quinta-feira, 30 de abril de 2015

POESIA



Verde que eu te quero verde / Verde vento. Verdes ramas / O barco por sobre o mar / e o cavalo na montanha / Com a sombra na cintura / ela sonha em sua varanda / verde carne, tranças verdes / com os olhos de fio prata / Verde que eu te quero verde / Por sob a lua cigana / as coisas a estão olhando / sem ela poder olhá-las.
Verde que eu te quero verde / Grandes estrêlas de escarcha / vêm com o peixe de sombra / que abre o caminho da alva / A figueira arranha o vento / com a lixa de suas ramas / e o monte, gato gordunho / eriça suas pitas ágrias / Mas quem virá e por onde? / Ela está em sua varanda / verde carne, tranças verdes / sonhando na onda amarga.

- Compadre, quero trocar / meu cavalo por sua casa / meus arreios pelo espelho / minha faca por sua manta / Compadre, venho sangrando / já desde os portos de Cabra.
- Se eu pudera, meu amigo / este trato se fechava / Mas eu já não sou eu mesmo / nem esta é mais minha casa.
- Compadre, quero morrer / decentemente na cama / de punhal, se pode ser / com os lençóis de cambraia / Vês a ferida que tenho / desde o peito até a garganta?
- Trezentas rosas morenas / leva tua camisa branca / Teu sangue transuda e cheira / ao redor de tua faixa / Mas eu já não sou eu mesmo / nem esta é mais minha casa.
- Deixai-me subir ao menos / até às altas varandas! / deixai-me subir, deixai-me / até às verdes varandas! / Corrimãos verdes da lua / por onde retumba a água.

Já sobem os dois compadres / até às altas varandas/ Deixando um rastro de sangue / Deixando um rastro de lágrimas / Tremulavam nos telhados / faróis de folhas de lata / Mil pandeiros de cristal / feriam a madrugada.
Verde que eu te quero verde / Verde vento. Verdes ramas / Os dois compadres subiram / O longo vento deixava / na boca um raro sabor / de fel, de menta e alfavaca.

- Compadre! Diz onde está / onde está tua filha amarga?
- Quantas vezes te esperou! / Quantas vezes te esperara / cara fresca, tranças negras / aqui na verde varanda!

Sobre o rosto da cisterna / balançava-se a cigana / Verde carne, tranças verdes / com olhos de fria prata / Um carambano de lua / a ampara sobre a água / A noite tornou-se íntima / qual uma pequena praça / bêbados guardas-civis / brutais, à porta chamavam.
Verde que eu te quero verde / Verde vento. Verdes ramas / O barco por sobre o mar / e o cavalo na montanha.

(“Romance Sonâmbulo”. Frederico GARCIA LORCA. Traduzido por Leônidas e Vicente Sobrinho Porto).

segunda-feira, 27 de abril de 2015

LAVA-JATO


A polícia federal adquiriu o hábito de batizar algumas das suas operações e de atuar de forma espetacular. O nome de “lava-jato” dado à operação de Curitiba-PR, lembra os letreiros dos postos curitibanos de abastecimento, lubrificação e lavagem de veículos. A conotação de limpeza combina com o propósito dessa operação policial: apurar materialidade e autoria de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro praticados na empresa estatal Petrobrás.
Inquestionável a importância da polícia para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio público e privado. Lado positivo das operações batizadas: trouxeram para a superfície e claridade o que ocorria nos escuros subterrâneos da vida nacional. Lado negativo: desvio ético na execução das tarefas. Na república velha, a polícia servia aos interesses dos coronéis e chefes políticos. Nos períodos autocráticos, a polícia servia ao regime ditatorial e seus próceres. Na república nova, a polícia participa do jogo político servindo às lideranças dos partidos mais influentes e aos donos do capital. As ações policiais batizadas exibiram o vetusto costume que ainda sobrevive: uso privado do aparelho de segurança pública. A população conhece, por experiência e de modo difuso, esse fato social: algumas pessoas tratadas com rigor pela polícia enquanto outras são tratadas de modo condescendente.
No ministério público, verifica-se o mesmo fenômeno. Sob o prisma institucional, indiscutível a relevância do ministério público para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Promotor da ação penal pública, o ministério público agora também o é da ação civil pública em defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. O desvio ocorre na atuação dos seus membros nos casos concretos. A experiência forense mostra como as preferências pessoais influem na atividade dos membros da corporação. Daí, o legislador constituinte haver outorgado legitimidade ao cidadão para propor ação privada nos crimes de ação pública na hipótese de omissão do ministério público (CR 5º, LIX). A operação “lava-jato” mostrou a postura desabrida dos promotores numa região onde os tucanos imperam e nutrem ódio mortal à minoria petista. O alarde da operação mostra açodamento, cor partidária e prisões arbitrárias. O promotor ocupa o pólo ativo da relação processual penal. Deve, pois, ser tratado como parte no mesmo nível do defensor que ocupa o pólo passivo. Essa igualdade é da essência da vida democrática e do devido processo jurídico. A posição do promotor como parte não significa que tenha de ser tendencioso. Por isto mesmo, na esfera penal, o promotor, diante do material probatório de que dispõe, tanto pode pedir a condenação como a absolvição do réu.
No processo judicial, não cabe ao juiz prestar auxílio às partes. Embora cônscio da importância do combate ao crime, o juiz tem o dever de: (1) permanecer eqüidistante das partes como garantia da justa aplicação da lei; (2) examinar os requerimentos do delegado, do promotor e do defensor com a mesma disposição de ânimo; (3) decidir com coragem e serenidade, sem subterfúgios e sem misturar a judicatura com o credo ideológico ou religioso.
A Constituição da República (CR), a lei, a jurisprudência, os princípios gerais do direito, os fatos que acontecem na sociedade ordinariamente, a experiência de vida, são fatores que entram na ponderação judicial. O deferimento ou indeferimento dos requerimentos pelo juiz deve atender ao interesse, coletivo ou individual, preponderante na ocasião, sempre em consonância com a moral e o direito. Há juízes que se deixam seduzir pelos holofotes, por opiniões publicadas na imprensa, envolvem-se nos procedimentos persecutórios em conluio com a polícia e o ministério público. Em Foz do Iguaçu, na década de 1970, havia um juiz substituto que participava de diligência policial para efetuar prisão. Na capital do Rio de Janeiro, na década de 1980, havia uma juíza de vara criminal com perfil inquisitório. Juiz do Supremo Tribunal Federal (STF), no caso apelidado de “mensalão”, mais parecia delegado de polícia e promotor, ansioso por desempenhar o papel de herói, envaidecido com os encômios oriundos da imprensa e dos opositores ao governo federal. O juiz que preside a operação “lava-jato” parece enquadrar-se nesse modelo. Certamente, haverá outros magistrados que também gostam de atuar em parceria com a polícia e com o ministério público, afastando-se do dever de imparcialidade próprio da função judicante. A censurável conduta agrava-se quando motivada por interesse político-partidário, em frontal desafio à vedação constitucional (CR 95, p.ú., III).
A instância superior poderá devolver a liberdade às pessoas presas. A prisão preventiva e o sigilo processual não devem se eternizar sem ferir direitos assegurados aos cidadãos pela CR. Neste sentido, a jurisprudência do STF sintoniza com as seguintes normas constitucionais: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens, sem o devido processo legal; ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança; a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária.
A prisão figura entre as espécies de pena previstas na legislação brasileira. A prisão preventiva é uma execução penal antecipada permitida por lei para garantia das ordens pública e econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Para decretá-la são necessários: (1) juiz natural; (2) prova da existência do crime. (3) indício suficiente da autoria; (4) situação de fato a exigir a privação da liberdade. Apesar da previsão legal, esse tipo de prisão conserva seu caráter de excepcional violência ao privar de liberdade alguém cuja culpa ainda não foi reconhecida por sentença penal condenatória transitada em julgado. O juiz deve refrear a tentação de prender pessoas só para: (1) dessedentar o público ávido por vingança e punição; (2) satisfazer a imprensa ávida por notícias sensacionalistas; (3) atender aos caprichos de facções políticas ou do poder econômico; (4) aparecer como paladino do direito e da justiça.         
Na administração pública, a regra é a publicidade e a exceção é o sigilo, consoante o sistema republicano democrático adotado pelo legislador constituinte. A transparência dos negócios públicos e a prestação de contas são necessárias ao controle pela sociedade. As sessões e audiências dos órgãos judiciários devem ser públicas. O sigilo será permitido para proteger o direito à intimidade do interessado, desde que não prejudique o interesse público à informação (CR 93, IX). A publicidade e a impessoalidade são princípios obrigatórios para a administração pública (o que inclui a atividade policial). A publicidade dos atos, programas, obras, serviços, campanhas dos órgãos públicos, deverá revestir o caráter educativo, ou informativo, ou de orientação social, sendo vedados símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos (CR 37 caput + §1º).
Quando o sigilo for imprescindível à segurança da sociedade ou do Estado, os órgãos públicos poderão negar acesso às informações. Quanto aos atos processuais, a lei poderá restringir a respectiva publicidade se assim o exigir a defesa da intimidade ou o interesse social (CR 5º, XXXIII + LX). No inquérito, a autoridade deve assegurar o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade (CPP 20). Esse dever não servirá de pretexto para abuso, nem para frustrar o exercício do direito à informação (CR 5º, XIV + 220). Se, da publicidade do ato processual, puder resultar escândalo, grave inconveniente, ou perigo de perturbação da ordem, o juiz poderá decretar o sigilo (portas fechadas, CPP 792, §1º). A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, celebrada em São José da Costa Rica, em 22/11/1969, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo decreto 678/1992, dispõe: O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça (art.8º, 5).
Ao decretar prisão preventiva ou sigilo, a autoridade deve explicar em que consiste a ameaça aos bens protegidos, descrever quais os fatos que caracterizam o interesse a ser protegido, arrolar os elementos da intimidade em jogo, indicar a situação real de perigo para a ordem pública, e assim por diante. Repetir, simplesmente, as palavras do texto constitucional ou legal, sem os devidos esclarecimentos e sem expor a real necessidade das medidas restritivas à liberdade de locomoção e ao direito à informação, equivale a decidir de forma arbitrária e ilegal.

sábado, 25 de abril de 2015

PRISMAS II



Na civilização ocidental, a liberdade humana ganhou notável amplitude após a revolução francesa. Em época alguma e em lugar algum houve liberdade total ou, em outras palavras, jamais houve completa ausência de limites, freios e grilhões. A liberdade humana sempre foi parcial, limitada por leis da natureza e por padrões culturais (costumes, convenções, normas éticas, jurídicas e religiosas). As determinações sociais são geradas pela interação entre os humanos. Tais determinações com vestes normativas limitam a conduta humana e condicionam a vontade e o pensamento. Príncipes da civilização oriental (faraós, reis) desfrutaram de elevado grau de liberdade (poder real) enquanto os súditos desfrutavam-na em grau mínimo. Perante a realeza, o súdito tinha deveres e não direitos. O mesmo aconteceu na civilização ocidental até a Idade Média inclusive. A liberdade dos reis europeus estava limitada inicialmente pelo poder da igreja católica (poder secular submetido ao poder clerical). Os monarcas reagiram, conquistaram maior grau de liberdade e exerceram o poder de modo independente. Na Idade Moderna, os súditos da Europa continental e da América anglo-saxônica reagem e conquistam, para si, maior grau de liberdade. Os governantes foram submetidos a regras constitucionais e legais votadas pelos representantes dos governados. A sede do poder soberano transferiu-se do governante para o governado. No exercício da sua liberdade, o povo, através de representantes eleitos, passou a ditar as regras de organização do Estado também na América portuguesa e espanhola. No século XX, houve retrocesso em repúblicas européias e americanas. Governantes ampliaram as suas liberdades (poder político) instaurando regimes autocráticos, enquanto os governados tiveram as suas liberdades reduzidas.
Nos Estados sob governo religioso, o poder secular se confunde com o poder clerical em detrimento da liberdade individual. No Estado muçulmano, por exemplo, impera o princípio religioso denominado Islã, que significa servidão, conceito incompatível com o de liberdade. O Islã informa as leis, condiciona a ação do legislador e do governo, exige obediência absoluta às escrituras sagradas. Tanto na Ásia morena como na Ásia amarela, independente da crença religiosa, o grau de liberdade do governante (poder estatal) é bem maior do que o grau de liberdade do governado (poder social). A cultura oriental inclui a tradicional reverência aos governantes. O povo aceita a supremacia da autoridade em relação à liberdade. Isto facilita a proliferação de regimes autocráticos (monarquias, oligarquias, ditaduras).
Sob o prisma filosófico, houve grande progresso da civilização antiga até a clássica civilização grega. A partir da Idade Média, esse progresso diminuiu enquanto o ritmo do conhecimento científico se acelerou na Europa. No período medieval europeu, destacou-se o pensamento de Santo Agostinho e de Tomás de Aquino, adaptação da filosofia grega à doutrina católica. A Idade Moderna foi de veneração à ciência. A pesquisa científica trouxe certezas e incertezas. Isto se refletiu na filosofia, ensejando vários núcleos de reflexão (estrutura lógica, fato social, existência humana, utilidade coletiva) distribuindo-se em correntes do pensamento tais como: logicismo, psicologismo, sociologismo, existencialismo, pragmatismo. 
Sob o prisma da moral, desde a Idade Antiga até a Idade Contemporânea, não se afigura apropriado falar em progresso, tendo em vista a volatilidade dos valores éticos na experiência dos povos. Ao direito, quando entendido como o mínimo ético exigível compulsoriamente, é possível aplicar a idéia de evolução progressista no curso da história. Verdade, justiça, honestidade, bondade, beleza, são idéias e sentimentos que povoam a mente e o coração dos homens, porém, a vivência desses valores foi sempre tortuosa. O modo de hierarquizar os valores varia conforme a época e as vicissitudes de cada povo. Na civilização ocidental, a utilidade assumiu a supremacia na escala dos valores a partir do século XX, inclusive. O útil prevaleceu sobre o veraz, o justo, o honesto, o bom e o belo. Verdade, justiça, honestidade, bondade e beleza têm o seu referencial na utilidade. O econômico prevalece sobre o político e o social. Os princípios morais ganham extrema flexibilidade nos países capitalistas e socialistas.
Sob o prisma espiritual, a humanidade está na Idade da Pedra Lascada. O espírito da maioria dos seres humanos ainda vive nas cavernas, sob o domínio do medo, da ignorância e da superstição. A maioria da população mundial ainda acredita: (1) em escrituras sagradas ditadas por um deus, ou por deuses, ou esculpidas na pedra por alguma divindade; (2) em livros esotéricos de misterioso conteúdo, repletos de símbolos ambivalentes, escritos por humanos supostamente sábios ou iluminados; (3) em seres diabólicos sobrenaturais; (4) em seres diáfanos {fantasmas, duendes, anjos}; (5) na divindade de seres humanos. Essa esmagadora maioria renuncia ao exame crítico e racional desses textos e discursos enganosos e fraudulentos produzidos por espertalhões e visionários, reproduzidos de geração em geração por exploradores da fraqueza humana (sacerdotes, pastores, missionários, rabinos, gurus, professores).
Orientada por líderes religiosos que sabem como explora-la, essa maioria separa e razão. A bipolaridade da fé (positiva e negativa) passa despercebida. A fé tem uma função construtiva: (1) ao ativar mecanismos psicossomáticos restauradores da saúde; (2) ao abrir caminho para a iluminação espiritual e a paz interior. A fé na medicina científica, na terapia natural, na cura metafísica, no mundo espiritual, no poder divino, quando intensa e sincera, aciona os citados mecanismos. A fé, quando cega, mergulha o indivíduo na crendice e o faz vítima da exploração dos mais espertos. Diante das trevas da fé cega e da luz da razão, a maioria da população mundial tem escolhido as trevas. Monoteístas e politeístas se digladiam. Dentro dos templos, os crentes comportam-se como anjos fiéis. Fora dos templos, agem como demônios nas relações sociais, econômicas e políticas, internas e externas, na encarniçada luta por riqueza e domínio.
A consciência ecológica forma um enclave nessa massa bruta e abre janela para o sol da alma cósmica. Essa abertura foi o primeiro passo eficaz para a evolução espiritual coletiva e progressiva da humanidade. A tríade da alma cósmica (vida + luz + amor) começa a ser vivenciada em algum grau de compreensão no seio dos povos. Na dimensão espiritual, o ser humano principia a sair da caverna e da idade da pedra ao zelar pela sadia qualidade de vida e por um meio ambiente ecologicamente equilibrado em nível planetário. Isto congrega os seres humanos em torno de uma causa comum com nuances de autêntico amor fraterno que pode direcionar o espírito guerreiro exclusivamente às competições esportivas.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

PRISMAS



A Terra, o homem, a sociedade, o Estado, podem ser vistos sob prismas distintos, como o geográfico, demográfico, racial, histórico, cultural, econômico, social, político. As análises e estatísticas feitas por diferentes pessoas e instituições nem sempre são concordantes porque, entre outros fatores, dependem da idoneidade e consistência dos dados, da perspectiva em que se coloca o analista, da acuidade e do propósito do observador, dos critérios utilizados na pesquisa, das preferências, formação cultural e honestidade dos operadores.
Do ponto de vista quantitativo, houve crescimento da população mundial, apesar das guerras, das epidemias, das doenças incuráveis, dos abortos e da mortalidade infantil. Essa população está distribuída entre mais de uma centena de países em continentes e ilhas. Em alguns países, aumentou a duração da vida das pessoas. Na primeira década do século XXI, sete bilhões de pessoas habitavam o planeta, reunidas em diversas nações e etnias. Apesar da padronização facilitada pelos meios de comunicação, ainda há diferenças culturais entre os povos. Do ponto de vista qualitativo, melhorou o padrão de vida em países capitalistas e socialistas.  
O Brasil é povoado por duzentos milhões de indivíduos de diversas etnias, com um idioma nacional prevalecente sobre as várias línguas dos aborígenes e dos imigrantes e seus descendentes (africanos, europeus, asiáticos, americanos), cada grupo com suas tradições culturais. População urbana, rural e ribeirinha composta de: (1) índios, negros, cafuzos, mulatos, pardos, amarelos, morenos e brancos; (2) analfabetos e alfabetizados de escolaridade primária, secundária, técnica e universitária; (3) solteiros, casados, amigados, divorciados, viúvos, heterossexuais e homossexuais; (4) cristãos, judeus, muçulmanos, espíritas, budistas, deístas e ateístas; (5) civis e militares; (6) autocratas, aristocratas, democratas, radicais e moderados; (7) liberais, fascistas, nazistas, anarquistas, socialistas, comunistas e furta-cores; (8) vagabundos, criminosos, desempregados, servidores públicos, trabalhadores rurais e urbanos, empreendedores e profissionais liberais; (9) miseráveis, pobres, remediados, ricos, milionários; (10) gente saudável, doente, alegre, triste, bonita, feia, cordial, hostil, bem educada, mal educada, honesta, desonesta, inocente e pecadora.
Na Idade Moderna, o mundo ocidental conheceu considerável progresso na esfera do direito. Das relações entre o indivíduo e o Estado, ora pacíficas, ora conflitantes, nasceram direitos fundados na liberdade, na igualdade e na fraternidade. Foram reconhecidos direitos naturais à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão, que limitam o poder dos governantes. Esses direitos naturais são considerados, lógica e historicamente, anteriores ao ordenamento posto pelo Estado. No evolver histórico, de modo objetivo, direitos sociais e econômicos foram gerados com estribo na igualdade e na fraternidade, protegendo o proletariado e as minorias. Esses direitos sociais e econômicos decorreram de um prisma coletivo sob o qual foram vistos os interesses em jogo na Europa e na América, a partir do século XIX. Esses direitos visam a atender de modo concreto as necessidades reais das pessoas: (1) exigindo do Estado, prestações positivas {intervenção na economia, monopólio estatal, função social da propriedade, previdência social, assistência social}; (2) incluindo a participação dos trabalhadores no lucro da empresa; (3) concedendo garantias aos trabalhadores em face do poder econômico dos detentores do capital; (4) outorgando imunidades aos legisladores, administradores, juízes, professores, para preservar a incolumidade do indivíduo e da sociedade.
Na Idade Contemporânea, surgem direitos cosmopolitas, coletivos, difusos, como: promoção da paz universal, segurança contra armamentos de extermínio em massa, controle das experiências genéticas, defesa da qualidade de vida em níveis local, regional e universal, desenvolvimento sustentável, circulação de dados pela rede de computadores, proteção à privacidade das pessoas, proteção ao consumidor. Esses direitos decorrem da repercussão social do avanço científico e tecnológico, do maior grau de complexidade das relações de produção, circulação e consumo de bens, da valorização da vida e da expansão da consciência ecológica.
O progresso da humanidade em ciência e tecnologia foi espetacular. O ritmo desse progresso foi vertiginoso a partir do século XIX. Os benefícios materiais e intelectuais trazidos por esse progresso não são desfrutados igualmente pelos diferentes povos do planeta. Nota-se alguma solidariedade para amenizar a ausência de efetiva, permanente e fraterna cooperação e a disparidade na troca de conhecimentos. A justiça social consta do programa constitucional de algumas nações. No Brasil, o legislador constituinte deferiu ao governo do Estado a incumbência de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas. A eficácia dos direitos sociais declarados na Constituição (educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados) depara-se com óbices postos pela realidade social, econômica e política do país.  
Do ponto de vista econômico, grande foi o desenvolvimento, desde a Idade Antiga até a Idade Contemporânea. O ritmo desse desenvolvimento acentuou-se com as revoluções comercial e industrial ocorridas na Europa. Houve sucessão de sistemas econômicos: escravocrata, feudal, capitalista e socialista. Essa linearidade pode gerar equívocos, pois, no plano dos fatos, convivem sistemas diferentes na mesma época. Acontece, também, na mesma época e no mesmo país, o espírito de um sistema influir em outro sistema vigente. As exigências concretas da vida em sociedade afastam as posições extremadas e o radicalismo ideológico, como se viu na segunda metade do século XX, na China e na ex-União Soviética. Utopia à parte, a exploração do homem pelo homem ocorre em qualquer sistema econômico. A distribuição da riqueza é desigual, quer entre os povos, quer no interior de cada Estado. O auxílio entre os Estados está condicionado à estratégia militar e econômica e, às vezes, depende da adesão a um modelo político e cultural.
No Brasil, as raízes coloniais impediram o desenvolvimento econômico por largo tempo. A situação de dependência era acentuada mesmo na fase republicana. O Brasil era um país agrícola fornecedor de matéria-prima. Isto começou a mudar após a revolução de 1930. O país aumentou a sua capacidade de produzir energia, industrializou-se, utiliza tecnologia de ponta e hoje é a sétima economia do mundo. Atualmente, o governo brasileiro enfrenta a ressaca da crise econômica internacional de 2008 e busca soluções racionais, apesar das dificuldades adicionais colocadas pela estupidez de uma oposição política encardida. Em momento de crise setorial aguda, qualquer país necessita internamente de união construtiva e solidária, sem politicagem. 

sexta-feira, 17 de abril de 2015

IMPEACHMENT III



10 de abril de 1950. Publicada a lei 1.079 que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo. Essa lei permite o combate à corrupção que acontece dentro e fora do Judiciário. Entre os crimes dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) definidos nesta lei, estão as condutas: (i) patentemente insidiosas no cumprimento dos deveres do cargo; (ii) incompatíveis com a honra, a dignidade e o decoro das suas funções. Qualquer cidadão brasileiro pode denunciar perante o Senado Federal os ministros do STF por crime de responsabilidade. Servem de prova: documentos, certidão fornecida pela secretaria do tribunal, gravações lícitas, depoimentos de operadores do direito e de pessoas comuns. Ainda que os atos criminosos sejam públicos e notórios, convém produzir a prova, apesar de a processualística civil dispensar tal produção (CPC 334). O processo de impeachment tem como fonte subsidiária a processualística penal e o regimento interno do Senado. Se houver condenação pelo voto de 2/3 dos senadores presentes à sessão de julgamento, o ministro denunciado perderá o cargo.

14 de março de 1979. Publicada a lei complementar que dispõe sobre a organização da magistratura nacional (LC 35). Segundo esta lei, são deveres dos magistrados: (i) cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício; (ii) não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou despachar; (iii) comparecer pontualmente à hora de iniciar-se o expediente ou a sessão e não se ausentar injustificadamente antes do seu término; (iv) manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.
Esses deveres são transgredidos com freqüência. No que tange ao STF, os rotineiros atrasos no início e reinício das sessões geram redução no tempo de prestação do serviço jurisdicional. Previsto para as 14,00 horas, no regimento interno, o início das sessões ocorre sempre com 30 minutos, ou mais, de atraso; na ata lida em plenário, todavia, consta que a sessão teve início às 14,00 horas pontualmente. O regimento prevê intervalo de 30 minutos. Iniciada a sessão, os ministros não escondem a ansiedade para que chegue o momento do intervalo. O reinício da sessão ocorre além dos 30 minutos; às vezes, demora o dobro. Cerca de uma hora depois do reinício, a sessão é encerrada.
A função primordial dos tribunais judiciários é prestar tutela jurisdicional; existem para, à luz do direito, julgar os casos submetidos à sua apreciação. Tudo o mais é secundário. No cotidiano, porém, essa função primordial tem sido negligenciada. Inverte-se a prioridade transferindo-a para assuntos estranhos à judicatura (administrativos, protocolares, particulares) tratados dentro do horário previsto para as sessões de julgamento. As freqüentes ausências de ministros às sessões acarretam: (i) adiamento dos julgamentos por falta de quorum; (ii) procrastinação da tutela jurisdicional; (iii) prolongamento da tensão gerada pelo litígio; (iv) perda de viagens à Brasília por advogados e interessados, sem ressarcimento das despesas.
O STF passa a imagem de uma sinecura de barnabés de toga. Urge a sua extinção e substituição por quatro tribunais constitucionais, um em cada ponto cardeal, soberanos em sua jurisdição.

05 de outubro de 1988. Promulgada a nova Constituição da República que outorga competência ao Senado Federal para processar e julgar os ministros do STF nos crimes de responsabilidade e destituí-los do cargo na hipótese de condenação (artigo 52, II + parágrafo único).

02 de abril de 2014. O Ministro Gilmar Mendes, do STF, pede vista dos autos do processo da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 4650). Tal demanda tem por objeto o financiamento de campanha eleitoral por pessoas jurídicas. Cuida-se de matéria de alta relevância para a limpeza ética na seara política. O peso do voto deve ser igual entre os cidadãos. O peso do dinheiro abala essa igualdade democrática. Os partidos não se sustentam somente no voto, mas, também, no estatuto ficcional, na capacidade de arrecadação de fundos e na propaganda cara, sofisticada e enganosa.   

02 de abril de 2015. A vista concedida a Gilmar completa um ano. O ministro retém os autos do processo da mencionada ação judicial embora esgotado o prazo estipulado no artigo 134 do Regimento Interno do STF: “Se, algum dos Ministros, pedir vista dos autos, deverá apresentá-los, para prosseguimento da votação, até a segunda sessão ordinária subseqüente”. O abuso de direito praticado pelo ministro é evidente. A demora na devolução dos autos é proposital, excessiva e injustificada. O julgamento da ação teve início e deve terminar sem procrastinação, conforme exige o princípio do devido processo legal. Daí, o dever do ministro de devolver os autos dentro do prazo regimental. A conduta abusiva do ministro tipifica violação do princípio da razoável duração do processo e de celeridade nos trâmites processuais (CR 5º, LXXVIII). 
A referida ação judicial tem seus trâmites há quatro anos no mesmo tribunal, onde houve audiências públicas com a oitiva de pessoas representativas da sociedade brasileira. A extensa discussão pública sobre a matéria e os votos de mais da metade dos membros do tribunal significam que os juízes estavam preparados para julgar. Portanto, a justificativa de que o retentor está estudando o processo não convence. A capacidade intelectual do ministro moroso não deve ser tão inferior à dos ministros que já votaram. O ocupante do cargo de ministro da corte suprema deve preencher os requisitos de notável saber jurídico e reputação ilibada (CR 101). Ao se mostrar deficiente intelectual ou de reputação duvidosa, o ministro deve desocupar o cargo, voluntária ou compulsoriamente. O ministro Gilmar: (i) preenche o requisito do saber jurídico; (ii) parece estar na posse plena das faculdades mentais; (iii) está no exercício das suas funções. Logo, a excessiva demora não se justifica. A desculpa do acúmulo de processos também é inaceitável por dois motivos: (i) o acúmulo é comum a todos os ministros; (ii) a ação judicial já está em julgamento e, por isso mesmo, tem prioridade. O ministro retarda, mas não parece retardado mental. Talvez, seja caso do juiz tardinheiro de que falava Ruy Barbosa.
A reputação de Gilmar deixou de ser ilibada principalmente: (i) depois do caso Dantas, em que exibiu desembaraço fulminante e rapidez extraordinária; (ii) no entrevero com o ministro Joaquim Barbosa; (iii) com a demora abusiva para devolver os autos do processo da ADI 4650. A excessiva velocidade num caso de maior complexidade e a excessiva lerdeza em outro caso de menor complexidade é sintoma de proposital desequilíbrio incompatível com os princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência (CR 37). A censurável conduta do ministro autoriza: (1) qualquer cidadão, inclusive parlamentar, a oferecer denúncia perante o Senado Federal para apurar a responsabilidade do ministro (impeachment); (2) as partes, a pleitearem a busca e apreensão dos autos do processo e a imediata continuação do julgamento.

10 de abril de 2015. A lei 1.079 completa 65 anos de vigência e de reduzida aplicação, apesar dos inúmeros episódios que justificariam a sua maior incidência. Nos períodos de normalidade democrática no Brasil, os ocupantes dos altos escalões da república se mantiveram acima da lei, pelo menos, até a primeira década do século XXI. Membros de tribunais judiciários raramente são punidos por suas faltas.

12 de abril de 2015. Manifestação de 0,2% da população paulista a favor do impeachment da Presidente da República, da extinção do PT e contra a corrupção. Evidenciou-se a irracionalidade do movimento. Falta amparo, moral e jurídico, para a instauração do processo, como exposto no artigo anterior sobre o tema. Ainda que fosse possível o afastamento da Presidente, a vaga seria preenchida pelo Vice-Presidente e não pelo candidato derrotado nas eleições. Do ponto de vista jurídico, a extinção de partido só é possível nos casos previstos em lei. Do ponto de vista moral, a merecida extinção não seria apenas do PT, mas, também, do PSDB e dos partidos comunheiros na patifaria. No que tange à corrupção, o combate já é realidade. Como dito alhures, foi preciso mulher na presidência para que essa luta fosse empreendida eficazmente no Brasil.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

POSFACIO


Chegamos ao fim da série “FILOSOFIA”, jornada iniciada em outubro de 2013 pelos caminhos do saber histórico e filosófico. A filosofia oriental não foi incluída por seu caráter peculiar distinto da mente ocidental. A civilização ocidental foi moldada pela cultura clássica grega e romana e pelo cristianismo. Numa perspectiva histórica e temporal, pode-se considerar recente a influência do islamismo, do budismo e da mística hindu na cultura ocidental. O mesmo se diga das instituições modernas ativas no campo místico e filosófico como a Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis – Amorc, respeitável organização internacional de caráter templário e fraternal.   

Artigos sobre matérias distintas, como política nacional, direito e esporte, foram intercalados em certos momentos da série, não só para quebrar a monotonia natural ao tipo de exposição como, também, para atender ao senso de oportunidade das questões neles abordadas.

Como regra, evitei comentar a matéria histórica e filosófica exposta pelos autores e respeitei as suas teorias, ainda quando delas discordasse. Observações ligadas ao texto foram postas entre parêntesis. Como exceção, alguns breves comentários constam entre chaves e outros entre colchetes, quando os entendi oportunos e convenientes. Destaquei alguns comentários em parágrafos separados, sempre zelando pela sintonia com o conteúdo do texto e pela brevidade. Em trabalho de divulgação como este, o expositor não deve empanar o pensamento alheio com o seu próprio pensamento e nem colorir a obra alheia com as tintas do seu gosto.    

Inicialmente, esta série destinava-se a complementar a formação cultural dos meus filhos Evandro, advogado militante e estagiário do curso de mestrado da Universidade Federal Fluminense, e Rafael, com mestrado em publicidade na Espanha e instrutor na escola Paraquedismo Boituva, na cidade paulista que leva esse mesmo nome.

Pensando nas demais pessoas que também pudessem almejar esse complemento cultural, resolvi publicar a série na rede de computadores, embora sabendo que o público nessa área do conhecimento é diminuto. Na América, o interesse dominante é por música, esporte e política, tudo vinculado ao dinheiro e ao desempenho da economia. Tendo em mira o povo dos EUA, Tocqueville observou que os americanos não curtem especulação filosófica e não têm propensão à metafísica. A observação aplica-se também ao povo brasileiro. Na Europa, há mais interesse por Filosofia, História e Ecologia, sem descuido das outras expressões do mundo da cultura. 


segunda-feira, 13 de abril de 2015

FILOSOFIA XV - 41



EUROPA (1900 a 2014). Final.

Hannah Arendt preocupa-se com as raízes e com o significado da existência e da política na sociedade moderna No livro inacabado “A Vida da Mente”, ela trata do pensar, do querer e do julgar, à semelhança das três críticas formuladas por Kant (razão pura, razão prática e juízo). No livro “A Condição Humana”, publicado em 1958, Hannah propõe que se reconsidere a condição humana tendo em vista os horrores da segunda guerra mundial. O livro discute a ação e exclui do foco do debate considerações sobre o pensar humano. O seu tema central é “o que estamos fazendo” (homo faber). Analisa a natureza, o mecanismo, a complexidade e o significado da ação. A categoria central do pensar político é a natalidade e não a mortalidade como quer o pensamento metafísico e religioso. Todos os aspectos da condição humana relacionam-se com a política. Com palavras e atos nos inserimos no mundo humano como um segundo nascimento quando assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico. A Vita Activa inclui três atividades fundamentais: labor, trabalho e ação. Labor corresponde ao processo biológico do corpo humano. Trabalho é atividade artificial da existência humana, produção de coisas distintas das coisas da natureza. Ação é a única atividade direta entre homens sem mediação das coisas.

Maurice Merleau-Ponty (1908 a 1961), francês, professor, filósofo, lecionou nas universidades de Lyon e Paris, assumiu a cadeira de filosofia no College de France, serviu como oficial do exército francês na segunda guerra mundial. Alinhou-se ao marxismo como método heurístico e não como expressão histórica, como se depreende das suas obras “Humanismo e Terror” e “Aventuras da Dialética”. Deixou inacabado o livro “O Visível e o Invisível”. Há uma perspectiva estética no seu pensamento. Adentra o terreno da psicologia em “Fenomenologia da Percepção”. Põe o problema do momento que a consciência é integrada ao mundo. Filiou-se à fenomenologia do filósofo e matemático alemão Edmund Husserl. Segundo Maurice, “a fenomenologia é uma filosofia transcendental que põe em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural”. Partiu do estágio da neurociência do seu tempo, especialmente do funcionamento do sistema nervoso, para construir uma teoria do conhecimento fundada na percepção. Salientou o papel do organismo humano no processo de conhecimento. Aprender a ver as coisas é adquirir um estilo de visão, enriquecer e reorganizar o esquema corporal.
Na arte, diz Maurice, experimenta-se a percepção de modo intenso e vibrante. O mundo sensível é o logos do mundo estético. Ele toma como exemplo a pintura e cita Cézanne e Matisse. Perceber o que nos cerca está na base do conhecimento, seguindo-se a atribuição de significado ao que foi captado pelos sentidos e o estabelecimento das conexões entre objetos. Percepção e sensação se diferenciam. A primeira é a apreensão de um objeto pela consciência mediante sensações; está relacionada com a postura corporal. A segunda é uma espécie de eletricidade, de movimento do corpo, aspecto motriz do organismo. O corpo humano sintetiza quando: (1) sai de sua dispersão e se ordena; (2) dirige-se para um termo único do seu movimento; (3) concebe uma única intenção pelo fenômeno da sinergia. A percepção emerge no recesso do corpo. A apreensão do significado do objeto se faz pelo corpo. Da cooperação entre os órgãos sensoriais e a característica motriz dos músculos decorre a percepção. Há uma interdependência entre o organismo humano e o meio ambiente. O ser humano é uma estrutura psicológica e histórica, entrelaçamento do tempo natural, do tempo afetivo e do tempo histórico. 

Gilles Deleuze (1925 a 1995), francês, professor, formou-se em Filosofia na Sorbonne (Universidade de Paris) e escreveu alguns textos em parceria. Ante o agravamento do câncer de pulmão, atirou-se da janela do seu apartamento em Paris, encontrando a morte nas pedras da rua. Preferiu a morte à ociosidade forçada por doença incurável e corrosiva. Gilles estudou as filosofias de Spinoza, Leibniz, Hume, Kant, Nietzsche, Bérgson e Foucault, além das obras de alguns escritores como Proust e Kafka, a fim de formar o seu pensamento e alicerçar suas teses. Ele se opõe à psicanálise freudiana que reduz o desejo ao complexo de Édipo. Enfrentar o caos e sobre ele traçar plano é o que define o pensamento.
Arte, ciência e filosofia são as três grandes formas do pensamento e em todas elas há criação, diz Gilles. A arte é a linguagem que faz entrar as sensações na pedra, na cor, no som, na palavra. A ciência deve se livrar da sua forma clássica, lógica e representativa. Nem todo organismo tem cérebro; nem toda vida é orgânica; em tudo há forças que constituem microcérebros. No seu livro “O que é a Filosofia?” Gilles diz que a filosofia não consiste em saber. Não é a verdade que inspira a filosofia e sim categorias como interessante, notável e importante, as quais decidem sobre o seu sucesso ou o seu fracasso. A Filosofia é devir e não história, coexistência de planos e não sucessão de sistemas. Filosofia é criação de conceitos. Gilles ampara-se no cinema para formular os seus conceitos de imagem + movimento e de imagem + tempo.

Michel Foucault (1926 a 1984) historiador e filósofo francês que investigou os métodos terapêuticos, questões psicológicas e o funcionamento da sociedade ocidental moderna. Criticou a propensão ao sofisma e ao artifício intelectual nos outros filósofos da pós-modernidade embora ele próprio incidisse ocasionalmente nesses mesmos defeitos. Em suas obras, o poder político e social é tema recorrente. Na opinião de Foucault, idéias e práticas sociais têm caráter arbitrário; carecem de fundamento racional. A linguagem é o instrumento do poder na sociedade. As formas de pensamento implicam coerção e estão presentes nas relações de poder. Afirmava que a AIDS era irreal, estratagema do stablishment para reprimir a sexualidade pelo terror. [Ironicamente, a AIDS o matou]. Sobre poder e sexualidade ele trata na sua “Historia da Sexualidade” [investigação certamente provocada por sua homossexualidade e não apenas por influência de Nietzsche]. Na sua “História da Loucura”, expõe os conceitos de saúde e de loucura, a combinação de ambos no conceito mais amplo de doença mental e as conseqüências práticas daí decorrentes. No seu livro “Vigiar e Punir”, analisa a política disciplinar utilizada nas prisões relacionando-a com os padrões de conduta estudados nas ciências sociais.

[No século XIX, outro Foucault se destacara em França: Jean Bernard Leon Foucault (1819 a 1868). Este cientista utilizou um enorme pêndulo para demonstrar a rotação da Terra. A experiência chamou-se “Pêndulo de Foucault”. O escritor Umberto Eco deu esse título a um dos seus romances. O cientista formulou noção precisa sobre a velocidade da luz].

Jürgen Habermas, nascido em 1929, filósofo, sociólogo e professor da Universidade Johann Wolfang Goethe (Frankfurt), filiado à teoria crítica desenvolvida pela Escola de Frankfurt. Aborda o contraste entre o real funcionamento da sociedade e as idéias que sustentam o capitalismo. Diz que o sistema e o mundo da vida convivem na sociedade tendo como mediador o direito; arrola três tipos de democracia: liberal, republicano e deliberativo. Como interesses centrais do homem, Jürgen entende: (1) a exploração técnica da natureza {dominante no sistema capitalista}; (2) as relações recíprocas {a comunicação entre as pessoas para ser autêntica e efetiva depende da relação de mútua confiança}; (3) a libertação do domínio de outrem {ação comunicativa, em que o outro é ouvido, oposta à ação estratégica, lógica da dominação que define o objetivo sem ouvir o outro e que fundamenta a sociedade capitalista}.
A razão comunicativa (comunicação livre, racional e crítica) distingue-se da razão instrumental e da razão iluminista; busca o consenso mediante o debate ao invés da arbitrariedade e da coerção. O coletivo prepondera sobre o individual. Legítima é a norma social aceita em determinada situação ideal, sem constrangimento algum, sujeita apenas à argumentação racional. Entre dezenas de obras da autoria de Jürgen, estão: “Conhecimento e Interesse”, “Discurso Filosófico da Modernidade” e “Inclusão do Outro”.

sábado, 11 de abril de 2015

FILOSOFIA XV - 40



EUROPA (1900 a 2014). Continuação.

Se a humanidade persistir na violência da lei do talião, a práxis política radical renovará o terror do passado, afirmava Theodor Adorno. Ao criticar a práxis brutal da sobrevivência, a obra de arte apresenta-se como antítese da sociedade. A obra de arte adquire prioridade epistemológica e autonomia. A música constitui a manifestação imediata do instinto humano e ao mesmo tempo a instância própria para o seu apaziguamento. Ela desperta a dança das deusas, ressoa da flauta encantada de Pã, brotando ao mesmo tempo da lira de Orfeu, em torno da qual se congregam saciadas as diversas formas do instinto humano. A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências. O programa musical ético de Platão tem a característica de uma purificação, de uma campanha de saneamento de estilo espartano. À mesma classe pertencem outros traços da pregação musical dos capuchinhos. O prazer do momento transforma-se em pretexto para desobrigar o ouvinte de pensar no todo, cuja exigência está incluída na audição adequada e justa; sem grande oposição, o ouvinte se converte em simples comprador e consumidor passivo.

Na opinião de Theodor, a nova etapa da consciência musical das massas se define pela negação e rejeição do prazer no próprio prazer. Assemelha-se tal fenômeno aos comportamentos que as pessoas soem manter em face do esporte ou da propaganda. A música atual caracteriza-se como mercadoria. Os bens da cultura fazem parte do mundo da mercadoria, são preparados para o mercado e são governados segundo os critérios do mercado. A modificação da função da música atinge os próprios fundamentos da relação entre arte e sociedade. No pólo oposto ao fetichismo na música opera-se uma regressão da audição. A audição regressiva relaciona-se com a produção através do mecanismo de difusão o que acontece precisamente mediante a propaganda. Na audição regressiva o anúncio publicitário assume caráter de coação. As vítimas da regressão auditiva agem como crianças: exigem o mesmo alimento que provaram anteriormente. Embora a audição regressiva não constitua sintoma de progresso na consciência da liberdade, é possível que inesperadamente a situação se modificasse se, um dia, a arte de mãos dadas com a sociedade, abandonasse a rotina do sempre igual.                  

Jean-Paul Sartre (1905 a 1980), escritor francês, ateu, filósofo filiado ao existencialismo, autor de romances como “A Náusea” e “Os Caminhos da Liberdade” e de algumas peças de teatro. A sua obra literária ilustrava o seu projeto filosófico consubstanciado no tratado “O Ser e o Nada” escrito em 1943. Após a segunda guerra mundial, ele aborda questões políticas em seus escritos, principalmente sobre o marxismo. “Para nós, franceses, o individualismo conservou a velha forma clássica da luta do indivíduo contra a sociedade e especialmente contra o Estado; isto não existe nos Estados Unidos”, dizia ele.

Na esfera filosófica, Jean-Paul procura as estruturas fundamentais da existência humana; salienta o choque entre a consciência e o mundo objetivo; considera a liberdade uma característica que melhor define o ser humano e que deve ser manifestada na atividade política. O homem escolhe o seu destino, sem vínculos com a tradição e com o passado. O cientista e o sacerdote tentam escapar dessa realidade racionalizando ou espiritualizando o mundo. Jean-Paul rejeita a concepção de liberdade sintonizada com necessidade, predominante na ciência teórica. A rebeldia dos adeptos do existencialismo contra o racionalismo advém do sentimento de opressão. A existência não pode ser deduzida de princípios lógicos gerais. {O ser humano existe como fenômeno biológico e não como produto de um princípio lógico}.

Hannah Arendt (1906 a 1975), alemã, nascida Johanna Arendt, no seio de família judia em Hanover, escritora, filósofa, cientista política, jornalista, professora e, no que tange à produção sociológica, integrante da tradição intelectual da república de Weimar. Estudou nas universidades de Marburgo, Heildelberg e Friburgo. Doutorou-se em Filosofia com a tese sobre o conceito de amor em Santo Agostinho. Durante os seus estudos na Alemanha, tornou-se amante de Heidegger, seu professor e mentor. Dele separou-se em decorrência da pressão social, pois ele era casado com outra mulher e tinha filhos. Alguns anos depois, Heiddeger aderiu à política nazista, motivo pelo qual Hannah rompeu as relações cordiais que ainda mantinha com ele. Casou duas vezes com maridos diferentes. Ela foi presa pela Gestapo em 1933, por três meses; então, sai da Alemanha e permanece em Paris até 1939. Presa novamente e enviada a um campo de concentração, foge e emigra para os EUA (1941). Dez anos depois, adquire a cidadania americana. Em seqüência, lecionou na Universidade de Chicago (1963) e na New School for Social Research de Nova Iorque (1967 a 1975).

No livro intitulado “Eichmann em Jerusalém” publicado em 1963, Hannah Arendt juntou cinco artigos que escreveu a serviço do jornal The New Yorker, quando cobriu o julgamento desse servidor do nazismo. Considerou o réu homem normal, burocrata típico, zeloso cumpridor de ordens por amor ao dever sem considerar o bem ou o mal. Nesse livro, ela denuncia a cumplicidade de lideranças judaicas com o nazismo. As organizações judaicas americanas quase a crucificaram. Faltou pouco para ela não perder a sua cátedra na Universidade.

[Norman G. Finkelstein, judeu americano nascido no Brooklin em 1953, professor de Teoria Política da Universidade de Nova Iorque, lançou o livro “A Indústria do Holocausto” em 2000, denunciando a elite judaica que, para oprimir o povo palestino, aproveita-se do mito em que, na América, foram transformadas as atrocidades nazistas. Essa elite judaica exagerou o número de sobreviventes dos campos de concentração com o propósito de extorquir bancos suíços, indústrias alemãs e países do leste europeu e, assim, obter vultosas indenizações e se apropriar de obras de arte e outros objetos valiosos apreendidos durante a guerra. Tal qual aconteceu com Hannah, organizações judaicas se mobilizaram para impedir a circulação do livro e para afastar Norman da cátedra universitária].

Hannah Arendt defendia a democracia direta como alternativa à democracia representativa. O pluralismo é a condição da vida política e possibilita um potencial de liberdade e de igualdade entre as pessoas. Importante é incluir o outro. Hannah apresenta originalidade na sua obra. Ela procede à crítica da filosofia de Sócrates, Platão, Aristóteles, Maquiavel, Montesquieu, Kant, Heidegger e Jaspers. Desafia os conceitos convencionais tanto da esquerda como da direita. No livro “Origens do Totalitarismo”, publicado em 1951, ela exibe o que há de comum entre a política de Hitler e a de Stalin, vendo nisto um novo fenômeno político: imposição à sociedade, mediante o terror, de uma abstrata ideologia. Buscando os fatores que podiam explicar a submissão ou o consenso das vítimas dos regimes totalitários e as atrocidades neles praticadas, incluindo a prisão e tortura nos campos de concentração, Hannah se deparou com os efeitos das mudanças sociais e econômicas que abalaram e desenraizaram as massas. “Nada pode se comparar à vida nos campos de concentração; nenhum relato consegue expô-la plenamente, pela simples razão de que o sobrevivente volta ao mundo dos vivos, o que o impede de acreditar inteiramente em suas experiências passadas”.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

FILOSOFIA XV - 39



EUROPA (1900 a 2014). Continuação.

Holismo, novidade, mudança, essencialismo, são tópicos caros à corrente do historicismo contrária à visão naturalística, afirma Karl Popper. Há elemento comum às ciências naturais e às ciências sociais quanto aos métodos adotados. Assim pensa a corrente naturalista do historicismo. Tal qual a Física, a Sociologia é um ramo do conhecimento que pretende ser teorético e empírico ao mesmo tempo. Como disciplina teorética, a Sociologia explica e prevê eventos valendo-se de teorias e leis universais que procura descobrir. Como disciplina empírica, a Sociologia se baseia na experiência, nos fatos observáveis. A observação é a base para aceitar ou rejeitar qualquer teoria proposta. A previsão pode ser profética ou tecnológica. A primeira (previsão profética) refere-se a um evento futuro e inevitável. O seu valor prático está em permitir a prevenção, isto é, que possamos nos preparar para enfrentá-lo. A segunda (previsão tecnológica) é construtiva, indica o caminho que se nos abre se quisermos alcançar certos resultados. Este segundo tipo é próprio da engenharia social que pode ser de ação gradual e holística. A engenharia social holística tem por fim remodelar toda a sociedade, enquanto a gradual (tecnologia de ação por partes) projeta a criação e a reforma de instituições sociais de caráter público e privado. O planejamento holístico carece de base científica.

A concepção historicista de desenvolvimento social não implica fatalismo. Ideais, sonhos, raciocínios, desejos, conhecimentos, temores, energia, interesses, constituem forças do desenvolvimento social que não se aprisionam em planos. O historicista pode interpretar e favorecer o desenvolvimento social, mas não altera-lo. O método historicista surge como parte de uma ampla interpretação filosófica do mundo. A voga do historicismo pode ser vista como puro reflexo da voga evolucionista. A chamada hipótese evolucionista resulta da explicação de observações biológicas e paleontológicas fundada no pressuposto de uma ancestralidade comum de formas relacionadas. Tal hipótese carece do status de lei universal.

Na opinião de Karl, a evolução da vida na Terra é um processo histórico peculiar, um enunciado histórico singular e não uma lei universal. A dinâmica social difere da dinâmica natural. Os fatos da sociedade humana não giram em órbita, nem se movem progressivamente em uma trajetória, como se fossem fenômenos da natureza. O tipo de sociedade que o sociólogo denomina “estática” corresponde justamente ao sistema físico que o cientista natural denomina “dinâmico”. A hipótese de que existem tendências é um artifício estatístico útil, mas tendências não são leis e sim coisas radicalmente diversas. O enunciado da tendência é existencial e não universal. A tendência não deve ser utilizada como base para previsões de caráter científico.

A tentativa e o erro são necessários ao avanço científico. Através de ensaios e erros as gerações passadas chegaram ao conhecimento que transmitiram à geração presente e modelaram a sociedade. O cientista social encara tais ensaios e erros como seu método experimental para alicerçar suas teorias. Em época de rápida mudança social constata-se a caducidade das leis sociais em que nos apoiamos e verifica-se que elas não tinham o caráter universal que supúnhamos. Verifica-se, também, o caráter regional das leis sociais quando constatamos que outros povos se guiam por leis diferentes das nossas. A educação e a propaganda padronizam interesses e crenças e eliminam diferenças individuais. O progresso da ciência depende da livre competição de pensamentos e necessita de liberdade política. Sem suprimir a crítica pública, o governo democrático toma medidas duras e necessárias diante de males e perigos concretos.

O progresso pode ser desprezível em conseqüência de um fenômeno natural incontrolável ou de aspectos da natureza humana como a indolência e o esquecimento. Além de psicológicas, as condições do progresso científico e industrial também são institucionais e sociais. Ao tomar consciência de que a pesquisa científica em torno de problemas sociais exerce influência sobre a vida social, o cientista social fica impossibilitado de conservar a adequada atitude científica de desinteressada objetividade. O progresso científico poderá findar se um dia a humanidade mergulhar no misticismo, na busca do nirvana. O apelo emocionalmente persuasivo para que os homens se congreguem em torno de um propósito comum implica no apelo para que opiniões diferentes e opostas sejam abandonadas. Isto pode significar o abandono do pensamento racional. A liberdade de ser ímpar e diferente dos outros, de discordar da maioria e seguir o próprio caminho, pode constituir a mola propulsora da evolução e do progresso.                          

Theodor Wiesengrund-Adorno (1903 a 1969), graduado em filosofia pela Universidade de Frankfurt, faz da música e da tecnologia motivo para reflexão filosófica. Escritor prolífico, Theodor escreveu: “Dialética do Iluminismo”, “Teoria Estética”, estudos sobre Husserl e sobre Hegel, além de outras obras. Refugiou-se na Inglaterra para escapar do nazismo e lecionou na Universidade de Oxford. Mudou-se para os EUA, onde realizou estudo considerado modelo de sociologia empírica: “A Personalidade Autoritária”. Regressou a Frankfurt depois de terminada a guerra e reorganizou o Instituto de Pesquisa Social (1950).

A técnica, diz Theodor, se define enquanto: (i) qualquer coisa determinada interna e esteticamente; (ii) desenvolvimento exterior às obras de arte. As técnicas de reprodução sacrificam a distinção entre o caráter da obra de arte e o caráter do sistema social quando visam à produção em série e à homogeneização. A técnica é fonte de poder na sociedade. As circunstâncias que favorecem tal poder são geradas pelos mais fortes economicamente. A racionalidade da técnica identifica-se com a racionalidade do domínio. Rádio e cinema não podem ser tomados como arte por serem negócios e seus fins realizados mediante sistemática e programada exploração de bens considerados culturais caracterizadora de uma indústria cultural.

A expressão indústria cultural substitui a enganadora expressão cultura de massa utilizada pelos donos dos veículos de comunicação de massa. Essa “cultura” não surge das massas como fazem acreditar os senhores da comunicação, mas é por eles produzida e adaptada ao consumo das massas. Em larga medida, tais senhores determinam o próprio consumo. Ao “criar necessidades” ao consumidor (que deve contentar-se com o que lhe é oferecido) a indústria cultural se organiza para que o indivíduo se conforme a condição de objeto. A indústria cultural faz da humanidade a consumidora dos seus produtos e é portadora da ideologia dominante que outorga sentido a todo o sistema do mundo industrial. A humanidade tornou-se vítima de novo engodo: o progresso da dominação técnica que tolda a consciência individual e impede a formação de indivíduos independentes, capazes de conscientemente julgar e decidir. Instaurando o poder da mecanização sobre o homem, a indústria cultural cria condições cada vez mais favoráveis à implantação do seu comércio fraudulento onde os consumidores são continuamente enganados em relação ao que lhes é prometido e não cumprido.