terça-feira, 22 de abril de 2008

Direito de mentir

Em alguns inquéritos, no Congresso Nacional, os parlamentares exigiam dos investigados que fosse dita a verdade, sob pena de prisão. Diante disso, os investigados recorriam preventivamente ao Poder Judiciário para assegurar o seu direito de calar. Obtinham o amparo judicial, pois ninguém está obrigado a se auto-incriminar. A crítica à medida judicial confundiu direito de calar com direito de mentir. A sociedade tolera a mentira brejeira (1º de abril) ou a mentira piedosa (evitar sofrimento à pessoa), mas não a mentira maldosa (enganar para levar vantagem, causar dano ou dor). Aquele que mente maldosamente comete ilícito moral. Conforme a relevância da mentira o ilícito poderá adentrar o campo jurídico. O investigado tem o direito de calar, mas não o de mentir; se falar, tem o dever moral e jurídico de dizer a verdade. No ordenamento jurídico não há direito de mentir. Nem o investigado, nem o parlamentar, têm esse direito. O parlamentar responde civil e criminalmente por todos os seus atos, como qualquer cidadão, salvo no que tange à palavra, opinião e voto.

Dir-se-á que diante dessa inviolabilidade específica, o parlamentar tem o direito de mentir (CF 53). Inviolabilidade e irresponsabilidade se distinguem. A palavra é o instrumento de trabalho do parlamentar. Como representante do povo, o parlamentar fala em nome do povo, em defesa do bem comum e no interesse público. Precisa de liberdade de expressão para exercer plenamente essa defesa, produzindo leis, fiscalizando e controlando o Executivo. Por seu turno, o parlamentar deve exercer o mandato com dignidade, compostura e veracidade. O representante do povo não pode ser mentiroso, provocar escândalo, tumultuar a via pública, usar palavras de baixo calão, ofender seus pares, funcionários ou qualquer outra pessoa. Tal comportamento tipifica abuso de prerrogativa, incompatível com o decoro parlamentar e implica perda de mandato (CF 55, §1º).

Recentemente, no município de Itatiaia, a Câmara Municipal votou moção de repúdio a um jornalista acusado de escrever matérias injustas e mentirosas. Acusação genérica, leviana, sem lastro nos fatos e sem prova alguma. A opinião garantida pela Constituição há de ser séria, com base em fatos que permitam verificação da verdade ou falsidade. A moção apoiou-se em texto publicado no blog do jornalista sobre fato ocorrido no domingo de páscoa: um vereador tentava impedir o trânsito em frente à residência da mãe. A rua estava inundada por causa da forte chuva. O vereador, nervoso e aos gritos, postou-se na frente do ônibus da linha Resende-Itatiaia para impedir a passagem. O motorista insistia em passar. O jornalista, que viajava no ônibus, interveio para ajudar na solução do impasse. Os passageiros, indignados, querendo ir para casa (era perto da meia-noite) censuraram o vereador e apoiaram a decisão do motorista de prosseguir viagem. O vereador foi vaiado.

No segundo dia após esse fato, o vereador propôs a moção contra o jornalista em bases falsas. Para agravar a ofensa à dignidade pessoal e profissional do jornalista, o ofício comunicando a moção de repúdio veio vazado em termos que não constam da ata da sessão ordinária. Os termos que o ofício diz transcrever não existem. Ainda que o papel do ofício seja da Câmara Municipal e a assinatura seja do seu presidente, o conteúdo não corresponde ao da ata. Materialmente verdadeiro, o ofício revela-se ideologicamente falso. No uso do seu direito de petição e para restabelecer a verdade, o jornalista protocolou, na Câmara Municipal, resposta escrita. Requereu que a resposta fosse lida em sessão ordinária. Isto só é possível em república democrática, onde os direitos fundamentais são garantidos e têm eficácia.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Coisas da magistratura

A circulação de alguns exemplares do livro “O Evangelho da Irmandade”, em Itatiaia e Resende, gerou entrevista. Forneci ao jornalista os dados solicitados. Edição: RTN Editora, Resende, 2007. Tiragem: 500 exemplares, direitos exclusivos do autor. Distribuidor: não há. Consumo: 200 exemplares, até o momento. Nova edição: a estudar. Fontes: o autor recorreu a fontes acessíveis ao público em geral (livros de história, filosofia, bíblia, literatura esotérica e filmes) e a público restrito (livros rosacruzes, maçons), além da sua formação jurídica. Motivação: a polêmica em torno do livro “O Código da Vinci” de Dan Brown. A idéia surgiu bem antes disso, no curso de conversa entre amigos em Curitiba. Originalidade: a semelhança com o livro de José Saramago “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” se limita ao nome. O conteúdo de “O Evangelho da Irmandade” é sui generis, perto da realidade histórica, da tradição esotérica e da filosofia perene. Livros jurídicos: “Poder Constituinte e Constituição” (Plurarte Editora, 1983) e “Teoria do Estado e da Constituição” (Freitas Bastos, 1998). Outras cidades em que leitores brasileiros receberam o livro: Rio, São Paulo, Curitiba, Ponta-Grossa, São José dos Pinhais, Bela Vista do Toldo, Visconde do Rio Branco, Goiânia, Madri, Toronto, São José (Califórnia). Reação: a maioria gostou e sugere um novo romance; poucos se confessaram chocados. Novo romance: talvez, no próximo ano, se houver inspiração.

O fato de o autor ter exercido a judicatura provocou a inevitável pergunta sobre o mais importante caso que passou pelas suas mãos. A resposta dada ao jornalista foi a de sempre: não sei dizer; nunca examinei os processos sob esse ângulo; todos eram importantes. Os jurisdicionados buscam o direito; querem ver triunfar a justiça. O mais importante para o juiz é decidir com acerto qualquer causa; sentir que bem aplicou o direito e realizou justiça no caso concreto. Pouco importa se as partes são ricas ou pobres, negras ou brancas, de família nobre ou comum. Nos anos 80, indeferi, de plano, ação criminal proposta contra o jornalista Hélio Fernandes, pois não vi fundamento suficiente para mandar cita-lo. Tempos depois, candidato a cargo eletivo, o jornalista compareceu no meu gabinete. Foi a única vez que nos encontramos. Ele não estava ali para agradecer, como, de fato, não agradeceu. Ele mesmo costuma escrever: justiça não se agradece. Foi coerente. Tampouco pediu voto. Certamente, ele ali estava para conhecer o juiz, pessoalmente. A conversa foi breve e ele se retirou com o acompanhante que havia nos apresentado. Só tornamos a conversar no século XXI, poucas vezes e por telefone. Ainda em atividade judicante, escrevi alguns artigos publicados na Tribuna da Imprensa. Depois da aposentadoria (1990), outros artigos se seguiram até a presente data. Na mesma vara criminal, julguei improcedente denúncia contra um notório traficante que estava em liberdade (Denis da Rocinha). A prova resumia-se a uma carteira do trabalho, encontrada no local vistoriado pelos policiais. Sem provas suficientes, ninguém deve ser condenado ou mantido na prisão, ainda que se trate de bandido conhecido. Essa é a regra nos países em que vigora a democracia. A polícia prende. O juiz liberta o prisioneiro sempre que a prisão for ilegal.

O importante para o juiz é decidir sensatamente, de acordo com a lei e os princípios gerais de direito, indiferente à opinião pública (volúvel e emotiva), à fama, à riqueza e ao poder das partes. Essa posição jurídica traz segurança aos jurisdicionados. Depois do Estado do Paraná, onde fui juiz por 3 anos, a minha jurisdição sempre foi a cidade do Rio de Janeiro, primeiro como juiz do Estado da Guanabara e depois do novo Estado do Rio. Julguei questões de alto valor econômico como, por exemplo, a disputa por controle acionário de banco. Outras, de valor moral, antes da Constituição de 1988, como a de um artista que reclamava do indevido uso da sua imagem pela TV Globo. Em vara de família, pessoas famosas nas artes, nos negócios ou na política, submeteram suas desavenças à minha apreciação. Todos os casos foram examinados com atenção e receberam a solução justa, embora com a discordância da parte vencida. Certamente, há juízes que guardam na memória os casos e os hierarquizam. Isto acontece nos tribunais. Os juízes afirmam que determinado caso foi o mais importante na história do tribunal. Talvez, a avaliação do público, dos advogados e dos historiadores, não coincida com a dos magistrados. Alguns casos já foram citados como o “mais importante da história deste tribunal”. Sempre aparece um “mais importante”, como agora, no Supremo Tribunal Federal, o caso célula-tronco embrionária. Aguardemos o próximo.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Decoro parlamentar

Decoro significa beleza ética resultante do ajuste da conduta à honestidade, ao pudor e aos bons costumes. Na compreensão do decoro entram as idéias de nobreza e honradez como atributos da personalidade e do ambiente humano. Decoro parlamentar significa (i) a imagem virtuosa de decência, pudor e honestidade que se exige de quem exerce mandato para legislar em nome do povo (ii) atmosfera de nobreza e honradez no âmbito do Poder Legislativo. O parlamentar que se conduz de modo indecoroso fica sujeito à perda do mandato, após o devido processo legal (CF, 55, II; 5º, LIV).

A ação humana, por ser teleológica, implica procedimentos racionais adequados ao objetivo a que se determinou o agente. Em seu conjunto, esses procedimentos, logicamente ordenados a um fim, definem o processo ou o método. Cultivar o solo, produzir medicamento, resolver litígio e outras atividades similares, implicam um processo. Quando o objetivo é solucionar controvérsias pela intervenção de terceiro (árbitro, juiz), além da aptidão física e mental, o terceiro necessita de poder, ou seja, de competência para, em sintonia com a moral e o direito, submeter vontade alheia à própria. Atinge-se tal objetivo mediante um processo cujas regras são fixadas pelos interessados e pelas instituições públicas ou privadas. As regras processuais para solução de controvérsias no âmbito judicial, administrativo ou parlamentar estão contidas na Constituição, nas leis, nos regulamentos, nos regimentos internos e nos costumes. Essas regras assentam-se no princípio do devido processo que, por sua vez, deriva da juridicidade inerente ao Estado de Direito. Esse princípio implica (i) contraditório, ampla defesa, juiz natural (órgão julgador de caráter universal criado por lei) (ii) separação das funções de acusador, defensor e julgador (iii) procedimentos de postulação, produção de provas e julgamento. Nisto consiste o devido processo para solução de controvérsias no âmbito do Judiciário, do Executivo e do Legislativo.

Na decisão final, após o encerramento da instrução, reside a diferença específica entre o processo judicial, o processo administrativo e o processo parlamentar. Na esfera judiciária, a decisão privilegia o aspecto jurídico da questão, em sintonia com a prova produzida e o interesse da sociedade. Na esfera administrativa, a decisão privilegia o aspecto estritamente legal da questão, em sintonia com a prova produzida e o interesse da administração pública. Na esfera parlamentar, a decisão privilegia o aspecto político da questão, na busca da solução mais conveniente e oportuna, ainda que contrária à prova dos autos, desde que atenda aos superiores interesses do Estado. Na ponderação política, os critérios de utilidade e de necessidade podem prevalecer sobre o critério de justiça. Embora provadas a autoria, a materialidade e a culpa, em processo por ilícito que acarreta perda do cargo, a decisão poderá manter o Presidente da República no cargo, ante a perspectiva concreta de, naquele momento, a sanção trazer mais malefício do que benefício ao Estado. A pena, então, deixa de ser aplicada. O processo, porém, terá eficácia positiva, pois, além da sua função pedagógica e dos seus efeitos morais, poderá gerar ou instruir procedimentos civis e penais no âmbito do Poder Judiciário.

O processo por falta de decoro parlamentar segue as regras do ordenamento jurídico, entre as quais, a do impedimento da autoridade que é parte no processo. O Presidente da República fica suspenso de suas funções enquanto dura o processo do qual pode resultar a perda do seu mandato (CF, 86, 1º). O seu afastamento imediato, pelo prazo máximo de 180 dias, constitui imperativo ético e jurídico. Se for provocado, o Supremo Tribunal Federal verificará o cumprimento ou descumprimento das regras processuais e decidirá manter ou anular o processo. Os eleitores, titulares da soberania, por sua vez, poderão se insurgir contra o mérito da decisão do Senado, se contrário aos interesses da Nação.

sábado, 12 de abril de 2008

Pedido de vista dos autos do processo

À semelhança do que ocorre no mundo da natureza, há herança genética também no mundo da cultura, características de um povo que passam de geração a geração. O período colonial e o período imperial, por exemplo, deixaram marcas profundas no caráter do povo brasileiro: o complexo de inferioridade; menosprezo às coisas da terra e valorização das coisas estrangeiras; olhos postos na Europa e nos EUA; imitação do que acontece de bom e de ruim naquelas paragens; importação de idéias, modismos e bugigangas; submissão aos interesses da metrópole (Portugal, Inglaterra, EUA); subserviência às oligarquias locais; agradar e incensar os poderosos; ser malandro e levar vantagem em tudo; protestar contra o ladrão do dinheiro público e justificar o roubo quando ele próprio for o ladrão. Eis aí o gene macunaíma & mazombo de parcela do povo brasileiro. Na outra parcela encontram-se os brasileiros que conseguiram identificar e isolar aquele gene cultural e os imigrantes europeus e asiáticos, com características físicas e culturais diferentes, aqui chegados a partir do século XIX.

Compreende-se, pois, a existência de macunaímas e mazombos no Legislativo, no Executivo, no Judiciário, nas igrejas, nos sindicatos, nas universidades, nas empresas e demais setores da sociedade. Não admira a existência de condutas contrárias à ética, ao direito e aos bons costumes nos Poderes da República. Tome-se, como exemplo, a área jurídica. Ao esforço para a celeridade processual se opõe a praxe nos tribunais de procrastinar mediante pedidos de vista. O Supremo Tribunal Federal, que devia dar o bom exemplo, incide nessa praxe censurável. Os juízes retêm, abusivamente, os autos do processo. Os motivos são os mais variados: amizade, débito para quem o auxiliou na obtenção do cargo, crença religiosa, ideologia política, simpatia com partido político, cortesia para com os governantes do momento, gratificação pecuniária e outras formas de recompensa. As justificativas também variam: doença do juiz, acúmulo de serviço, necessidade de exame mais detido da questão.

Se o magistrado adoece seguidamente e muitas são as licenças para tratamento de saúde no ano, o caminho é a aposentadoria por incapacidade física ou mental. A prestação jurisdicional não pode adoecer nem morrer com o magistrado. O acúmulo de serviço é a porta larga por onde passam a preguiça e a esperteza. Juiz que conhece bem o direito, raciocina dentro da lógica e do bom senso, tem experiência de vida, se dedica integral e honestamente à judicatura, com espírito público e sensibilidade para com os direitos dos jurisdicionados, não sofre com acúmulo de serviço. Mantém o seu serviço em dia; despacha, decide e sentencia dentro do prazo simples ou em dobro. Trabalha muito, porém com a consciência de que foi essa a sua escolha ao prestar concurso ou pleitear o cargo de livre nomeação. Mais do que servidor comum, o juiz é agente político com a função de distribuir justiça. Ao juiz não fica bem se comportar como barnabé-de-toga ou com esperteza politiqueira. Por uma ou duas sessões, tolera-se a retenção dos autos para melhor exame pelo juiz. Cumpre assinalar, todavia, como disse Marco Aurélio, eminente juiz do Supremo Tribunal Federal, em tom bem humorado, que há diferença entre pedido de vista e perdido de vista. O pedido de vista se faz depois do voto do relator, durante o julgamento da ação ou do recurso. O juiz que pediu vista não deve manter o julgamento suspenso por muito tempo. Os demais juízes que aguardam a vez para proferir o seu voto e os jurisdicionados que aguardam a solução da demanda merecem respeito e consideração. A faculdade legal e regimental de pedir vista dos autos tem sido desvirtuada. O presidente do tribunal, da turma ou da câmara, tem autoridade para solicitar a devolução dos autos. A retenção dos autos além do prazo legal é justa causa para punir o magistrado (CF 93, II, letra e). Autoriza, pois, a intervenção do juiz-presidente. Despacho, decisão e sentença são atos distintos do magistrado (CPC 162). A citada norma constitucional exige a devolução dos autos com despacho ou decisão. Silenciou quanto à sentença. A esta equivalem o voto (individual) e o acórdão (coletivo). Portanto, os autos podem ser devolvidos sem o voto escrito do juiz que solicitou vista. Entende-se que o juiz concordou tacitamente com o voto do relator. Cuida-se de presunção juris tantum, pois, nada impede que o juiz infrator profira voto divergente na sessão de julgamento.

O entendimento aqui exposto se harmoniza com as normas da razoável duração do processo e da celeridade dos trâmites processuais (CF 5º, LXXVIII). Se notificado pelo juiz-presidente, o juiz não devolver os autos, o presidente pode determinar a busca e apreensão. Se essa autoridade for exercida, não haverá mais esse tipo de procrastinação nos tribunais. Acontece que o presidente do colegiado pode estar incluído entre os juízes tardinheiros. Nesse caso, faltar-lhe-á autoridade moral para exigir dos seus colegas o que ele mesmo não cumpre. Resta, então, às pessoas com legitimidade ativa, reclamar junto ao Conselho Nacional de Justiça, as providências para que os processos retomem os trâmites legais e os magistrados desidiosos recebam as merecidas punições, inclusive na esfera penal, ainda que sejam membros de tribunal superior. Todos são iguais perante a lei (CF 5º).

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Constituição vilipendiada

Ministro de Estado ou titulares de órgãos diretamente subordinados à presidência da República têm o dever de comparecer à Câmara dos Deputados, ao Senado Federal ou a qualquer de suas Comissões, para prestar, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado (CF 50). A Constituição determina a convocação – não o convite – do ministro ou do agente administrativo. Ao Legislativo não cabe substituir o ato de autoridade (convocar) por um ato de cortesia (convidar). Quando um ministro diz que tem coisa mais importante a fazer do que comparecer ao Legislativo, menoscaba a instituição parlamentar. Por receberem verbas, cargos e favores do Executivo, os parlamentares ficam em posição subalterna e são tratados com desprezo (até pelo povo). Convidar ao invés de convocar, demonstra subserviência. Isto significa que os parlamentares têm autoridade constitucional mas falta-lhes autoridade moral.

O duelo entre governistas e oposicionistas no âmbito da CPI (mista) dos cartões corporativos é mais um fato que dá razão ao senador Garibaldi Alves Filho em seu depoimento à revista Veja. O interesse privado e o jogo partidário prevalecem sobre o interesse público na apuração dos fatos. Há necessidade da intervenção do Ministério Público para investigar os fatos que tipificam crimes contra a administração pública e que a maioria dos membros da CPI (mista) se esforça para ocultar. O inquérito, a propositura da ação penal e o procedimento preliminar de recebimento ou rejeição da denúncia independem de licença da Câmara dos Deputados. Se o juízo de admissibilidade da ação penal for positivo, o STF solicitará licença para instaurar o processo contra o agente do Executivo. Obtida a autorização, o relator mandará citar o agente. Com a citação válida, instaura-se o processo criminal. Negada a autorização, o relator determinará o arquivamento ou enviará os autos à primeira instância, onde o processo será instaurado quando não mais subsistir o óbice constitucional (CF 102, I, b; 51, I; 86).

Salvo disposição expressa da Constituição, sigilo algum pode obstar investigação do Ministério Público, ou do Legislativo, no âmbito da administração pública. A lei não pode se sobrepor à Constituição, mormente decreto expedido no período autocrático. A legislação de origem autocrática incompatível com o novo regime democrático inaugurado em 1988, fica fora do ordenamento jurídico. Daí o Supremo Tribunal Federal afastar dispositivos da lei de imprensa, em recente julgamento, como, certamente, afastará dispositivos da lei orgânica da magistratura. Vige, na república democrática, a regra da publicidade e da moralidade dos atos dos governantes e demais servidores. Ao Ministério Público cabe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF 127). Ao Congresso Nacional cabe fiscalizar e controlar os atos do Poder Executivo. Mediante controle externo e com auxílio do Tribunal de Contas, o Poder Legislativo exerce a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União, sob os critérios da legalidade, legitimidade e economicidade. O dever de prestar contas é de qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária (CF 49, X; 70,71). Se o Legislativo e o Tribunal de Contas não exercerem tal competência, aberta estará a porta à pilhagem. A nação terá de buscar outros meios de fiscalizar e controlar os gastos do Executivo e de apurar a responsabilidade daqueles que se fartaram com o dinheiro do contribuinte.

Com base no republicano princípio da responsabilidade dos governantes, o STF poderá abrir as contas da presidência da república. Tratar essas contas como assunto de segurança nacional é expor a nação ao ridículo, apequenar a cidadania e menosprezar a inteligência dos brasileiros. Tanto na autocracia civil (1937-1945) como na autocracia militar (1964-1985) a primeira preocupação dos autocratas brasileiros foi a de retirar os seus atos da apreciação do Poder Judiciário. O Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da OAB, o partido político com representação no Congresso Nacional, a confederação sindical ou a entidade de classe de âmbito nacional, poderão provocar a atividade jurisdicional do STF e pleitear medidas preparatórias e cautelares necessárias à propositura da ação direta de inconstitucionalidade, à argüição de descumprimento de preceito fundamental e à ação penal originária (CF 103, VI a VIII). A blindagem do presidente da República e correligionários, promovida por seus sequazes na CPI (mista) dos cartões corporativos, é o tácito reconhecimento da prática criminosa. Outrossim, despesas excessivas em nome da dignidade do país ou dos visitantes, também tipificam abuso. Parcimônia e modéstia combinam com dignidade. Prodigalidade e dignidade se repelem. No período 2003-2007, o governo gastou 3 bilhões e 180 milhões de reais em passagens, diárias, locomoções e auxílio-alimentação; média anual de 636 milhões de reais! Gasto escandaloso em país com graves problemas sociais! A família presidencial gastou quase 12 milhões de reais, o que representa média anual superior a 2 dois milhões de reais (média mensal superior a 160 mil reais). Os subsídios do presidente da República, fixados em lei, são ninharia perto desse montante. No citado período (2003-2007) o Brasil cresceu de 1 a 5% a/a, enquanto Rússia, Índia e China cresceram de 7 a 10%. Para quem não desvia os olhos do próprio umbigo, o crescimento da economia brasileira foi bom; para os demais, foi medíocre.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

As elites

O presidente Luiz Inácio, por ignorância ou má-fé, costuma se referir às elites de modo depreciativo e exaltar a sua condição pessoal de nordestino retirante e pobre. Há nisso uma inversão de valores. Enaltece-se a massa, onde prevalece a mediocridade, e execra-se a elite, onde prevalece a virtuosidade. Essa inversão pode resultar: (i) da demagogia, com o fim de conquistar a simpatia e os votos da massa (ii) de um projeto político ideologicamente inspirado para colocar a base da pirâmide no vértice e o vértice na base (iii) de um complexo de inferioridade acoplado a um nivelador sentimento de inveja e de vingança em relação aos que se encontram, por méritos próprios, no vértice da pirâmide. Por outro lado, há dezenas de anos que Luiz Inácio adotou São Paulo como pátria e deixou de ser pobre.

A palavra elite, invenção francesa, origem latina (electis, electe), significa escolha. Vem associada à imagem de flor, que leva agradável sensação à alma. Segue-se o conceito: elite, flor da sociedade. Cuida-se, pois, da escolha do melhor, do mais capaz, do mais brilhante para formar a nata, o escol da sociedade, do Estado ou de uma corporação. Há elite política, elite econômica e elite social. A mesma pessoa pode participar dos três tipos ao mesmo tempo. Uma pessoa rica pode integrar o governo e ser reconhecida como intelectual formadora de opinião. Na sociedade, a escolha é espontânea, brota da difusa energia da população e independe da vontade do eleito. No Estado, a escolha é provocada; a pessoa, por vontade própria, candidata-se ao ingresso na elite política. Na corporação, a escolha deriva da avaliação dos pares e o escolhido passa a integrar o círculo dos mais brilhantes, influentes e capazes (elite do parlamento, elite da magistratura, elite do exército, elite da polícia).

A elite política compõe-se de pessoas que exercem poder político: parlamentares, chefes de governo e magistrados. Nela convivem o sulista rico, educado, culto, e o nordestino que se diz pobre, retirante e inculto. A eleição e o concurso público de provas e títulos são o lastro dessa elite. A virtude moral e a eficiência estão supostas na escolha popular e na aprovação em concurso público, mas podem não se confirmar na prática. Tanto o sulista culto como o nordestino inculto, podem se revelar corruptos no exercício das suas funções. Daí se formar, no âmbito da elite política, um núcleo virtuoso integrado por aqueles que se destacam pelo bom caráter, humanismo, espírito público, intelecto cultivado, pela produtividade e pela aversão às práticas corruptas.

A elite econômica exerce poderosa influência sobre o governo. Essa elite compõe-se de banqueiros, empreiteiros, usineiros, fazendeiros e empresários de outros setores (seguros, comunicações, educação, comércio, indústria). Além de grupo de pressão, essa elite mantém agentes no governo, entre os quais podem se contar deputados, senadores, juízes, ministros, presidentes do Banco Central e de agências reguladoras.

A elite social tende a apoiar o governo. Compõe-se de pessoas que se destacam por suas virtudes morais e méritos intelectuais e profissionais na sociedade, tais como: sacerdotes, cientistas, artistas, advogados, médicos, engenheiros, arquitetos, inventores, professores, escritores, jornalistas, esportistas. Quando discorda do governo, essa elite pressiona para corrigir o rumo, defende a renovação no comando e, se for preciso, pleiteia o afastamento imediato dos governantes pelas vias constitucionais. Cor, raça, sexo, origem, idade e patrimônio não servem de indicadores a essa elite que se assemelha a uma egrégora, ente abstrato resultante das afinidades (aspirações, sentimentos, pensamentos, comportamento) entre pessoas que às vezes, nem se conhecem, mas podem se reunir em eventos públicos e se manifestar nos meios de comunicação. Por seu modo de ser e de estar no mundo, essas pessoas fazem parte da elite social, mesmo sem saber ou sem querer.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Quadrilha

Indalécio Garanhuns, Alceu Cubano, Genuíno Cajueiro, Silvério Rural, Conúbio Menzoloto, todos brasileiros, salteadores, residentes nos endereços A, B, C, D, E, portadores das cédulas de identidade 171, 288, 312, 317 e 333, expedidas pelo IFP, inscritos no CPF/MF sob nº 1,2,3,4,5, respectivamente, concertam nesta data e local a fundação de uma quadrilha de ladrões, com sede em Brasília, setor X, quadra Y, que funcionará por tempo indeterminado. Para garantia de todos, o líder integrará o quadro dos sócios ocultos e o seu nome só poderá ser revelado após o ano 2050. Se algum sócio for entrevistado ou chamado a prestar depoimento judicial ou extrajudicial, negará qualquer prática ilícita. Na remota hipótese de ficar obrigada a prestar contas à Justiça, a quadrilha será representada pelo sócio Alceu Cubano. Todos os sócios, aparentes e ocultos, gozam dos mesmos direitos. A quadrilha ora organizada tem por objetivo lesar cofres públicos, fraudar licitações públicas, obter junto a empresas públicas e privadas numerário para apoiar candidaturas e reforçar o caixa de partidos políticos, colocar agentes em postos estratégicos da administração pública, comprar votos de parlamentares e decisões de magistrados, alugar opinião de profissionais da imprensa, além de outros objetivos compatíveis com a sua natureza. As vantagens obtidas serão distribuídas entre os sócios na forma do costume. Os sócios indicarão as pessoas que receberão os recursos e os canais a serem percorridos no país e no exterior. Os recursos não serão contabilizados, os pagamentos serão em dinheiro, o recebedor será identificado mediante senha e não haverá recibos. Em caso de conflito entre os sócios, recorrer-se-á à arbitragem de um tribunal de ética e decoro. Fica proibido o uso de armas para resolver controvérsia entre os sócios. Na hipótese de envenenamento, será escolhido o produto que cause menos sofrimento ao paciente. Será terceirizado o serviço para provocar acidente, invadir privacidade e similares. O presente contrato produzirá efeito após registro no cartório das pessoas jurídicas. Fica eleito o foro de Brasília para dirimir desavenças oriundas deste contrato. Brasília, 7 de setembro de 2002.

Aí está, em linhas gerais, o escorço de um contrato que serviria de prova da existência de quadrilha (materialidade do delito). No caso “mensalão”, se não aparecer um contrato como esse, os acusados serão absolvidos. Certo? Errado. A experiência ensina que os bandidos não se organizam em quadrilha mediante contrato escrito. Prevalecem o trato verbal, o consenso tácito e o vínculo fiduciário. O propósito de cometer crimes está implícito na decisão de se associar e explícito no modus operandi. Para configurar quadrilha não há, sequer, exigência de que sejam praticados crimes, efetivamente. No inquérito parlamentar do caso “mensalão”, tanto o vínculo entre os agentes como o modus operandi vieram demonstrados por depoimentos, documentos, gravações e exames periciais que convenceram a opinião pública. Emissoras de TV, jornais e revistas contribuíram para a transparência dos trabalhos da CPI. O STF acertou ao receber a petição inicial, até porque estava em julgamento o aspecto formal e substancial da denúncia (peça técnica) e não a responsabilidade dos denunciados, o que só ocorrerá na última etapa do processo.

Entre os vários significados da palavra quadrilha estão o de coreografia própria das festas juninas, o de turma de gente e o de bando de salteadores. Estes dois últimos significados interessam ao direito penal. A lei considera crime associarem-se 4 ou mais pessoas (turma de gente), em quadrilha ou bando, para cometer crimes. Cuida-se de agregado ilegal de pessoas que não se confunde com a associação de direito disciplinada na lei civil. A organização pode ser rudimentar, almejar estabilidade e ter uma chefia que planeja, comanda e distribui tarefas. Inexiste vínculo jurídico que obrigue o bando a permanecer unido. Freqüentemente, há dissidência motivada pela ambição, pela indisciplina, pelo descontentamento, pela disputa de comando entre outras causas. Pode existir sociedade de direito que oculta fins criminosos mediante estatutos legalmente registrados dos quais constam objetivos lícitos, tais como: compra e venda de bens (combustíveis, automóveis, imóveis) operações no mercado de capitais, serviços de consultoria, de publicidade e assim por diante.