terça-feira, 30 de dezembro de 2014

FILOSOFIA XIV - 27



EUROPA (1800 a 1900). Continuação.

Na opinião de Aléxis de Tocqueville, o gênero humano não é inteiramente independente e nem inteiramente escravo. Em torno de cada homem há um círculo do qual não pode sair, porém, dentro desses limites ele é poderoso e livre. Com os povos acontece o mesmo. A ordem do coração e a ordem da razão convivem no homem e na sociedade. [Aléxis não esconde a sua filiação ao pensamento de Pascal]. Da polaridade entre opostos advém a história humana: o princípio democrático opõe-se ao aristocrático, mas ambos consideram a liberdade e a igualdade em determinada estrutura. [A bipolaridade masculino x feminino respondia pela distinção do papel social do homem e da mulher, ele provedor do lar e ela dona de casa]. A liberdade é dom que se adquire e que se perde; pode ser usado para o bem e para o mal. A igualdade é paixão, afeto comum e natural do ser humano. O excesso de liberdade destrói a igualdade; o excesso de igualdade destrói a liberdade. O ideal está no ponto extremo em que a liberdade e a igualdade se tocam e se confundem: os homens são livres porque são iguais e são iguais porque são livres. Segundo as tendências das nações, a igualdade pode conduzi-las à servidão ou à liberdade, à luz ou à barbárie, à prosperidade ou à miséria, sem subordinação alguma com os ritmos da natureza.

A igualdade abre dois caminhos aos homens: um que conduz a novas idéias, outro que conduz à apatia. Os homens são iguais na medida em que são livres. A igualdade que torna os homens reciprocamente independentes cria neles o hábito e o gosto de seguir sua própria vontade nas ações particulares. Essa independência os predispõe contra toda autoridade e lhes desperta a idéia e o amor à liberdade política. A uniformidade das leis é exigência do princípio da igualdade e a condição primeira de um bom governo cuja imagem é a de um poder único, simples, providencial e criador. O amor à tranqüilidade pública leva os cidadãos a conceder continuamente novos direitos ao poder central. Os privilégios, por menores que sejam, repugnam à consciência democrática. O homem é o artífice do seu próprio destino. Conforme a época e o momento histórico, os homens preferem a igualdade à liberdade. [Segundo Napoleão, os franceses apreciavam mais a igualdade do que a liberdade].

O interesse e o bem-estar são os dois princípios estruturais da sociedade democrática; a liberdade e a igualdade são os seus princípios constitutivos. O egoísmo é amor apaixonado e exagerado de si mesmo. Individualismo é sentimento reflexivo e pacífico que predispõe a pessoa a separar-se da massa de seus semelhantes, a retirar-se a um lado com sua família e seus amigos. A sociedade democrática enseja associações particulares. As relações humanas são movidas mais por interesses do que por idéias. As opiniões formam uma espécie de poeira intelectual que se agita por todos os lados sem poder fixar-se nem reunir-se. Há uma disposição geral para premiar os movimentos rápidos e as concepções superficiais da inteligência e para depreciar a meditação, o trabalho lento e profundo do intelecto. O interesse prático sobrepuja a contemplação teórica. Sociedade alguma subsiste sem um núcleo de idéias comuns e principais aceitas como dogmas (sem discussão). Sem idéias comuns não há ações comuns. Sobre o dogma coletivo, o indivíduo ergue o edifício das suas próprias idéias.

O sistema econômico moderno com o seu aspecto racionalista constitui o efeito da democracia e não a causa. A democracia é um princípio de ordem moral e política. Nela, são mais fáceis o abuso do governante e o mau emprego dos recursos públicos. A centralização administrativa é o principal mecanismo da tirania travestida de democracia. Esse tipo de centralização se estriba na racionalização que também se coaduna com o espírito democrático, o que propicia o engodo. A finalidade do Estado é garantir a segurança, a proteção jurídica, realizar obras públicas, fomentar as relações com os demais Estados. Quanto mais industrializada a nação, mais a necessidade de estradas, canais, portos e serviços a cargo do Estado, o que exige grande quantidade de engenheiros, arquitetos, mecânicos e artesãos. À medida que se incrementa o poder do Estado e aumentam as suas necessidades, maior é o consumo de produtos industrializados. O instinto de centralização se constituiu único ponto imóvel em meio da singular mobilidade da existência e do pensamento dos homens. Há um poder imenso e tutelar sobre os cidadãos, detalhista, regular, previdente e suave, que torna menos útil e mais raro o livre arbítrio e reduz o espaço para a ação voluntária. Despotismo e tirania são palavras inadequadas para expressar o novo tipo de opressão sobre povos democráticos.

John Stuart Mill (1806 a 1873) poeta, filósofo, resume no seu pensamento as tendências da filosofia inglesa: sensualismo, ceticismo, pragmatismo e liberalismo. Seguiu os passos do pai (James Mill), da sua talentosa esposa Harriet Taylor e de Jeremy Bentham, sem desmerecer a influência que sofrera de Tocqueville, Carlyle, Ricardo e Comte. Na opinião dele, a origem de todo conhecimento está na experiência. No ensaio “Da Liberdade”, John trata da liberdade de pensamento e de palavra, da individualidade, dos limites da autoridade e se opõe à assertiva da igreja de ser o cristianismo a fonte de toda bondade (1859). Participou da reforma parlamentar na Inglaterra e defendeu o sufrágio universal. Escreveu um tratado sobre economia política. O seu livro “Sistema de Lógica” teve larga repercussão na Europa. Ali, esta lição: a base da argumentação indutiva está na comprovada constância da natureza que, em si mesma, constitui a suprema indução. [A fraca confiabilidade do processo indutivo tem sido um problema para aqueles que se dedicam à ciência. Inarredável, entretanto, a constatação de que se trata de operação mental tão útil quanto o processo dedutivo]. A busca do prazer e a fuga da dor não são os únicos determinantes da conduta humana. Os hábitos e o desejo de união com os semelhantes também são determinantes. Os prazeres diferem em qualidade; uns são mais elevados do que os outros. [Tese de Epicuro, o primeiro hedonista utilitarista]. O socialismo destrói a liberdade individual. A intervenção do Estado é necessária ao bem dos menos afortunados. A sociedade não deve se dividir entre o ocioso e o industrioso. A lei que nega comida a quem não trabalha deve valer para todos e não só para os pobres. [“Comerás o teu pão com o suor do teu rosto” (Bíblia, Gênesis, 3:19)]. John apoiava o controle artificial da natalidade. 

Herbert Spencer (1820 a 1903) nasceu em modesta família de metodistas e quacres. Autodidata, filósofo evolucionista, engenheiro civil da companhia de estrada de ferro que liga Londres a Birmingham, produziu trabalhos nas áreas tecnológica, econômica e política. Os seus livros principais foram: “Estática Social” e “Filosofia Sintética”. O fulcro da sua filosofia é a idéia da evolução como lei universal, inspirada na teoria de Darwin. Cunhou a frase “sobrevivência do mais apto” quando se referiu à seleção natural. Sustentava que tudo evolui: espécies animais e vegetais, planetas, sistemas planetários, instituições, idéias religiosas e éticas. O processo evolutivo compreende quatro etapas: (1) concentração: massas indiferenciadas semelhantes à nebulosa geratriz de estrelas e planetas; (2) diferenciação: entes individuais separam-se da massa; (3) determinação: indivíduos se desenvolvem do simples ao complexo; (4) dissolução: os entes se desintegram. Tudo no universo tende a cumprir o ciclo completo: origem, ascensão, declínio e extinção. A força sobrenatural desse processo não se submete à análise científica. O homem só pode conhecer o que lhe permite a experiência sensorial. Coletivismo é resquício da sociedade primitiva, estágio inicial da evolução social, quando o indivíduo ainda não se diferenciara da massa.

domingo, 28 de dezembro de 2014

FILOSOFIA XIV - 26



EUROPA (1800 a 1900). Continuação.

Aléxis de Tocqueville (1805 a 1859), francês nascido em berço nobre, católico, filósofo, jurista, foi juiz de direito e era deputado ordinário quando previu a revolução: “Creio que dormimos sobre um vulcão”. Foi eleito deputado à Assembléia Constituinte em 1848. Viajou para os EUA, Inglaterra, Suíça e Argélia, sempre com os olhos voltados paras as instituições políticas e jurídicas. Essa experiência serviu à sua formação filosófica.  Após o golpe de estado de 02/12/1851, desferido pelo sobrinho de Napoleão, Aléxis retira-se definitivamente da vida pública. Morreu em Cannes, vítima de doença pulmonar contraída nos EUA.

Aléxis escreveu A Democracia na América, seu livro mais conhecido onde, com o cuidado, a objetividade e a percuciência de um cientista, ele compara a democracia americana com os regimes políticos europeus. O primeiro volume composto de duas partes foi publicado em 1837. O segundo volume composto de quatro partes foi publicado em 1840. Em tom de profecia Aléxis: (1) afirmou o advento irresistível da democracia no mundo; (2) previu a ascensão dos russos e dos americanos que “por um secreto desígnio da Providência”, teriam em suas mãos os destinos do mundo; (3) prognosticou a guerra civil americana; (4) identificou o latente conflito interno da nação americana suscitado pelas diferenças raciais.

Aléxis procede a uma análise sociológica do país norte-americano. Segundo ele, os ingleses chegaram civilizados à América habitada por selvagens. A ausência de precedente histórico no continente americano facilitou a organização de uma nova sociedade política com base nos seguintes princípios: ordem, ponderação dos poderes, liberdade autêntica, respeito sincero e profundo ao direito. Aléxis considera esses princípios essenciais a qualquer república e adverte: a religião cristã, apesar das inúmeras seitas, está na base e na origem da sociedade americana e se mantém como uma das suas colunas ao lado da ordem política com a qual não se confunde. Ali, a religião impera menos como doutrina revelada e mais como opinião comum. Depois de ouvir os norte-americanos, diz o filósofo, difícil saber se para eles o principal objetivo da religião é a busca da eterna felicidade no outro mundo ou se a busca do bem-estar neste mundo. Para honrar o dogma da imortalidade da alma, os governos devem agir como se nele acreditassem. Um dos principais aspectos políticos da religião é o de conduzir os homens em função do porvir.

A paixão tenaz, exclusiva, universal, do bem-estar material, embora contida, é essencialmente da classe média americana. Os seus efeitos são diferentes dos produzidos nos povos aristocráticos. Pode conduzir a uma espécie de materialismo que não corrompa as almas. A nação democrática pode ser escrava do bem-estar material e da ordem que o garante. Ao examinar o objeto do seu estudo sob o ângulo histórico, Aléxis chega a dois tipos essenciais de regime político: o democrático e o aristocrático. Ele encara a política como um capítulo da Ética e quer saber como se equacionam a liberdade e a dignidade humana na democracia americana. Constata ser a democracia um modo de vida e não apenas e simplesmente uma forma de governo. [Pontes de Miranda, notável jurista brasileiro do século XX, também via a democracia como um modo de vida, mais do que um simples regime político].

Na democracia, o produtor, para enriquecer, vende barato o seu produto a todo mundo. Na aristocracia, o produtor, para enriquecer, vende o seu produto por alto preço a uma parcela menor de consumidores. Na democracia, o produtor dirige suas faculdades intelectuais a dois pontos: (1) encontrar meios melhores, mais rápidos e mais inteligentes para produzir sua mercadoria; (2) fabricar maior quantidade de coisas semelhantes, mas de menor valor. A maioria do povo americano se ocupa mais com os negócios do que com os estudos; cuida mais de interesses políticos e comerciais do que de especulações filosóficas ou belas letras. [Esta opinião desagradou a muitos estadunidenses].  

Quando a massa de cidadãos se ocupa exclusivamente dos negócios privados, os negócios públicos caem nas mãos débeis e indignas de uns poucos. O princípio aristocrático se destrói lentamente no fundo das almas antes de ser atacado pelas leis. [Essa dinâmica é comum a qualquer regime político; não é exclusividade do aristocrático]. Nas sociedades democráticas, os salários se elevam gradual e lentamente como se fora uma lei geral {não escrita}. À medida que as condições chegam a ser mais iguais, os salários se elevam; à medida que os salários são mais altos, as condições chegam a ser mais iguais.

A Democracia na América desponta como um estudo de psicologia social, fundado na natureza humana. Segundo Aléxis, o decisivo na compreensão do fenômeno político não são as causas físicas, nem as leis, mas sim os costumes e as crenças que alicerçam os hábitos e as pautas da conduta humana. A mudança social só converte-se em mudança histórica quando os novos princípios determinam os costumes e as crenças. Enquanto isto não acontece, o período será apenas revolucionário. Neste período transitório encontram-se as nações européias onde a mudança (em direção à democracia) é lenta e mais aparente do que real. [Aléxis se referia à Europa do seu tempo]. Por isto mesmo, verifica-se que a revolução francesa não ocasionou uma ruptura histórica, posto que os costumes, crenças, hábitos, instituições e centralização administrativa do regime aristocrático se mantiveram na vida social subseqüente.

No que tange aos historiadores, Aléxis distingue o enfoque dos aristocratas, que valorizam a ação particular, a personalidade e as qualidades de certos homens, do enfoque dos democratas, que valorizam o comportamento da multidão que traça o seu próprio destino. Cada nação está ligada por sua posição, origem, antecedentes e natureza, a certo destino que todos os esforços não podem mudar. Aos historiadores não basta mostrar como se produziram os fatos; comprazem-se ainda em mostrar que não podia suceder de outra maneira. [Cientistas do século XXI dizem a mesma coisa sobre os acontecimentos cósmicos e consideram sem sentido especular que poderia ser diferente].      

Poder é capacidade para dirigir a vontade dos outros e ocorre entre homens, por homens e sobre homens. O poder político deve se adequar às necessidades da sociedade. [Às vezes, o titular desse poder cria necessidades para camuflar interesses particulares; dever ser e ser, nem sempre se ajustam]. O desajuste entre os mecanismos do poder e as necessidades sociais acaba por gerar revolução. A democracia se sustenta na racionalização do poder. O que deprava os homens não é o uso do poder ou o hábito da obediência e sim o uso de um poder considerado ilegítimo ou a obediência a um poder considerado como usurpado e opressor. [O homem depravado faz uso ilegítimo do poder político]. O que dá realidade ao poder é o fato de ser obedecido. Sem obediência não há poder, mas somente força. Desde que exercida em nome do povo, a tirania pode ser legítima. Num Estado populoso e extenso, o poder despótico pode vingar como se fora fato natural quando encoberto por uma retórica demagógica que mantém inerte a opinião pública. O poder absoluto é coisa má e perigosa cujo exercício sobrepõe-se às forças do homem. Somente Deus, na sua sabedoria e justiça, é todo poderoso sem perigo algum para a humanidade.  

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

FILOSOFIA XIV - 25



EUROPA (1800 a 1900). Continuação.

Jeremy Bentham (1748 a 1832), inglês, ateu, filósofo do utilitarismo: a suprema prova a que toda crença ou instituição deve se submeter é a prova do proveito ou da utilidade. O bem é o prazer; o mal é a dor. A contribuição à felicidade do maior número de pessoas é a prova da validez de qualquer idéia ou objeto. O interesse da comunidade é a síntese dos interesses dos indivíduos que a compõem. Os indivíduos agem por motivos egoísticos. A mola propulsora da ação humana é o desejo de assegurar o máximo de prazer e evitar a dor. Os indivíduos devem desfrutar liberdade completa a fim de realizarem os seus interesses legítimos. Disto resultará maior bem à sociedade. Não haverá anarquia, pois os indivíduos sabem que os prováveis danos da obediência são menores do que os prováveis danos da desobediência.

Jeremy interessou-se mais pela jurisprudência. Para ele, o direito era o mínimo de moral indispensável à convivência pacífica entre os homens. Imaginou dois círculos concêntricos: o maior representava a moral com seus princípios fundamentais; o círculo menor no interior do maior representava o direito com suas normas obrigatórias. A moral serve de base ao estudo do direito e à pesquisa para obter os meios legais de promover o bem geral. Ele se preocupou, também, com a educação e seus efeitos terapêuticos na sociedade. Participou do grupo que fundou o University College de Londres. O ingresso nessa escola não exigia filiação religiosa.

Na filosofia de Jeremy, a idéia de associação predomina. Ele faz da associação o mecanismo psicológico central da mente (associação de idéias). A idéia utilitarista da máxima felicidade para o maior número possível de pessoas também é dominante na sua filosofia. A lei deve garantir a cada pessoa a busca da felicidade sem prejudicar igual direito da outra. O castigo visa à prevenção do crime e não à vingança. A pena de morte não deve ser aplicada a quem pratica crimes banais. [No Brasil hodierno, vige o princípio da insignificância segundo o qual nenhuma pena deve ser aplicada quando mínimo for o dano causado pela ação ilícita]. Igualdade e segurança são condições básicas para o indivíduo ser feliz na sociedade. A importância destas condições é maior do que o conceito metafísico e romântico de liberdade. Despotismo benevolente e esclarecido é mais importante do que democracia. [Autoridades políticas dos mais diversos países do globo terrestre, anteriores e posteriores a Jeremy, desprezam a liberdade e valorizam a segurança]. A moral do sacrifício é um deliberado embuste arquitetado pela classe dominante em defesa dos seus próprios interesses. O sacrifício é sempre do povo e não da elite governante.         

Augusto Comte (1798 a 1857), nascido em Montpellier, pais católicos e monarquistas, estudou na Politécnica de Paris de onde foi expulso por participar de rebelião estudantil. Filósofo radical, Augusto levou uma existência de padrão modesto como preceptor particular. Recebia ajuda de amigos e admiradores. Sofreu das faculdades mentais quando adulto. Passou por crises periódicas. [Isto parece indicar que a genialidade é de fato um tipo de loucura ou, pelo menos, um estado fronteiriço. Mesmo involuntariamente e sem vaidade, o gênio embriaga-se com a própria genialidade. Na mente do gênio há lucidez extraordinária alternada com desvarios ocultos na riqueza da linguagem. Na conduta do gênio há coerência alternada com atitudes bizarras e extravagantes. Isto ocorre tanto no campo da filosofia como no campo da ciência. Alguns cientistas quando chegam a um ponto avançado do seu trabalho tendem para a especulação filosófica].

O pensamento de Augusto vem exposto no “Curso de Filosofia Positiva”: o único conhecimento de valor é o conhecimento positivo, isto é, o conhecimento científico. Esse conhecimento deve começar por tudo o que a experiência fornece diretamente. O cientista não deve ir além dos fenômenos. A metafísica é fútil. Ninguém pode descobrir a essência oculta das coisas. A razão das coisas acontecerem, o sentido e o fim último da existência, são temas que ultrapassam os limites da mente humana. [No que tange à certeza e à verdade]. O homem sabe tão somente que as coisas acontecem; que há leis reguladoras dos acontecimentos e das relações entre as coisas. A mente humana encontra o seu limite no útil e no prático que servem à humanidade. Augusto batizou a sua teoria de filosofia positiva. Desse nome derivou o positivismo, corrente filosófica e científica. Boas lições podem ser extraídas do positivismo com as devidas cautelas quanto às extravagâncias do seu criador.

Augusto estudou a obra de Vico e dela extraiu a primazia da história nos assuntos humanos: na sua evolução, a sociedade parte de um estágio teológico inicial, passa por uma fase metafísica e finalmente chega ao estágio positivo (conclusão do processo histórico). No entanto, Vico admitia a possibilidade de retrocesso (involução). Augusto pensava o oposto: a ciência rege o estágio positivo sem retrocesso: o estado de perfeição é definitivo. [Karl Marx dizia a mesma coisa, sintoma do espírito utópico da época]. Tal qual a matemática, as ciências devem se livrar dos conceitos metafísicos. Augusto hierarquizou o conhecimento científico do menos para o mais complexo objeto: matemática, astronomia, física, química, biologia e sociologia. Ao que Hume chamava de “ciência do homem”, Augusto deu o nome de Sociologia, da qual se considerou o fundador. Ele salienta a tendência à unidade em todos os estágios da evolução social. Cita como exemplo o estágio teológico trifásico: animismo, politeísmo e monoteísmo. No estágio positivo a humanidade será regida pela autoridade moral de uma elite científica e pela autoridade técnica de especialistas.

O indivíduo deve dominar os seus desejos e se dedicar ao progresso da humanidade. Augusto discorda de Bentham: as ações humanas não são determinadas exclusivamente pelo interesse próprio, mas, também, pelo altruísmo [termo por ele criado]. O objetivo da sabedoria social é fazer triunfar o altruísmo sobre o egoísmo. Isto pode ser obtido através do amor e do sacrifício próprio. Em substituição às religiões tradicionais, Augusto fundou a religião da humanidade: o ser supremo é a humanidade e não algum deus. Justiça, caridade e benevolência são os pilares dessa religião com ritual, trindade e clero.

A realização do bem social tem como lema: “o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Amor a deus, a si próprio, ao outro, à natureza e à cultura. Amar a deus de acordo com a nossa compreensão. Amar a nós mesmos, zelar pelo nosso corpo e pela nossa alma. Amar ao outro: cônjuge, companheiro, filhos, parentes, amigos, inimigos. Ordem ainda que exceção no universo. [Astrofísicos sustentam ser o caos prevalecente no universo. Ainda que seja um enclave neste canto da Via Láctea, a ordem faz parte do nosso sistema planetário. Essa ordem reflete-se no pensamento e na conduta do ser humano, ele próprio um organismo como os outros animais, ou seja: um ser organizado. A ordem lhe é intrínseca. O pensamento do homem obedece a regras imanentes à sua arquitetura mental e a categorias intrínsecas que o conduzem à compreensão e explicação das coisas e de si próprio. A conduta do ser humano no plano individual e no plano coletivo é disciplinada por regras de natureza privada e pública, convencionais, morais e jurídicas, que tornam possível a coexistência pacífica e as relações intersubjetivas harmoniosas de caráter social, político e econômico. A ordem na sociedade consiste neste conjunto de regras]. Progresso advém da ação social, política e econômica. Obedece à linha evolutiva do conhecimento: vulgar, técnico, artístico, científico e filosófico. O progresso é uma tendência incondicional ou absoluta, redutível às leis da natureza humana. “Uma lei de sucessão, ainda quando revestida de toda a autoridade que lhe possa conferir o método de observação histórica, não deve ser acolhida antes de se ver racionalmente reduzida à teoria positiva da natureza humana”. A lei do progresso é dedutível da tendência dos homens que os impele mais e mais a aperfeiçoar a própria natureza.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

FILOSOFIA XIV - 24



EUROPA (1800 a 1900). Continuação.

Arthur Schopenhauer acreditava em uma força universal que dirige o nascimento e o desenvolvimento dos fenômenos da natureza e dos fatos sociais. Ao examinar uma só folha, o botânico desvela a planta inteira. Uma só atitude da pessoa pode revelar o seu caráter. A força universal é vontade, assim entendido o desejo cego e inconsciente de sobreviver que existe nas espécies e nos indivíduos. Imitação e hábito são as molas mestras das ações humanas. A direção do corpo é dada pela vontade. Na esfera noumenal (da “coisa em si”), a vontade não está sujeita ao tempo, ao espaço e às categorias. A “coisa em si” (noumenon), raiz metafísica de toda realidade, é apreensível como vontade. O real é cego e irracional. A consciência que cada indivíduo tem de si mesmo é primitiva e irredutível. A consciência é a superfície da mente cujo interior desconhecemos. [Posteriormente, esse interior da mente, o inconsciente, foi estudado por Freud]. O corpo é objetivação da vontade; o que se quer e o que se faz são a mesma coisa vista de perspectiva diferente.

Como representação, o mundo tem duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis: (1) o objeto, cujas formas são o espaço e o tempo; (2) o sujeito fora do espaço e do tempo porque se encontra de modo inteiro e indiviso no "ser que percebe". Se o ser que percebe desaparece, o mundo como representação também não mais existe. A vontade irracional e inconsciente – raiz metafísica do mundo e da conduta humana – é a fonte de todo sofrimento. O que se conhece por felicidade é a temporária interrupção do processo de infelicidade. A felicidade é exceção; a infelicidade, a regra. A lembrança de um passado sofrimento cria a ilusão de um bem presente. Viver é sofrer. O consolo é saber que o vizinho sofre mais do que nós. Trabalho, aflição, esforço e necessidade é a sina da maioria dos humanos no curso das suas vidas. A procriação oferece novas vítimas ao sofrimento. O mais forte devora o mais fraco. No fundo, o ser humano é um animal selvagem e terrível que às vezes rompe os freios da civilização que o subjugam. Diferente do animal irracional, o humano maltrata pelo prazer de maltratar e nisto consiste o seu caráter demoníaco. Somente o homem vai à caça de animais que não lhe são úteis nem prejudiciais. A crueldade com a qual eram tratados os escravos na América exemplifica a ferocidade do homem.

Este mundo é o inferno em que os humanos formam, de um lado, os atormentados e de outro, os demônios. Quem não quiser ouvir esta verdade e sim ouvir que deus tudo fez do melhor modo, dirija-se à igreja e deixe em paz os filósofos, ou então, procure os filosofastros, trapaceiros que afeiçoam a doutrina filosófica aos ensinamentos da igreja. Egoísmo, dor e miséria são inseparáveis da vida. O egoísmo faz do homem inimigo do homem. [Lupus lupi homine, já dizia Hobbes; luta diuturna em que a paz é apenas um pequeno intervalo; luta consigo mesmo e com os outros]. Melhor estar só do que estar entre traidores. O egoísmo advém da ilusão de vontades independentes que afirmam seus ímpetos individuais. A dignidade humana decantada dos princípios morais é expressão vazia, em que pese a sua aceitação no mundo moderno. Essa pretensa dignidade repousa sobre a moralidade. Considerando a vontade tão pecaminosa do homem, o seu espírito tão limitado, o seu corpo tão frágil e o seu caráter tão volúvel, esse conceito de dignidade só pode ser aplicado ironicamente. [Isto lembra a desonestidade, a falta de palavra, a flexibilidade do caráter dos homens brancos brasileiros, constatadas pelo cacique Juruna, que passou a usar gravador quando com eles parlamentava].

Arthur menciona as virtudes cardinais citadas por Platão: justiça, coragem, moderação e sabedoria. A moderação {chamada de temperança por Cícero} é expressão indeterminada de múltiplo significado: ponderação, lucidez, cabeça no lugar. A bravura (coragem na guerra) não é virtude e sim propriedade do temperamento que pode se voltar tanto para o bem como para o mal. A covardia é incompatível com um caráter nobre, apesar da doutrina cristã em contrário, ao recomendar a não resistência {quando esbofeteado em uma das faces, oferecer a outra}, a tolerância {respeitar a opinião e a crença alheias}, a benevolência {amar o próximo como a si mesmo}. Sobre a coragem, Arthur cita os versos de Calderón: ainda que o natural temor / pese sobre todos igualmente / não mostrá-lo é ser valente / e isto é o que faz o valor.  Cita, ainda, as virtudes cardinais alinhadas pelos chineses: compaixão, justiça, cordialidade, sabedoria e sinceridade.

Na concepção antiga, virtuoso era o homem portador de qualidades elogiáveis, fossem físicas, intelectuais ou morais. Com o advento do cristianismo, a virtude ficou restrita a um conceito moral, a um conjunto de qualidades éticas {excelência moral}. A doutrina cristã colocou a moral como tendência fundamental da vida. O cristianismo carece de virtudes cardinais próprias; possui apenas virtudes teologais: fé, esperança e caridade. [Segundo a doutrina católica, pelo batismo são infundidas na alma não só as virtudes teologais, mas também, as virtudes cardinais como expostas por Tomás de Aquino na “Summa Theológica”: prudência, justiça, fortaleza e temperança, com as quais a boa conduta está relacionada]. O ser humano porta em seu interior a compaixão e a inveja, qualidades diametralmente contrárias. A inveja ergue o muro entre tu e eu; a compaixão faz desaparecer esse muro. Há um princípio bom e redentor neste Sansara. {Diz um texto budista: “Isto é Sansara: o mundo do prazer e do desejo, do nascimento, da doença, da velhice e da morte; é o mundo que não deveria ser”}.

A caridade é o início da mística [que se não confunde com mistificação no plano conceitual, mas que pode se confundir no plano dos fatos em razão da hipocrisia do agente]. A contemplação artística supera a dor. A atividade artística revela as idéias eternas através de diversos graus passando sucessivamente pela arquitetura, escultura, pintura, poesia lírica, poesia trágica e finalmente pela música. Liberta de qualquer referência a objetos da vontade, a música exprime a vontade em sua essência geral e indiferenciada. No entanto, para superar as dores do mundo é necessária a ascensão do homem a um nível superior de conduta ética. O caráter das coisas do mundo humano é mais a distorção do que a imperfeição. A contemplação da verdade é o caminho de acesso ao bem. Nas relações humanas, o espírito beligerante deve ser substituído pela simpatia, etapa ética em que o homem atinge o fundamento da verdade moral: não prejudiques pessoa alguma, sê bom com todos. Tal fundamento foi expresso no mandamento cristão: ama a teu próximo como a ti mesmo. Necessário, entretanto, ir além para alcançar a felicidade. A negação da vida é o único caminho para a felicidade humana, à maneira dos ascetas orientais. Ao dopar a vontade, o homem alcança o nirvana. O transe místico afasta a ilusão (o véu de Maya) e elimina a vontade; apenas o conhecimento subsiste.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

FILOSOFIA XIV - 23



EUROPA (1800 a 1900). Continuação.

O universo está em fluxo constante, diz Hegel concordando com Heráclito, filósofo grego. Tudo tende a passar ao extremo oposto. Há um sistema nesse funcionamento. Cada instituição social ou política desenvolve-se até a maturidade, desempenha sua missão e dá lugar a algo diferente. O antigo nunca é totalmente destruído. Algo do antigo permanece no mais novo formado dos elementos extremos. O processo repete-se muitas vezes. Cada nova fase representa um melhoramento. Todo o processo guia-se pela razão universal (deus). A evolução é o desenvolvimento de deus na história. O choque dos opostos conduz a um fim benéfico, a um estado perfeito onde o interesse de cada indivíduo corresponde ao interesse geral da sociedade. A liberdade consiste na sujeição do indivíduo à sociedade organizada politicamente. Direitos individuais não podem prevalecer diante do Estado. Sem o Estado o indivíduo é mero animal. “O Estado é a idéia divina na sua forma terrena”. O Estado se sobrepõe à igreja. A organização eclesiástica deve ter um caráter nacional. A igreja de Roma não deve prevalecer tendo em visa o seu caráter internacional. A história alcançou o seu estágio definitivo no Estado prussiano [na época de Hegel, um Estado totalitário]. Cabe aos alemães, únicos a compreenderem o alcance universal da liberdade, a missão de desenvolver o espírito na história. [Heráclito dizia ser a luta a mãe de tudo; Hegel também enfatiza a luta entre forças opostas]. A guerra pode ser mais importante do que a paz. Sem nação inimiga, os povos se debilitam e entram em processo de decadência. [Hegel foi contra a idéia de confederação mundial sugerida por Kant; ele também se opôs à Santa Aliança celebrada no Congresso de Viena].   

Karl Marx e Friedrich Engels, ambos já referidos nas páginas deste capítulo sobre economia política, parceiros na produção intelectual, comungam a mesma filosofia de caráter socialista e materialista. Juntos escreveram a “Ideologia Alemã”, em 1845/1846, e o “Manifesto (do Partido) Comunista”, publicado em 1848 e que assim começa: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa uniram-se numa Santa Aliança para exorcisá-lo: o Papa e o Tzar, Metternich e Guizot, os radicais franceses e os espiões da policia alemã. (...) O comunismo já é considerado uma força por todas as potências da Europa. Já é tempo de os comunistas publicarem abertamente diante de todo o mundo suas idéias, seus fins, suas tendências, opondo à lenda do comunismo um manifesto do próprio partido”. Depois de longa e substanciosa exposição, assim termina: “Que as classes dominantes tremam diante da revolução comunista! Os proletários nada têm a perder senão os seus grilhões. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uní-vos!” 

Assim como Marx escreveu solo “O Capital”, Engels também escreveu solo “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, texto separado de um livro da sua autoria intitulado “A Subversão da Ciência pelo Sr. E. Dühring” e publicado em 1878. Há pontos de contacto do pensamento de ambos com a filosofia de Hegel, mormente no que tange à dialética, segundo a qual o choque dos opostos conduz à sociedade perfeita. Para Hegel, o fim último do processo dialético é o Estado perfeito. Para Marx e Engels, o fim último do processo dialético é a extinção do Estado (comunismo vitorioso). Na opinião de Hegel, a evolução histórica significa a concretização do espírito do mundo ou da razão universal. Marx e Engels entendem que a transição histórica decorre principalmente (não exclusivamente) dos fatores econômicos. A base da filosofia desses dois pensadores é materialista; rejeita o dualismo cartesiano (corpo + alma) e admite uma só substância: a matéria. O movimento integra a matéria. As idéias de primeiro motor e deus são desnecessárias. A mente é função da matéria. A religião é perniciosa, expõe falsidades de modo deliberado. A pregação religiosa mantém o povo na ignorância e submisso ao governo e ao clero. “A religião é o ópio do povo”.

Sören Kierkegaard (1813 a 1855), filósofo dinamarquês, mestre em Teologia, nascido em Copenhague, filho de pais ricos, ao terminar os estudos e frustrado por não conseguir o afeto da sua bem-amada, mudou-se para Berlim. A sua “Julieta” casou com outro. A filosofia existencialista de Kierkgaard se opõe à filosofia que vincula o bem ao conhecimento e o mal à ignorância. A existência é anterior à essência; o particular antecede o universal; a vontade antecede a razão. Primeiro o indivíduo sabe que uma coisa é, depois, o que é essa coisa. Esse filósofo separa vontade e razão. Encara a ação e o poder de escolha como necessidades humanas. Os sentimentos podem ser compreendidos de maneira existencial. A vida humana não se ajusta plenamente às teorias científicas; nenhuma delas aprecia devidamente o caráter específico da ação moral. Os homens devem basear suas vidas mais em princípios religiosos do que em princípios éticos. A religião é existencial (brota do interior da alma). A liberdade de crença autoriza adesão ao insólito: credo quia absurdum.

Arthur Schopenhauer (1788 a 1860) nasceu em Danzig, na Prússia, filho de comerciante, mudou-se com os pais para Hamburgo, viveu na França, na Inglaterra e na Alemanha onde passou o resto da vida. Desistiu da atividade comercial após o falecimento do pai. Estudou medicina e adquiriu conhecimentos científicos (Göttingen). Na Universidade de Berlim, obteve o grau de doutor em Filosofia. Estudou misticismo em Weimar. Incluiu o bramanismo e o budismo em suas reflexões. Escreveu “Sobre a Visão e as Cores”, por sugestão de Goethe (1816). “O Mundo como Vontade e Representação” é a sua principal obra filosófica (1819). Ao exercer o magistério, Arthur tentou competir com Hegel no mesmo horário de aulas na Universidade de Berlim. Fracassou. Suas aulas eram freqüentadas por três ou quatro alunos no máximo. Renunciou ao cargo. Na pensão em que morava ele jogou escada abaixo uma solteirona que o espiava (1826). Processado judicialmente, foi condenado a pagar pensão anual pela vida restante da vítima (vinte anos). Mudou-se para Frankfurt em 1833, onde morou até morrer. Arthur gostava do cão que o acompanhava na vida solitária. Dizia: ao contrário do que acontece entre os homens, entre os cães a vontade não é dissimulada pela máscara do pensamento. Publicou os ensaios: “Sobre a Vontade na Natureza” e “O Fundamento da Moral”, para concorrer a prêmios das academias da Noruega e da Dinamarca. Neste último, era o único inscrito, mas não ganhou o prêmio porque o texto era injurioso e causou escândalo: insultava Hegel e Fichte. Os dois ensaios foram reunidos em um só livro: “Os Dois Problemas Fundamentais da Ética” (1841). Escreveu mais ensaios sobre política, moral, literatura, filosofia, estilo e metafísica, reunidos em um volume intitulado “Parerga e Paralipomena”, que alcançou enorme sucesso (1851). Arthur desponta então como ídolo das novas gerações, enquanto a filosofia de Hegel entra em declínio. Em Frankfurt, ele era visitado por filósofos e escritores.


sábado, 20 de dezembro de 2014

FILOSOFIA XIV - 22



EUROPA (1800 a 1900). Continuação.

A ciência buscada criticamente e introduzida metodicamente é a porta estreita que conduz à sabedoria. A Filosofia deve permanecer guardiã da ciência. A Metafísica se mostra enganosa na tentativa de conhecer acima de uma experiência possível. A religião se mostra fantástica na tentativa de atuar acima de uma experiência possível. A imortalidade da alma e a vida futura funcionam como condição essencial do dever. Sem a crença num mundo futuro nenhuma existência momentânea terá valor absoluto. [Em diferentes épocas, foram questionadas: (1) a necessidade de uma lei moral; (2) a adequação das normas morais à sociedade; (3) a oportunidade de um novo código moral. O indivíduo perece, mas a espécie humana permanece. Não haverá vida futura após a morte se a alma individual perecer com o corpo. Sendo ou não sendo perecível a alma individual, o fato é que a lei moral tem vigência e eficácia no meio social. O indivíduo tem o valor que o mundo da cultura lhe atribui ante a necessidade de uma ordem social fundada em preceitos éticos].

Fichte e Schelling, discípulos de Kant, acreditavam que o mundo real é o mundo da mente. Se o indivíduo colocar-se em harmonia com os fins universais, compreenderá sua própria natureza. Somente quando guiada e informada pelo ego supremo (inteligência universal) a mente humana conhecerá a realidade.

Johann Gottieb Fichte (1762 a 1814), professor da universidade de Berlim, foi o apóstolo do nacionalismo alemão. Segundo ele, a Alemanha tinha por missão dirigir o mundo segundo a justiça e visando a prosperidade de todos. O comércio exterior cabia ao Estado e devia ser reduzido ao mínimo. Nos seus “Discursos à Nação Alemã”, Fichte apelava à união dos Estados alemães a fim de resistirem às pretensões de Napoleão (1808). Quando irrompeu a guerra pela libertação, enviou os seus alunos para lutarem contra os franceses (1813). Suas idéias políticas antecipam as de Marx sobre o controle estatal da produção e distribuição de bens. Ele afirma que o “ego” é ativo e autônomo. O mundo da experiência é uma espécie de projeção inconsciente do ego: cuida-se do não-ego. Tal inconsciência leva o homem a pensar que está constrangido por uma realidade externa. Considerando que conhecemos apenas aparências, a questão da coisa em si perde a razão de ser. Admitir os noumenos (como Kant admite) é contraditório, é pretender saber o que não se pode saber. A projeção do ego é inconsciente e incondicional; como processo livre, brota da natureza prática e moral do ego.

Friedrich Wilhelm Schelling (1775 a 1854) professor em Jena, seguiu a linha idealista de Kant e Fichte, escreveu “Filosofia da Natureza”. Ele acreditava ser possível descobrir, além do fato, princípios gerais “a priori”. Esta esfera “a priori” é ativa, enquanto a da ciência é passiva. Ao prefaciar obra de Victor Cousin, filósofo francês, Schelling ataca a filosofia da natureza exposta por Hegel e nega a possibilidade de se deduzir fatos empíricos dos princípios “a priori”. A idéia dos pólos contrários e da unidade subseqüente exposta por Schelling prenuncia a dialética de Hegel. Tal idéia se continha de forma embrionária no quadro das categorias de Kant, quando ele diz que na terceira de cada grupo há uma combinação da primeira e da segunda que são contrárias. Para Schelling, a Filosofia divide-se em negativa e positiva. A primeira trata da essência das coisas; a segunda trata da existência das coisas. Do estágio negativo a Filosofia parte para o positivo.     

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 a 1831) protestante, filósofo, professor sucessivamente em Jena, Nuremberg, Heidelberg e Berlim, partidário do idealismo romântico, acreditava na evolução determinista e no movimento dialético da natureza. Entre as suas obras constam: “Fenomenologia do Espírito”, “Ciência da Lógica”, “Enciclopédia das Ciências Filosóficas”, “Filosofia da História” e “Princípios da Filosofia do Direito” (separata da “Enciclopédia”), todas de difícil compreensão, menos pelos tópicos e mais por sua linguagem obscura. Interessante o que ele escreve no prefácio desta obra por último citada (Filosofia do Direito): “Quando as sombras da noite começam a cair é que levanta vôo o pássaro de Minerva”. {Quando a filosofia chega com a sua luz a um mundo que anoitece é que uma manifestação de vida está prestes a findar. Na maturidade dos seres o ideal se ergue em face do real. Depois de ter apreendido o mundo na sua substância, o pensamento maduro o reconstrói na forma de um império de idéias}. [Hegel fala como um místico da fraternidade organizada por volta de 1614 na Alemanha (rosacruz). Outra fraternidade, esta politicamente atuante e influente, foi organizada por volta de 1717 na França (maçonaria). Ambas constituídas por seleto grupo de pessoas do ponto de vista social e intelectual, a primeira como herdeira do conhecimento esotérico do antigo Egito ao tempo do faraó Aquenaton e a segunda como herdeira do conhecimento esotérico da antiga Palestina ao tempo do rei Salomão]. Na opinião de Hegel, a linguagem possui uma espécie de inteligência inerente superior à dos seus usuários. Talvez, aí esteja a razão pela qual a sua linguagem se mostra obscura para a maioria dos seus leitores.

Admitir a existência dessa inteligência própria da linguagem, superior à inteligência do seu usuário parece um tanto difícil, embora seja possível não entender o significado pleno das palavras utilizadas, mormente quando simbólicas. Inteligência é faculdade do ser pensante e não da coisa pensada (salvo quando a coisa pensada também é um ser pensante). A linguagem alheia é entendida segundo o grau de inteligência de cada indivíduo. Um mesmo texto pode ser compreendido de diferentes maneiras por diferentes leitores. Nota-se, na obra de Hegel, o enfoque histórico na abordagem dos tópicos e certa primazia do prático ante o teórico (considerada a distinção feita por Kant). O movimento pendular dos fatos históricos torna plausível o método dialético como explicação da história (caráter dialético da realidade e do pensamento). A dialética hegeliana ascende à idéia absoluta; esta idéia é a unidade suprema onde as diferenças desaparecem.

O pensamento de Fichte e de Schelling serviu de pilar ao edifício filosófico construído por Hegel e que sobrevive no materialismo dialético de Marx e Engels. A igreja que sofrera os ataques dos deístas e dos céticos, rejubilou-se com a filosofia de Hegel que reconhecia o mérito da fé e exaltava o mundo do espírito. Os adversários de Hegel apelidaram-no de “filósofo oficial”, ironizando o prestígio dele junto à corte imperial da Prússia. Na lógica hegeliana, as categorias são extraídas umas das outras em uma progressão dialética: tese x antítese = síntese. No confronto entre tese e antítese, cumpre observar se há contradição ou oposição. Se houver contradição, uma das proposições será verdadeira e a outra necessariamente falsa. Se houver oposição, ambas podem ser falsas. Essa dialética remonta à técnica do diálogo utilizada por Platão: interação de perguntas e respostas. Cuida-se de mecanismo próprio da inteligência na solução de problemas: exposição do tema + discussão + avaliação do caminho que se mostra mais oportuno e conveniente = decisão. Do ponto de vista lógico, não há contradição entre fatos, mas apenas entre idéias. A riqueza não contradiz a pobreza; entre elas há tão somente contraste social e econômico. Na criança, a prece é uma seqüência de sinais pictóricos e sonoros; no idoso, a mesma prece evoca a experiência de toda uma vida. A parte perde significado se não estiver relacionada ao todo. A idéia particular perde o seu sentido se não estiver relacionada à idéia universal. Se o todo for plenamente verdadeiro, a parte será verdadeira parcialmente.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

FILOSOFIA XIV - 21



EUROPA (1800 a 1900). Continuação.

Para alcançar a felicidade, o ente racional há de ser digno, o que implica submissão completa à lei moral. No conhecimento do sumo bem consiste a sabedoria teórica. Na conformidade da vontade ao sumo bem consiste a sabedoria prática. De um modo geral, são atribuídas a deus: (1) as seguintes qualidades morais: (i) santidade (legislador santo); (ii) bem-aventurança (governante bondoso); (iii) sabedoria (juiz justo); (2) as seguintes propriedades essenciais: onipresença (está presente em tudo, no mundo natural e no mundo espiritual); onipotência (tudo pode em ambas as esferas); onisciência (conhece a si mesmo e a todos os seres nos reinos físico e metafísico). Os postulados da razão pura prática são: (1) existência de deus; (2) imortalidade da alma; (3) liberdade enquanto causalidade de um ente pertencente ao mundo inteligível. Para cada uso da razão em relação a um objeto são requeridos conceitos do entendimento (categorias) sem os quais nenhum objeto pode ser pensado. As categorias têm sua sede e origem no entendimento puro – enquanto faculdade de pensar – antes e independente de qualquer intuição.

As carências da razão especulativa deságuam nas hipóteses; as carências da razão prática deságuam nos postulados. Inevitável é pressupor para todo ente racional no mundo, aquilo que é necessário à sua possibilidade objetiva. Essa pressuposição é tão necessária quanto a lei moral em relação à qual ela também é válida. Se a natureza humana está destinada a aspirar ao sumo bem, a medida das suas faculdades de conhecer, principalmente a relação delas entre si, tem que ser admitida como conveniente a esse fim.

Kant enfatiza a força e a importância das inclinações para as quais a lei moral funciona como freio e limitação. Pela desigualdade dos homens na constituição civil, as vantagens de uns acarretam privações a outros.

[Vem à balha, a “privatização dos lucros e socialização dos prejuízos”. Na imaginária balança social, um dos pratos recebe os bônus (privilégios e vantagens) e o outro os ônus (sacrifícios e privações). Em uma sociedade aristocrática, os bônus são da minoria e os ônus da maioria, como regra geral; o inverso acontece como exceção, conforme o estado de coisas. Em uma sociedade democrática, os bônus e os ônus são distribuídos proporcionalmente entre todos os cidadãos. A proporção admite a desigualdade que encontrar aceitável e racional justificação. As diferenças naturais e culturais existem de fato e não devem ser ignoradas, sob pena de incidir-se em equivocado e injusto nivelamento. No plano dos fatos, essa distribuição varia segundo a realidade política, econômica e social de cada nação].

A lei moral é um mandamento da razão pura prática incondicionada, portanto, superior à sensibilidade. A lei moral reclama cumprimento por dever e não por uma predileção que não se deve absolutamente pressupor. Arriscar a vida pela pátria ou pelo próximo pode ser meritório, heróico, mas não necessariamente moral. Perder a vida pela pátria é conseqüência de um comando externo, de uma obrigação imposta pelo Estado e não de um impulso interno ditado pela lei moral. Perder a vida pelos outros é violar o direito para consigo mesmo e para com a sua família, quando esta não for o motivo da ação.

Quando arriscamos a vida pelos outros nem sempre estamos vendo as suas virtudes e os seus vícios, as singularidades morais e intelectuais; por vezes, nem sabemos de quem se trata. Podemos estar arriscando a vida por uma pessoa de mau caráter, um estelionatário, um corrupto, um assassino. Se disto nos inteirarmos singularmente, é provável que nos abstenhamos da ação heróica, pois a comparação entre nós e aquele tipo de pessoa é inevitável. Entre o risco da minha vida e a de um criminoso, que padeça o criminoso. Quando desconhecemos a pessoa em perigo, agimos vendo no próximo uma universalidade, um ente abstrato provido de essência humana, um indivíduo da espécie animal a que pertencemos. Estamos como que salvando a nós mesmos ou aos nossos entes queridos, numa substituição psíquica, pois caso nos encontrássemos em igual situação de perigo, também gostaríamos de ser salvos e que alguém arriscasse a vida para nos salvar, se fosse necessário.

Método da razão pura prática exposto por Kant: (1) Tornar o ajuizamento segundo leis morais uma ocupação natural. Conformidade à lei moral. Há diferença entre a lei moral daquilo que a carência dos homens exige de mim e o direito daquilo que me é exigido. (2) A ação tem de ocorrer também (subjetivamente) em vista da lei moral. Além da retidão moral, a ação terá também valor moral como disposição concordante com a sua máxima. A ocupação da faculdade de julgar em conformidade com a lei moral dá à virtude (ou à maneira de pensar segundo leis morais) uma forma de beleza que é admirada, mas, nem por isso, procurada. (3) O passo seguinte é tornar perceptível, em exemplos, a pureza da vontade na apresentação viva da disposição moral. A reflexão pode ocupar-se: (i) do céu estrelado acima de mim; (ii) da lei moral dentro de mim. No primeiro caso, a reflexão começa no lugar que ocupamos no mundo sensorial externo. A conexão em que nos encontramos ao imensamente grande (macrocosmo) estende-se, pela reflexão, aos tempos ilimitados do seu movimento periódico. No segundo caso, a reflexão começa em minha personalidade (em si mesma) e me expõe à infinitude de um mundo com o qual me reconheço em conexão universal e necessária, mas que é acessível apenas ao entendimento.

O espetáculo grandioso do universo aniquila-me como criatura animal. Devolverei em pequeno prazo a matéria da qual sou formado e que estava dotada de força vital. O espetáculo descortinado pela personalidade eleva meu valor enquanto inteligência. A lei moral me revela uma vida independente da animalidade e até mesmo de todo o mundo sensorial. A contemplação do mundo começou do mais grandioso espetáculo – que só os sentidos podem oferecer e o entendimento suportar e perseguir – e terminou na astrologia. A moral começou na mais nobre propriedade da natureza humana – cujo desenvolvimento e cultura visam a uma utilidade infinita – e terminou na superstição e no fanatismo.

[A grandeza macroscópica do universo amesquinha até mesmo o nosso planeta e o nosso sistema solar. Todavia, perante a estrutura atômica e microscópica da matéria, o ser humano, o planeta e o sistema solar se agigantam. Tudo é uma questão de perspectiva. Kant estava inserido na cultura européia dos séculos XVIII e XIX. Seu pensamento está desprovido do conhecimento científico de que dispomos na atualidade. No entanto, a sua crítica sobre os desvios do caminho da ciência e do caminho da moral é válida para a idade contemporânea. No que tange à parte nobre da natureza, a linguagem reflete proximidade com a hierarquia social do regime monárquico e aristocrático da idade moderna, mas que ainda vigora em nossos dias. O organismo humano e todas as suas funções têm utilidade e importância. Assim como o cérebro e a inteligência, também o coração e a intuição ocupam importante lugar nos mecanismos do corpo humano].

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

FILOSOFIA XIV - 20



EUROPA (1800 a 1900). Continuação.

Nem tudo o que é legal é moral. Todas as inclinações do ser humano em conjunto constituem o solipsismo. A benevolência para consigo mesmo sobre todas as coisas constitui o solipsismo do amor em si (philautia). A complacência para consigo mesmo é outro tipo de silopsismo (arrogantia). O primeiro tipo chama-se amor-próprio; o segundo chama-se presunção. [As inclinações são determinadas pela razão, derivadas dos instintos e se enquadram nos fenômenos afetivos, que são manifestações das nossas tendências. O dinamismo sensível compreende: (1) tendências, compostas de dois tipos: instintos e inclinações; (2) estados afetivos que compreendem: o prazer, a dor, os sentimentos, as emoções e as paixões (Fonte: Curso de Filosofia, Régis Jolivet)]. O conceito de dever exige na ação como único modo de determinação da vontade pela lei: (1) objetivamente, concordância com a lei (legalidade); (2) subjetivamente, na sua máxima, respeito pela lei (moralidade).

Em todos os ajuizamentos morais é importante prestar atenção ao princípio subjetivo de todas as máximas para que toda a moralidade das ações seja posta na necessidade das mesmas por dever e por respeito à lei e não por afeição e amor a aquilo que as ações devem realizar. Em suma: agir por dever e não pelas vantagens. A lei moral é produto da razão prática pura e único fundamento determinante da vontade. Dever e obrigação são as únicas denominações que temos de dar à nossa relação com a lei moral. A lei do amor vem expressa no mandamento cristão: “Ama a Deus acima de tudo e a teu próximo como a ti mesmo”. O homem é incapaz de amar alguém meramente por mando. [Nesse trecho, Kant faz menção sobre tratar o próximo como nós mesmos, isto é, amar o próximo como se nós fossemos o próximo, como se houvesse uma unidade entre o eu e o outro]. “A razão pura prática ordena fazer do pensamento do dever – que abate toda a arrogantia e toda a vã philautia – o princípio de vida supremo de toda a moralidade no homem; em toda a criação, tudo o que se queira e sobre o que se exerça algum poder, também pode ser usado simplesmente como meio; somente o homem, e com ele cada criatura racional, é fim em si mesmo”.

A liberdade implica autonomia da vontade. Livre é o sujeito que não se submete a outra vontade, senão à sua própria. A lei moral assenta-se na liberdade, cujo reino é o da razão pura prática, não o reino da razão pura teórica e nem tampouco o reino da natureza. A venerabilidade do dever tem a sua lei peculiar e o seu foro próprio e nada tem a ver com o gozo da vida. A razão pura tanto pode ser prática como teórica (especulativa). A razão prática e a razão teórica implicam a mesma faculdade de conhecer. A razão humana só encontra plena satisfação numa unidade completamente sistemática dos seus conhecimentos. Princípio da causalidade opera em dois planos: (1) o natural, como necessidade ou determinismo natural; (2) o moral, como liberdade e determinismo racional. Põe-se o problema insolúvel do determinismo em face do livre-arbítrio. O determinismo no plano moral conduziria à irresponsabilidade, pois não seria justo alguém responder por uma ação inevitável à qual estava previamente determinado pela natureza ou pela razão, caso em que não haveria vontade livre para agir. Vontade heterônoma subordinada a outras vontades ou fontes de coerção, não pode gerar responsabilidade para o agente.

Nada podemos pensar sem categoria. Na idéia de liberdade há de ser buscada a categoria. Essa categoria é a causalidade cujas fontes são a natureza e a razão prática. A causalidade por liberdade deve ser encontrada no mundo inteligível, fora do mundo sensorial. A proposição fundamental da moralidade é a proposição fundamental da causalidade, que não requer busca nem invenção, porque há muito se encontra na razão humana, incorporada à sua essência. Por ser corpo e alma, o homem participa de dois mundos: (1) como ente inteligível, em virtude da sua liberdade, determinado pela lei moral; (2) como ente sensorial, em virtude da sua necessidade natural (atua no mundo sensorial de acordo com aquela determinação).

A razão pura tem sempre a sua dialética, tanto no seu uso especulativo quanto no seu uso prático. Todos os conceitos das coisas têm que ser referidos a intuições que entre os seres humanos só podem ser sensíveis. Iludimo-nos ao tratar os fenômenos como coisas em si mesmas. Ao procurar a origem dessa ilusão, a mente humana depara-se com uma perspectiva sobre uma superior e imutável ordem das coisas. Podemos ser instruídos mediante preceitos dessa ordem (tópicos, máximas, leis, princípios) a prosseguir a nossa existência em conformidade com a suprema destinação da razão.

Na teoria de Kant aqui exposta, o sumo bem consiste na totalidade incondicionada do objeto da razão. Determinar a idéia de sumo bem de um modo praticamente suficiente para a máxima da nossa conduta racional, resume a doutrina da sabedoria. O bem supremo nada tem a condicioná-lo. Resulta da conexão entre a virtude e a felicidade, como unidade complexa, síntese dos dois conceitos. O bem prático deriva de uma ação. O interesse do uso especulativo da razão pura está no conhecimento do objeto até os princípios supremos a priori. O interesse do uso prático da razão pura está na determinação da vontade em relação ao fim último e completo. Todo interesse é por fim prático. A condição suprema do sumo bem é a conformidade plena das disposições à lei moral. Esse objetivo só é possível à santidade. A imortalidade da alma é o pressuposto da possibilidade prática do sumo bem. Tal imortalidade é um postulado da razão prática.

A moralidade (virtude) e a felicidade (bem-estar) são os elementos do sumo bem. A existência de deus é um postulado da razão pura prática. A interconexão entre moralidade e felicidade no sumo bem exige uma causa comum e superior que a determina. Essa causa é um ente dotado de entendimento e vontade: deus. A existência de deus pode ser admitida pela razão especulativa como hipótese (hipo = abaixo; tese = conhecimento certo) e como fé racional, com referência à inteligibilidade de um objeto (sumo bem) dado a nós pela lei moral cuja fonte é a razão pura, tanto no seu uso prático como no seu uso teórico. A perfeição moral que o ser humano pode alcançar será sempre virtude e jamais santidade. Virtude como conformação à lei moral por respeito à lei moral. Essa disposição decorre da consciência de uma propensão contínua à transgressão da lei. O comportamento humano, tanto nas sociedades primitivas como nas civilizadas, não se destina à santidade, salvo exceções raras.

[A virtude pela virtude é buscada por poucos. Na sociedade de consumo, a virtude está condicionada às vantagens que pode trazer ao indivíduo. A transgressão da lei moral é uma constante na sociedade. Às vezes, o homem também transgride a lei natural ao dar prioridade às normas morais e jurídicas. Põe-se o problema do conflito entre a lei natural e a lei cultural, como acontece nos casos de eutanásia e de aborto. A solução desse conflito ora pende para o idealismo, ora para o positivismo].