domingo, 22 de março de 2009

AULA MAGNA
Março de 2009

A UNIVERSIDADE

1. Introdução: conteúdo da palestra. 2. Significado da aula magna. 3. Origem e evolução da universidade. 4. Breve histórico da Estácio de Sá. 5. Metodologia do ensino na Estácio de Sá: (i) aulas expositivas com apoio logístico, aliando a matéria a casos concretos; (ii) aplicação do conhecimento mediante prática simulada, oficina e prática forense. 6. Encerramento: boas vindas aos novos estudantes e votos de felicidades a todos.


O tema que desenvolverei nesta palestra versará a Universidade. Preliminarmente, pronunciar-me-ei sobre o significado da aula magna. Após, em largas pinceladas, tratarei da origem e evolução da universidade. Em seguida, referir-me-ei sucintamente à Universidade Estácio de Sá e à sua metodologia. Rogo a paciência do auditório.

Aula, no sentido remoto da palavra, significa sala de preleções; no sentido próximo, significa as lições sobre determinada matéria, ministradas em tempo limitado, nem sempre em recinto fechado. Na Idade Clássica, alguns professores, a exemplo de Aristóteles, davam aulas passeando ao ar livre com seus discípulos, o que lhes rendeu o nome de peripatéticos (gr. peripatetikós = o que ensina passeando; peri = externo; patetikós = o que comove, enternece, se expressa em gestos exagerados). A Idade Clássica compreende o período de 600 a.C., quando os centros de civilização se deslocam para a Grécia e a Itália, até o ano de 476 d.C., quando os bárbaros invadem e dominam Roma.

A sala de aula é o espaço de reunião do professor com os alunos. Hodiernamente, esse espaço pode ser virtual, graças ao progresso da informática e das telecomunicações. De corpo ausente, o professor ministra lições que são recebidas por estudantes situados em diferentes e distantes lugares. Coloca-se a tecnologia a serviço do ensino a distância. A técnica de estudo por correspondência através dos correios, forma tradicional de ensino a distância, continua a ser utilizada.

Aula virtual é o nome que se dá às preleções por intermédio da rede de computadores (online) ou teletransmitidas via satélite, o que exige equipamentos de transmissão e recepção. Por via eletrônica, os estudantes recebem lições e exercícios e se comunicam com os professores.

Permanece válida e eficaz a aula convencional, com professor e alunos presentes na mesma sala se comunicando verbalmente. A interação face a face entre aluno e professor acrescenta um tempero emocional construtivo ao processo ensino/aprendizagem. Efetivamente, aprende-se com a razão e com o coração. Daí falar-se em inteligência emocional, como o faz Daniel Goleman, PhD em psicologia, no livro que leva aquele mesmo título (inteligência emocional). Os processos racionais podem ser aquecidos positivamente pelas emoções. O aparelho sensorial humano capta o objeto do conhecimento em estado bruto; o entendimento humano o burila; o sentimento humano o expressa amorosamente.

A aula magna, diferentemente dos demais tipos de preleção, se reveste de solenidade para marcar o início de um novo período letivo. A magnitude não está na extensão ou no conteúdo da palestra e sim no simbolismo do ato. O expositor pode ser um professor da casa ou de outra instituição. O tema é de livre escolha do expositor. Além do ângulo intelectual, a aula magna acena para uma convivência fraterna até a conclusão dos estudos regulares. Pólos da relação ensino/aprendizagem, mestre e discípulo devem se relacionar de modo amistoso e profícuo, sem hostilidade e radicalismo.

Ao professor não convém a postura de déspota ou de um ser infalível. O aluno não deve ser subestimado na sua inteligência e capacidade de aprender. O conhecimento científico há de ser transmitido liberto de eventuais preconceitos e idiossincrasias do professor (gr., idiosynkrasia = disposição particular de temperamento em virtude da qual cada indivíduo sente de modo diferente os efeitos da mesma causa; suscetibilidade especial). O aluno deve participar ativamente das aulas; evitar a passividade total. A autoridade do professor mostrar-se-á de modo austero, sem arrogância ou pedantismo (ostentar conhecimentos superiores aos que realmente possui; ciência falsa e pretensiosa). A obediência do aluno aos bons costumes e às normas da universidade não compromete a sua dignidade. O respeito mútuo é fundamental à eficácia do ensino e a um elevado nível de relacionamento.

Universidade significa: (i) a qualidade daquilo que é universal (ii) o conjunto de pessoas ou coisas reunidas sob certa ordem para fins determinados. Expressa a idéia do múltiplo no uno, própria do vocábulo universo. Na área educacional, compreende-se por universidade a reunião, sob as mesmas regras e sob comando central, de várias escolas de ensino superior relativas a diferentes ramos do saber. Deve-se à Europa, a criação das universidades. Inicialmente, na Idade Média, a universidade tomou a forma de corporação organizada para preparar e licenciar professores. Posteriormente, concentrou escolas de artes e profissões tais como as de teologia, direito e medicina.

As universidades mais antigas foram as de Salerno, Bolonha e Paris, fundadas, a primeira, no século X (anos 901 a 1000) e as duas outras, no século XII (anos 1101 a 1200). A essas três, seguiram-se as de Oxford, Cambridge, Montpellier, Salamanca, Roma e Nápoles. No final do século XIV (anos 1301 a 1400) criaram-se as universidades de Praga, Viena, Heidelberg e Colônia. A universidade de Bolonha serviu de padrão para as universidades do sul da Europa e a universidade de Paris serviu de padrão para as universidades do norte da Europa. O grau de bacharel era obtido após 4 ou 5 anos de estudos no trivium composto das seguintes disciplinas: gramática, retórica e lógica. O grau de mestre exigia de 3 a 4 anos de estudos no quadrivium composto de aritmética, geometria, astronomia e música. O grau de doutor era obtido após 4 ou 5 anos de estudos especializados em teologia, direito ou medicina. O doutorando devia ter a idade mínima de 35 anos. Mestre e doutor eram títulos exclusivos da docência. Doutor, por exemplo, era o professor de medicina e não o médico, embora as duas qualificações pudessem conviver na mesma pessoa. Todo professor de medicina era médico, mas nem todo médico era professor de medicina.

Na Idade Moderna, que se inicia em 1789, com a revolução francesa e termina em 1914, sob o troar dos canhões da primeira guerra mundial, a universidade, provida de pessoal e de recursos materiais para bem realizar as suas finalidades, concentra estudos e pesquisas diversificados e se compõe de várias faculdades segundo a área científica, artística, filosófica ou religiosa objeto do ensino e da aprendizagem. A estrutura e o funcionamento dessas faculdades estavam disciplinados em um ordenamento comum. Os três graus de formação acadêmica estabelecidos na Idade Média foram mantidos: bacharelado, mestrado e doutorado. Além disso, nos dias atuais, há cursos de especialização em níveis de pós-graduação e de pós-doutorado. Por seu relevante papel no desenvolvimento da nação, a universidade merece o apreço de todos, especialmente de quem ali trabalha e estuda. Dignificando a universidade, dignificaremos o diploma e o seu portador.

Até o século XVII (anos 1601 a 1700) o conhecimento científico se abrigava sob o manto da filosofia natural. O título de filósofo natural representava autoridade intelectual no seu grau mais elevado. Galileu, Descartes, Newton, eram reconhecidos como filósofos naturais e não como cientistas, pois o termo ciência ainda não estava em uso. No século XVII houve mudanças decorrentes da introdução do método experimental e da análise matemática no estudo da natureza. O racionalismo cartesiano fez escola. Essas mudanças caracterizaram a revolução científica, que pode ser colocada no bojo da mais ampla revolução cultural que se inicia na segunda fase da Idade Média (801 a 1300) e se estende até a Renascença (1301 a 1700).

Com a crescente autonomia dos diferentes ramos do saber (matemática, física, química, biologia) o termo ciência entra em voga na Europa. Em 1666, foi criada em Paris, a Academia Real de Ciências. A ramificação do saber até o incrível número de especialidades que hoje testemunhamos, refletiu-se no ensino. Faculdades foram criadas para as áreas do conhecimento assim especializado. O reflexo dessa multiplicidade se fez sentir, inclusive, no planejamento educacional e curricular. No Brasil, o curso de direito do século XXI, apresenta um número bem maior de disciplinas do que havia nos anos 50, do século XX. O currículo atual parece uma enciclopédia, o que pode gerar um aprendizado superficial. A quantidade está prejudicando a qualidade, o que exige um planejamento que redistribua disciplinas entre a graduação e a pós-graduação, visando ao ensino mais eficiente e a profissionais mais capacitados. Essa mudança dependerá da política governamental na área da educação.

Além das instituições estatais, instituições particulares também se dedicaram ao ensino de nível superior. Até a Idade Moderna, o acesso à universidade era privilégio de poucos. A maioria da população européia era de analfabetos e deficientes culturais, desde as camadas mais ricas até as mais pobres. Na Idade Contemporânea, que começa em 1918, quando termina a primeira guerra mundial, os portões da universidade se abriram para um número cada vez maior de pessoas das camadas altas e médias da sociedade. O critério de admissão passou a ser o mérito pessoal, avaliado mediante provas escritas e orais. Nas universidades particulares (religiosas ou laicas) acrescenta-se o critério econômico, a possibilidade de o estudante pagar as mensalidades, semestralidades ou anuidades. Diferentemente das universidades públicas, as particulares não dispõem do erário para cobrir despesas. Excepcionalmente, no Brasil, instituições particulares concedem bolsas de estudos a certo número de vagas. Cabe frisar, todavia, que o objetivo da universidade é o estudo e a pesquisa. A caridade pública é finalidade de outras instituições sociais. Apesar disso, escolas particulares não ficam insensíveis e indiferentes aos problemas gerais da sociedade e aos específicos das camadas pobres. Cumpre assinalar, realisticamente, que a universidade sempre foi seletiva. As vagas são limitadas e o ingresso depende da capacidade intelectual do candidato e do preparo adquirido nos precedentes níveis primário e secundário de ensino. O êxito do estudante dependerá da sua disposição de vontade para o estudo, aliada a uma boa formação moral.

A Universidade Estácio de Sá resultou desse movimento de expansão da iniciativa particular na área do ensino. Começou como faculdade de direito. Paulatinamente, foram criadas outras faculdades, reunidas sob uma direção superior e um conjunto de regras institucionais. No decorrer da sua experiência no campo do direito, a Universidade Estácio de Sá adotou o método do caso concreto no propósito de, ao harmonizar o plano teórico com o plano empírico, melhorar o rendimento do aluno. Amplia-se a participação do estudante na aquisição do conhecimento. Casos judiciais e extrajudiciais são examinados no decorrer da aula. Problemas são propostos para que os alunos os resolvam em conjunto ou separadamente. Desse modo, os próprios alunos testam os seus conhecimentos antes das avaliações regulares feitas pelos professores.

A aplicação do que foi aprendido não se restringe às aulas básicas de aquisição do conhecimento, mas se estende à prática simulada e às oficinas onde os alunos reforçam o aprendizado e desenvolvem suas potencialidades nas esferas intelectual e emocional, sempre sob orientação dos professores. No sentido comum, entende-se por oficina: (i) lugar onde se trabalha e se exerce algum ofício (ii) local onde os trabalhadores utilizam máquinas, equipamentos e ferramentas. No sentido figurado, oficina é um lugar onde se operam transformações notáveis. Como técnica de ensino/aprendizagem, a oficina pode ser de dois tipos: oficina de reforço e oficina de leitura.

A oficina de reforço destina-se a dar maior segurança ao aluno no que tange aos estudos acadêmicos. As lições do passado são repetidas no presente de maneira intensiva. A oficina de reforço é extremamente útil para o aluno fixar o essencial da disciplina e obter um bom resultado nos exames de caráter educacional promovidos pelo Ministério da Educação e nos exames de caráter profissional promovidos pela Ordem dos Advogados do Brasil. O resultado negativo em qualquer desses exames repercute no diploma e na vida profissional do portador. Daí a necessidade de os estudantes se esforçarem para obter boa avaliação.

Cumpre lembrar que o estudante não se forma em advocacia e sim em direito, com o título de bacharel, requisito básico para se dedicar às profissões jurídicas como a de advogado, delegado de polícia, promotor de justiça e juiz de direito. Para ingressar nessas profissões, o bacharel está obrigado a realizar exames e a prestar concursos públicos de provas e títulos. Sem um resultado positivo no exame, o bacharel não pode se inscrever na Ordem dos Advogados. Ações judiciais foram propostas sustentando a inconstitucionalidade dessa norma restritiva que retira a eficácia do diploma para o exercício profissional. Todavia, não há notícia de êxito dessas demandas nos tribunais. O interesse corporativo se sobrepôs à competência da universidade e ao direito do diplomado. Conforme a tradição, o diploma de bacharel em direito habilitava o portador a exercer a advocacia, independentemente de qualquer formalidade. Com a criação da OAB pelo artigo 17, do decreto 19.408, de 18 de novembro de 1930, a inscrição tornou-se obrigatória. Bastava apresentar o diploma de bacharel em direito para efetivá-la. Com o advento da lei 4.215, de 27 de abril de 1963 (Estatuto da OAB), o bacharel dispunha de dois caminhos alternativos para obter a inscrição: (i) fazendo e comprovando o estágio ou (ii) prestando o Exame de Ordem (art. 48, III). Com o agravamento da deficiência do ensino no Brasil, desde o grau primário até o universitário, a partir das décadas finais do século XX, o Poder Legislativo baixou lei condicionando a inscrição à aprovação no Exame de Ordem, sem a alternativa do estágio (inciso IV, do artigo 8º, da lei 8.906, de 04 de julho de 1994, - novo Estatuto da OAB). Sem a inscrição, o bacharel não pode exercer a advocacia nem ingressar em carreira jurídica alguma. Portanto, o estudante deve aproveitar, ao máximo, o seu período na faculdade, o que facilitará o seu futuro como operador do direito. A Universidade Estácio de Sá contribui para esse desiderato com seus docentes, funcionários, material didático, instalações e atividades complementares.

A oficina de leitura destina-se a desenvolver as potencialidades intelectuais e emocionais dos alunos e a lhes estimular a vocação. Capacita-os melhor para os embates da vida, especialmente para os exames e concursos que terão de enfrentar. A oficina ajuda a ampliar a visão de mundo do estudante, a tornar agudo o seu espírito crítico e a refinar o seu senso ético e estético. Habilita-o a formar conexões de sentido entre as diferentes expressões da ciência, da arte, da filosofia e da religião; habilita-o, enfim, a interpretar, em amplos horizontes, o mundo em que vive. Na oficina, o guia (professor) está presente, porém, o trabalho maior é dos estudantes.

Nos períodos finais do curso, os alunos dispõem do núcleo de prática jurídica para estágio profissional. Isto inclui postulação judicial e extrajudicial nos casos ali trazidos pela população carente. Cuida-se de assistência jurídica gratuita. Há professor inscrito na OAB, responsável pela postulação em defesa dos direitos e interesses dessa clientela. Esse professor orienta o trabalho dos estagiários.

Desde as universidades medievais até as contemporâneas, verifica-se a existência de dois tipos básicos de estudante: o dedicado e o frívolo. Entre esses extremos há posições intermediárias, graus de dedicação e graus de frivolidade. Segundo verificação empírica (lição da experiência), o exercício da crítica pelos estudantes, próprio da natureza humana, apresenta nuances. Manifestações externas, no campus ou nas ruas, parecem mais freqüentes nas instituições estatais do que nas particulares. Internamente, tanto nas estatais como nas particulares, a contestação e as críticas parecem partir com mais freqüência dos alunos do período diurno do bacharelado. Os alunos do período noturno do bacharelado e os do mestrado e do doutorado mostram-se menos inclinados à agitação. Essa vetusta realidade demanda contemporização da parte da universidade e dos professores (entreter para ganhar tempo; acomodar-se ao tempo, às circunstâncias).

As críticas dos estudantes dirigidas aos professores e à universidade assemelham-se, algumas vezes, às críticas dos advogados dirigidas aos juízes e tribunais, que motivaram bem humorado livro do jurista italiano Piero Calamandrei (“Eles, os Juízes, Vistos por Nós, os Advogados”). Sem perder a ternura, o esforço da universidade há de ser no sentido de tornar os alunos frívolos mais conseqüentes e menos volúveis, mais reverentes e menos inconseqüentes. Sem perder a paciência, o esforço dos professores deve ser no sentido de transmitir a sua experiência e os seus conhecimentos aos alunos, num clima harmonioso e fraternal, sem pieguice ou paternalismo.

Aos novos estudantes, dou as boas vindas, com os votos de bom aproveitamento nos estudos e rápida adequação ao método de ensino da Estácio de Sá e à ética universitária. Aos veteranos, a minha palavra de estímulo para que prossigam nos estudos com esmero e dedicação. A todos, os meus votos de paz, saúde e prosperidade.


Obras visitadas.

AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5 volumes. Rio, Delta, 1958.
BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico. Lisboa, Edições 70.
BRUGGER, Walter. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Editora Pedagógica e Universitária, 1977.
BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental, 2 volumes. Rio/São Paulo/Porto Alegre, Editora Globo, 1956.
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. Lisboa, Livraria Clássica, 1960.
GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional. Rio, Objetiva, 17ª edição.
HENRY, John. A Revolução Científica. Rio, Zahar, 1998.
PÉREZ, Jesus Martin. Seminários de Pesquisa: Projeto e Relatório. Rio, Marques Saraiva, 2006.
PINHEIRO, Eduardo. Dicionário da Língua Portuguesa. Porto, Livraria Figueirinhas, 2ª edição.
TURRA, Glória Maria Godoy e/os. Planejamento de Ensino e Avaliação. Porto Alegre, Sagra S/A, 1975.

sábado, 21 de março de 2009

CRISTO E ANTICRISTO
Antonio Sebastião de Lima

O episódio da excomunhão dos médicos e da mãe de uma menina de 9 anos submetida a cirurgia para extrair feto resultante de estupro, agitou a sociedade brasileira. Houve sérios questionamentos dentro e fora da Igreja. Autoridade do Vaticano tentou amenizar a decisão da autoridade eclesiástica brasileira. Autoridade política brasileira apoiou a decisão dos médicos e da mãe da menina. Católicos e protestantes se posicionaram a favor ou contra a sentença do arcebispo brasileiro. Fé e razão se confrontaram, novamente. As tentativas de conciliação apelando para uma fé racional ou para uma razão fiduciária são antigas e infrutíferas. Quando surge um fato concreto, como o dessa menina, as posições se extremam.

Na primeira fase da Idade Média (anos 400 a 800) os filósofos cristãos dividiam-se em 3 grupos: (i) os defensores da primazia do dogma (ii) os defensores da primazia da razão (iii) os ecléticos. A dogmática na filosofia cristã começa com Tertuliano: cristianismo é o sistema de leis sagradas aceito pela fé; o conhecimento intelectual merece desprezo; os dogmas da fé não estão sujeitos à prova da razão. A essa corrente pertenceram Ambrósio, Jerônimo e Gregório. Entre os cristãos racionalistas citam-se Clemente de Alexandria e Orígenes: a razão é a base fundamental do conhecimento religioso e secular. Agostinho situa-se entre os dogmáticos e os racionalistas: a fé está acima da razão, porém há necessidade de explicação intelectual para a crença; há verdade absoluta e eterna; há conhecimento instintivo implantado por Deus no espírito humano; há conceitos básicos que existem no ser humano desde o nascimento como reflexo da verdade eterna tais como: justiça e direito.

Nos séculos XII e XIII (1101-1300) a filosofia escolástica coloca a razão a serviço da fé. Filosofia a serviço da teologia. Todo conhecimento necessitava amparo das escrituras, dos padres, de Platão e de Aristóteles. O primeiro entre os cristãos racionalistas foi João Escoto Erígena, considerado o fundador da escolástica: no conflito entre razão e autoridade há de prevalecer a razão. Pedro Abelardo (1079–1142) monge francês, culto, moço e belo (vangloriava-se de conquistar qualquer mulher que lhe despertasse o amor) criou o realismo moderado. Os grandes dias da escolástica vieram pelas mãos de Alberto Magno e de seu discípulo Tomaz de Aquino, ambos dominicanos e professores na Universidade de Paris. Da obra de Tomaz sobressaem os propósitos de: (i) demonstrar a racionalidade do universo (ii) estabelecer o primado da razão. Tinha como plano cristão: justiça e paz na Terra e salvação da humanidade em um mundo vindouro. Acreditava na capacidade do homem para conhecer e compreender o mundo. Tomaz foi proclamado pelo papa Leão XIII (final do século XIX) filósofo oficial da igreja católica romana.

Desde a revolução científica no mundo ocidental, a partir do século XVII (1601/1700) a fé vem perdendo terreno para a razão. Graças ao avanço técnico no campo das comunicações, incluindo o processo de ensino e aprendizagem, parte da população (maior ou menor, conforme o país) tem acesso ao conhecimento científico. Pessoas comuns passaram a aderir ao questionamento das irracionalidades da religião, outrora limitado à elite moral e intelectual da Europa e da América. O Iluminismo concentrou luminares da inteligência humana nesses dois continentes, à semelhança do que ocorreu na Grécia nos séculos V a III a.C. Essa elite intelectual discordava da tirania religiosa e política; pugnava pela libertação do espírito humano dos grilhões dos dogmas irracionais e do artificialismo da igreja cristã.

Voltaire dizia que chamar Jesus de cristão era um insulto. A doutrina e o exemplo de Jesus eram completamente estranhos à igreja cristã. Acrescente-se a isso, que a palavra cristo, de origem grega, significa ungido, untado com óleo, sagrado, purificado. Aplica-se aos grandes vultos da vida mística, como Aquenaton, Zoroastro, Sidarta, Jesus, Gandhi. A igreja católica se diz cristã por se considerar herdeira da autoridade de Pedro conferida por Jesus. Falácia. Jesus autorizou todos os apóstolos a pregar e curar em seu nome. Por isso mesmo, o colégio apostólico era composto de um número par e não de número impar de apóstolos (12 e não 11 ou 13). Ímpar e insubstituível era Jesus. Pelo exemplo e pela palavra, Jesus pregou uma vida simples e natural, sem paixão pela riqueza, pelo poder ou pela fama, sem luxo ou ostentação.

A igreja católica (palavra de origem grega que significa universal) começou a se institucionalizar com Paulo de Tarso. Fariseu esperto e velhaco, Paulo viu no movimento dos apóstolos oportunidade de melhorar a sua situação. O Sinédrio lhe pagava para perseguir, prender e matar cristãos, dentro e fora da Palestina. Aderindo aos cristãos, Paulo tinha condições de liderança por sua superior formação intelectual e sua experiência como capitão de mato. O comando daquele movimento, que se mostrava firme e determinado, avassalador, poderia lhe proporcionar vida melhor (viajar pelo mundo, comer, beber e se vestir bem, dar ordens, ser festejado, paparicado e ainda ganhar dinheiro). Paulo inventou o encontro com Jesus no caminho de Damasco e que ficara cego com a forte luz que emanava do rabi. Ora, Jesus jamais cegaria alguém, pelo contrário, curava os cegos; a luz que dele irradiava não era física e sim espiritual; não cegava olhos, iluminava a alma (luz = compreensão).

A alegação de cegueira convinha a Paulo. Muitos discípulos conheciam Jesus pessoalmente. Descrever Jesus a esses discípulos seria embaraçoso. Paulo nunca vira Jesus. Sobre a pilastra farisaica, egoística e falsa ergueu-se a igreja católica institucionalizada, igreja que não é de Jesus, nem de Pedro e sim de Paulo. Daí as reservas quanto às mulheres no sacerdócio. Jesus admitia mulheres no apostolado e se casou com uma delas. Paulo as desprezava; emparelhava-as aos animais irracionais; vedava novo casamento às viúvas. Rituais, dogmas, sacramentos, penitências, simonia, celibato, tudo isso foi criado por fariseus com batina de padre para enganar os ignorantes (ricos e pobres). Como dizia Voltaire, o primeiro teólogo foi o primeiro velhaco que enganou o primeiro tolo.
Até o início da Idade Contemporânea (1918) a maioria da população européia e americana era de gente ignorante, analfabeta ou deficiente cultural, tanto das camadas ricas como das camadas pobres. Isto responde pelo sucesso e riqueza das religiões. Ainda neste século XXI pessoas enriquecem fundando igrejas, porque há tolos suficientes para segui-las e sustentá-las.