a fé confessada e a ação realizada? (2) a moral no plano dos princípios e a conduta no plano dos fatos? Tal medição, se possível, será objetiva ou subjetiva? Como diz Hogben: “Uma boa caricatura vale bem um volume de oratória política”. 
O episódio em solo italiano impactou quem estava em solo brasileiro e abalou a família forense ante a falta de respeito a um conhecido, corajoso e digno magistrado do supremo tribunal. Certamente, brasileiras e brasileiros de boa cepa sentir-se-ão representados pelo presidente da república na repulsa ao constrangedor episódio. Todos perceberam a atitude de pessoas que comungam a mentalidade nazifascista contrária ao regime político adotado pelo legislador constituinte. A conduta padronizada dos adeptos desse movimento inclui (i) ódio contra os democratas de centro e de esquerda (ii) provocação e agressão sistemáticas (iii) propósito de aniquilar o estado democrático de direito. 
O senso comum do presidente da república comparou aqueles ofensores aos animais selvagens. Biologicamente, os humanos são animais sem qualquer semelhança com o amoroso e misericordioso deus dos cristãos (Pai Celestial) embora muito parecidos com o cruel e genocida deus dos judeus (Javé). A qualificação de selvagem afasta do humano a racionalidade e faz emergir a herança atávica do homem da Idade da Pedra. Animais selvagens não podem circular livremente no meio de pessoas civilizadas. Urge colocá-los em jaula. Quando, no sentido figurado, se fala no extermínio dessa espécie animal sobrevivida do período pré-civilizado da evolução humana, fala-se, no sentido real, de prevenção e repressão sintonizadas (i) com o direito de proteger a vida e a integridade das pessoas e das instituições democráticas (ii) com a finalidade política de assegurar o pleno vigor da Constituição da República. 

Caldas Aulete. Dicionário Contemporâneo da Lingua Portuguesa. Rio de Janeiro. Editora Delta. 1958. 
Código Penal (DL 2.848/1940 + Lei 7.209/1984). Artigo 101.
Código de Processo Penal (DL 3.689/1941). Artigos 4º/7º + 76/82. 
Constituição da República Federativa do Brasil. Artigos 1º, 14, 17, 127, 136, 137, 142.
Hogben, Lancelot. Maravilhas da Matemática. Rio/SP/Porto Alegre. Editora Globo. 1956. Página 77.

domingo, 16 de julho de 2023

O PROCESSO

Quando se fala em processo, pensa-se logo em ação judicial, advogado, testemunha, juiz, tribunal. Esta associação psíquica provém de diversas fontes como (i) a literatura, com livros notáveis como “O Processo” de Franz Kafka (ii) o cinema, com filmes marcantes como “Testemunha de Acusação” estrelado por Marlene Dietrich (iii) a imprensa, por notícias sobre processos judiciais, principalmente quando as partes são políticos, profissionais liberais, empresários, banqueiros, celebridades (iv) o aparelho de segurança do estado. 
No entanto, processo é noção comum ao mundo da natureza e ao mundo da cultura. Consiste na sequência de impulsos na criação, reprodução e evolução dos seres; no método para construir, modificar e destruir; no movimento em determinada direção para fazer algo mediante regras ordinárias, técnicas e/ou legais como, por exemplo, as da construção civil, do ensino/aprendizagem, da cirurgia. 
processo natural quando provocado e orientado por leis cósmicas, sem intervenção humana. O processo natural físico acontece nos reinos mineral, vegetal e animal (corrosão, ferrugem, florescimento, cicatrização, ciclo vital). O processo natural mental acontece no campo lógico (apreensão das coisas na formação das ideias; movimento das ideias na formação das proposições; movimento das proposições na formação dos argumentos) e no campo psicológico (movimento do intelecto, do sentimento, da vontade, na vida interior dos humanos).
processo cultural quando presente a intervenção humana. Inteligência, sentimento, vontade, interesse e ação entrelaçados no propósito de realizar fins humanos. Há processo cultural no setor público e no setor privado. No plano individual, há processos para: (i) gerar, conservar, manter e tirar a vida (ii) proporcionar aptidão física, intelectual e moral às pessoas. No plano social, há processos para realizações artísticas, científicas, assistenciais. No plano econômico, há processos para produção e circulação de bens nos setores rurais e urbanos. No plano político, há processos para: (i) escolha dos legisladores, dos chefes de governo, dos magistrados (ii) elaboração e execução das leis (iii) preservação da ordem. 
A exigência moral e a experiência social informam o processo gerador dos costumes, das convenções, das normas éticas e jurídicas. 
No Direito, o processo consiste na sequência de atos orientada por regras obrigatórias. Trata-se de movimento dirigido por autoridade pública que tem por escopo produzir leis, resolver problemas, solucionar conflitos, sob a égide da verdade e da justiça. Múltiplo no uno, esse processo é unidade jurídica teleológica composta de atos sequenciais que o dinamizam (procedimentos). No sistema brasileiro destacam-se três tipos de processo: [1] parlamentar (legislativo + impeachment) [2] administrativo (funcional + disciplinar) [3] judicial (civil + penal + trabalhista + eleitoral). Em comum, esses tipos têm as fases do conhecimento, do debate e da decisão. 
O processo jurídico judicial tem seus trâmites perante juízes de direito, tribunais do juri e tribunais de justiça ordinários e superiores. O direito positivo em vigor estabelece regras de competência, tipos de foro e classifica as ações judiciais. Assim, por exemplo, o presidente da Câmara dos Deputados propôs ação civil contra empresa jornalística no foro cível da comarca de Brasília. Portanto, usou o foro comum e não o foro especial a que os parlamentares federais têm direito: o Supremo Tribunal Federal (STF). [Certamente porque agiu em nome próprio em questão de direito privado]. O deputado sentiu-se ofendido por matéria publicada que incluiu: (i) entrevista da ex-esposa que o acusa de práticas criminosas (ii) propina por intermédio de assessor (iii) compra de material escolar superfaturada mediada por seu auxiliar. Se, no devido processo legal, a sentença for favorável ao deputado, a empresa de notícias será condenada a indenizá-lo. Nesta hipótese, se o juiz fixar o valor da indenização abaixo da quantia pleiteada na petição inicial, o deputado arcará com os ônus da sucumbência parcial. Se a sentença lhe for desfavorável, o deputado arcará com os ônus da sucumbência total. Nesta hipótese, se houve Exceção da Verdade admitida e julgada procedente, o deputado ainda poderá ser condenado a indenizar a empresa de notícias.  
“Por que não te calas”? Assim o rei da Espanha repreendeu o presidente da Venezuela em reunião de chefes de estado. “Cala boca já morreu”. Assim falou juíza em sessão de julgamento no STF. Duas manifestações opostas de supremas autoridades estatais. A conduta do espanhol refletiu o espírito autocrático. A conduta da brasileira refletiu o espírito democrático. Calar a voz do outro é próprio dos espíritos despóticos. Em ação judicial, porém, não é o  autor a calar a voz do réu no seio da nação e sim o juiz da causa ao julgá-la procedente. Voz silenciada por ordem judicial. 
Na voz do povo (vox populi) rola a fama do deputado de ser desonesto, mau-caráter, coronel provinciano servido por capangas. Tal fama aliada aos traços faciais e à compleição física do deputado poderiam se encaixar nos estudos de fisiognomonia e de antropologia criminal de Cesare Lombroso. Na instrução do processo judicial, o deputado terá ensejo de provar que essa fama não corresponde à verdade. Aliás, por não ser a “voz de Deus”, a voz do povo geralmente é equivocada, injusta e manifesta o que de pior há no ser humano: ódio, vontade de matar, de ferir, de destruir; inveja, estupidez, preconceito, falsidade, hipocrisia.

domingo, 9 de julho de 2023

DEMOCRACIA

Jornal paulista de circulação nacional publicou recentemente a seguinte definição: “democracia é o que é, sem relativismo”. Doravante, a Teoria do Estado simplificará as suas definições: monarquia é o que é; autocracia é o que é; aristocracia é o que é; anarquia é o que é. Cuida-se do princípio de identidade: tudo é o que é, expresso no princípio de contradição: nada pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, princípios expostos por Aristóteles e imortalizados na frase de Shakespeare: ser ou não ser, eis a questão
O presidente da república foi criticado por haver dito, durante entrevista concedida a emissora de rádio, que a democracia é relativa. Esta frase provocou celeuma na média corporativa e na média independente. A frase foi dita na conversa sobre aproximação do governo brasileiro com o governo venezuelano. O que não agrada ao governo dos Estados Unidos da América (EUA) desagrada também aos donos das emissoras de televisão e aos jornalistas amestrados. 
O presidente da república pisa no calo do governo estadunidense quando (i) negocia com a China (ii) restaura o Mercosul (iii) exclui o dólar dos contratos internacionais (iv) reúne-se com o Papa e com chefes de governo. A independência e o profícuo labor do brasileiro melindram o governo dos EUA. Os nazifascistas e os vira-latas do Brasil gostariam que o presidente prestasse continência à bandeira dos EUA a fim de patentear a vassalagem. Acontece que o presidente não padece da Síndrome de Estocolmo. Pelo apoio que deu à fraudulenta operação lava-jato e às ilícitas prisão e tentativa de morte política do então candidato petista à presidência da república (2014/2018), o governo dos EUA deve desculpas aos brasileiros não colonizados e indenização ao atual presidente brasileiro.
A frase usada pelo presidente naquela entrevista liga-se ao relativismo e não à Teoria da Relatividade. Na opinião de Bertrand Russell (1872-1970) matemático e filósofo inglês, a afirmativa “tudo é relativo” é absurda. Questiona: “Se tudo fosse relativo, seria relativo em relação a que?” Conciliador: "Poder-se-ia admitir que tudo no mundo físico fosse relativo a um observador, mas, essa não é a ideia a que chegou a Teoria da Relatividade”. Conclui: "O propósito dessa teoria é excluir o que é relativo e chegar a uma formulação das leis físicas que não dependa de maneira alguma das circunstâncias do observador”. 
A visão positivista dos fenômenos sociais alicerça-se no relativismo como critério de conhecimento. Dois ou mais observadores percebem o mesmo fato social de modo distinto. A mesma paisagem é vista de um jeito pelo daltônico e de outro pelo míope. A análise da política governamental feita por jornalista vira-lata difere da análise feita por jornalista ponderado. O observador da esquerda verá o governo da Venezuela pelo ângulo das práticas democráticas; o observador da direita verá pelo ângulo das práticas autocráticas; sem que nenhum deles tenha feito a experiência (i) de viver anonimamente por 12 meses naquele país (ii) de pesquisar honestamente (iii) de usar dados estatísticos confiáveis para chegar ao índice de aprovação pelo povo. No Brasil de 2019 a 2022, o observador da esquerda via um regime autocrático (por abandono dos direitos sociais) e o da direita, um regime democrático (por haver eleições). A realidade às vezes não se ajusta aos conceitos teóricos. Dogmas são invocados com fervor quando favorecem a quem os invoca; se o desfavorecem, silencia ou atropela.    
Importa saber se há consenso quanto ao conceito de democracia, cuja compreensão se ampliou no curso da história. Na Grécia antiga, berço da democracia, governo do povo pelo povo referia-se à dimensão política da cidade (polis). Povo era a pequena parcela da população masculina constituída de homens livres, iguais perante a lei, proprietários de bens de valor econômico. Atualmente, democracia abrange as dimensões política, econômica e social, adotada como forma de governo por vários estados contemporâneos. No sentido jurídico, o elemento povo inclui mulheres e homens titulares do direito ao sufrágio, com nuances religiosas e limites etários e culturais. No sentido sociológico, povo pode se referir à demografia, população de um país (povo brasileiro), aos membros de uma etnia (povo indígena), aos crentes de uma religião (povo católico). 
Os valores da democracia moderna que integram o fundamento axiológico das constituições dos estados são: vida, dignidade da pessoa, igualdade, liberdade, propriedade, segurança, pluralismo, vontade da maioria. Na esfera política, democracia significa forma de governo que tem o povo como protagonista. Soberano, o povo (i) organiza juridicamente a nação visando ao bem comum (ii) toma decisões diretas através da iniciativa popular, do plebiscito, do referendo (iii) escolhe e destitui os legisladores, os chefes de governo e os magistrados (iv) recusa obedecer a leis, ordens e governos antidemocráticos. Nos limites da moral e do direito, cidadãs e cidadãos fazem escolhas; exercem ofício, profissão; locomovem-se no território nacional; adquirem e alienam bens; associam-se; reúnem-se em locais públicos ou privados; manifestam o pensamento; expressam-se pela arte; dedicam-se à ciência, à filosofia, à religião; praticam esportes, cultivam o corpo e a mente. 
O modelo democrático estendeu-se à sociedade civil. Membros de uma comunidade, condôminos, sócios de um clube ou de uma empresa, participam das discussões sobre matéria de particular interesse e tomam decisões por maioria em assembleia geral. Países capitalistas e socialistas praticam a democracia que se diz (i) liberal quando a liberdade é mais acentuada (ii) social quando a igualdade é mais acentuada. Na república liberal democrática brasileira de 1891 a 1930 não tinham direito de votar: mulher, mendigo, analfabeto, religioso de ordem monástica. Na república social democrática brasileira de 1988 a 2023 não há essas restrições; conjugam-se valores do trabalho e da livre iniciativa no campo econômico, segundo o espírito de solidariedade e de justiça social; poder exercido nos limites do direito posto pelos representantes do povo; objetivo de realizar o bem de todos, de construir e desenvolver sociedade fraterna. Conforme testemunho da história, há governantes que se desviam das balizas democráticas e afrontam o regime constitucional em vigor. 

Lima, Antonio Sebastião de. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro. Freitas Bastos. 1998. 
Maritain, Jacques. Elementos de Filosofia. Lógica Menor. Rio de Janeiro. Agir. 1966.
Russell, Bertrand. ABC da Relatividade. Rio de Janeiro. Jorge Zahar. 2005.  

domingo, 2 de julho de 2023

DEUSES

Sem deuses não há religião. Em dado momento da sua evolução, os humanos criaram deuses nos quais passaram a crer. Antes disto, imperava o animismo, crença em espíritos (mana) que animavam os seres da natureza, tinham vida própria e podiam transmigrar. Ao comer o coração de um bravo guerreiro, o vencedor absorvia-lhe o espírito. Naquela época, infância da razão, prevaleciam a intuição e a magia. 
A datação dos personagens, eventos e coisas da antiguidade está sujeita a mudanças provocadas por descobertas arqueológicas e por novas interpretações. A partir de 1950, a cronologia aproximou-se mais da exatidão com o uso de métodos de datação amparados na Física, na Química e na Biologia, compatíveis com as características das coisas examinadas (minerais, vegetais, animais). Geralmente, usa-se para o exame (i) de materiais orgânicos como papel, madeira, osso, couro, com idades até 50 mil anos, o método denominado “Carbono-14” (ii) de materiais com idades superiores a 50 mil anos, os métodos denominados “Luminescência” e “Ressonância Paramagnética Nuclear”. Com datação baseada nesses métodos, a cultura humana tem sido dividida no tempo em (i) Pré-civilizada, períodos Eolítico, Paleolítico (inferior e superior) e Neolítico, todos incluídos na Idade da Pedra e (ii) Civilizada: Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna.
Por milhões de anos, o modo de vida dos humanos foi semelhante ao modo de vida dos outros animais. A sua progressão somática e psíquica foi lenta. Cérebro pouco desenvolvido. Pensamento sem reflexão. Os humanos guiavam-se pela intuição e pelos instintos. Viviam em grupos que ocasionalmente lutavam entre si. Habitavam cavernas e se reuniam em volta do fogo. No Paleolítico superior, o cérebro humano estava mais desenvolvido e o pensamento reflexivo. A Ciência batizou esses humanos de Homo Sapiens. A revolução cultural ocorre no período Neolítico, quando o Homo Sapiens passa (i) a trabalhar com pedra polida, cerâmica e metais (ii) a construir casas, barcos e a navegar (iii) a domesticar animais e a produzir alimentos (pastoreio,  agricultura, além da caça e pesca) (iv) a trocar o excedente da produção (v) a atribuir valor às coisas (vi) a viver em família e em aldeia, sob regras consuetudinárias, sem religião e sem escrita. Permanecem o sentimento de união com a natureza e o procedimento mágico e intuitivo. 
Religião tem raízes na cultura neolítica, na mente e no coração dos humanos. Ela surge quando os humanos personalizam as temíveis forças sobrenaturais dando-lhes características humanas e lhes atribuindo poderes extraordinários. Assim nascem os deuses e a religião como partes integrantes do processo de civilização ao lado da escrita, da arte, da filosofia, da organização social, econômica e política da cidade. Cuida-se de um sistema com fulcro na crença em deuses poderosos e num mundo espiritual. Assenta-se no anseio humano de se relacionar com deuses e de se comunicar com o mundo espiritual, anseio este, provocado pelas necessidades materiais e espirituais da vida e pelas exigências éticas nas relações humanas. Busca-se, no sobrenatural, ajuda para solucionar problemas existenciais. A frustração por não saber, ou não poder solucioná-los; o medo, a ignorância e a superstição; a esperança de uma vida melhor agora e após a morte; a consciência de si mesmo cada vez mais ampliada, criando a ilusão da dualidade corpo/alma; tudo isto combinado compõe o estofo da religião. Cuidadosa no que tange aos seus fins, a religião elabora a sua doutrina e os seus dogmas, organiza os seus cultos, executa os seus rituais, estabelece normas éticas e administrativas; exerce poder espiritual e secular na sociedade. 
Politeísmo foi a geral crença dos povos da Idade Antiga. No Ocidente, vigorou até o período inicial da Idade Média. Depois da queda do Império Romano, foi superado pelo monoteísmo cristão. O politeísmo ainda vigora no Oriente e nas comunidades nativas da América, da África e da Oceania.
Monoteísmo foi instituído no Egito pelo faraó Aquenáton (1375 a.C.). Nasceu da insurgência do faraó contra o politeísmo em vigor e como reação aos abusos cometidos pelos sacerdotes. Após a morte desse faraó, o politeísmo foi restabelecido. Entretanto, o monoteísmo não morreu com o seu criador. O príncipe egípcio de nome Moisés impôs o culto monoteísta ao povo hebreu que, por 450 anos, morava no Egito. Tirou esse povo de lá e o liderou na marcha pelo deserto. Em certo momento, parcela desse povo negou-se a prosseguir naquela aventura e manifestou o propósito de retornar ao Egito e aos seus deuses. O príncipe egípcio sufocou a rebelião. Milhares foram mortos a fio de espada. Os que sobreviveram tiveram de engolir o monoteísmo goela abaixo. Atualmente, o culto monoteísta está espalhado pelo mundo, praticado por bilhões de cristãos, muçulmanos e judeus.  
À semelhança do homem neolítico, fascinado pelo firmamento, o homem moderno o vasculha a olho nu, com telescópios e com naves espaciais, na esperança de encontrar avançadas civilizações e de se comunicar com seres de superior inteligência e cultura. A procura de deuses continua. 

Bíblia Sagrada. Rio de Janeiro. Edição Barsa. 1967.
Bíblia Sagrada. São Paulo. Editora “Ave Maria”. 1987. Antigo Testamento. Êxodo 12: 35 + 32: 25/29. 
Burns, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre. Globo. 1955.
Chardin, Pierre Teilhard de. O Fenómeno Humano. Portugal/Porto. Tavares Martins.  1970.
Jaguaribe, Hélio. Um Estudo Crítico da História - I. São Paulo. Paz e Terra. 2001. 
Velasco, Francisco Diez de. Breve Historia de las Religiones. Madrid. Alianza Editorial. 2008.
Com Ciência – Arqueologia e Sítios Arqueológicos, www.comciência.br. Datação. 2003.