domingo, 19 de abril de 2009

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - I

Ninguém nasce magistrado. A predestinação e a reencarnação habitam o mundo das crenças e da fé, distantes da realidade e do mundo da razão. Salvo anomalias que o torna semelhante a um vegetal ou a um animal irracional, cada ser humano, voluntária ou involuntariamente, traça o seu caminho no mundo terreno, segundo os seus pensamentos, os seus sentimentos e as suas ações, a partir do ambiente em que nasceu, na medida do seu desenvolvimento como pessoa. Todo ser humano é essencialmente natural e existencialmente cultural; pertence ao mundo da natureza e ao mundo da cultura, simultaneamente.

Do ponto de vista da natureza, os instintos e as tendências do ser humano exigem satisfação. Do ponto de vista da cultura, o ser humano deve descobrir a sua vocação e nela perseverar. A tendência para a arte e a vocação para a pintura, por exemplo, podem ser assombradas pela miséria. Grandes artistas morreram na indigência. Todavia, as técnicas de propaganda e vendas, no mundo contemporâneo, podem ajudar o artista a fugir da pobreza e até enriquecer. O lado prático da personalidade aponta para atividade que garanta a subsistência atual e futura. A tendência socialmente condicionada é a de seguir a profissão dos pais; se esta não supera a pobreza, o filho se conforma ou pensa em outra. Nesta segunda hipótese, o filho procura outro modelo para se espelhar. Colocam-se várias opções: sacerdócio, caserna, atividades agrícolas, mercantis, industriais, liberais, carreira política ou burocrática. Atender a esse aspecto pragmático no mundo terreno, não significa alcançar a felicidade. Haverá sempre a frustração por falta de atendimento à vocação (que dá prazer e enseja felicidade). Feliz daquele que faz o que gosta e é bem remunerado, garantindo um bom padrão de vida. Há pessoas que ingressam na escola superior com idade avançada, apenas para satisfazer o sonho que não puderam realizar na mocidade, como a de ser advogado, médico, engenheiro, psicólogo, professor, jornalista, artista, economista, entre outras atividades.

Quanto a mim, influenciado por meu padrinho de batismo, a escolha recaiu na engenharia. Desdenhava os amigos da escola secundária que pretendiam cursar direito. No meu jovem e preconceituoso entendimento, direito não exigia esforço intelectual algum; estava muito abaixo da engenharia e da medicina; só escolhiam o curso de direito os portadores de deficiência intelectual. Apesar do curso preparatório, não prestei exame vestibular para engenharia. A boemia não permitiu. Meus amigos buscavam-me no curso para as serestas e rodas de bar. Voz e violão garantiam consumo gratuito de comes e bebes, pagos pelos amigos. A voz da consciência era silenciada com argumento irrespondível: se eu preciso trabalhar durante o dia e se não há curso noturno de engenharia, estou perdendo o meu tempo e o meu suado dinheirinho no preparatório. Ademais, eu nutria antipatia pela Matemática. Na época, em Curitiba, o único curso superior noturno era o de direito e em faculdade particular.

Até me decidir, fiz algumas etapas do curso de inglês do Instituto Yasigi (não sei se ainda existe, mas me serviu no vestibular). Enquanto isso, a juventude avançava em direção à maturidade. Matriculei-me no curso preparatório para o exame vestibular de direito, na própria faculdade. Já era uma iniciação. A espera findara. Fui aprovado no exame vestibular. Entrei para a confraria dos portadores de deficiência intelectual. Agora, eu era um deles. Mordi a própria língua. Os colegas adivinharam a minha vocação: magistratura. Um deles começou a me tratar de “desembargador Lima”. Mais do que brincadeira, era intuição. O título jamais me agradou; não soa bem aos meus ouvidos. Ranço medieval. Prefiro o título de juiz de direito. Ainda bem que o meu tempo de aposentadoria voluntária chegou antes da promoção para o tribunal de justiça. Livrei-me de carregar aquele título pelo resto da minha vida neste planeta.

No decorrer da minha existência, descobri o quanto eu era vaidoso, preconceituoso e orgulhoso. Apesar de pobre, ganhar pouco, auxiliar a cobrir as despesas de casa, eu recusei bolsa de estudos. Abri mão de comodidades (roupas, calçados, passeios, cinemas, namoros, compra de livros) para pagar as mensalidades da faculdade. Parte maior do meu salário ficava com a minha mãe. Restava um pouco para as despesas de condução e para o cigarro. Fumar era o charme da época. O cinema estadunidense lançava e animava a moda. Humphrey Bogart, ator americano, esbanjava charme ao acender os seus cigarros, ao lado da lindíssima atriz sueca, Ingrid Bergman, em “Casablanca”. Marlene Dietrich, a bela e sensual atriz alemã, estimulava o vício nas mulheres com o seu cigarro preso na ponta de uma longa e bonita piteira. O tango argentino expressava o glamour do vício:

“fumar é um prazer, genial, sensual, fumando espero aquela a quem mais quero, se ela não vem então me desespero, enquanto eu fumo depressa a vida passa e a dança da fumaça me faz enlouquecer, por isso eu fico a cismar, e o meu fumar é um prazer, da-me o calor da tua boca, venha tenho vontade louca, corre que eu quero endoidecer de prazer, sentindo esse calor, do beijo embriagador que acaba de acender a chama ardente deste amor”.

Alugar o traje de formatura, nem pensar. Terno sob medida, ainda com aperto financeiro. Anel de bacharel em direito de modesto valor econômico pago em prestações mensais. Aos olhos da mãe (meu pai já falecera) não havia jóia mais preciosa do que o meu anel de formatura. De uma prole de 6, o terceiro dos filhos era o único a ter um diploma universitário. No leito de morte, tendo ao seu lado a filha mais velha (Adília), a mãe manifestou preocupação com a filha caçula. O terceiro filho, ali presente, prometeu e garantiu a ela que daria amparo à irmã caçula. O semblante dela serenou. Então, ela lhe perguntou sobre a morte. O filho ainda não passara pela experiência. Entretanto, o momento era inadequado a questionamentos. Engoli a minha ignorância. Disse-lhe que a morte não era o fim e sim o começo de uma nova vida; uma simples e natural passagem da vida terrena para a vida espiritual. Ela sorriu. Percebi que a mãe não estava preocupada com a verdade sobre a morte; queria apenas ouvir as palavras do filho. A respiração ficou diferente, espaçada e cessou.

A irmã caçula (Sandra) com o apoio do irmão formou-se em educação física. Hoje, professora aposentada, ela voltou aos bancos escolares para cursar Filosofia. A irmã do meio (Anunciada) viúva, terminou o curso secundário, ingressou na faculdade de artes do Paraná, formou-se e cursou pós-graduação em artes cênicas e direção teatral. O pai e a mãe, na paz de Deus, devem estar orgulhosos, porque a metade da prole tem diploma universitário. A outra metade, ainda sem diploma, se encaminhou bem na vida. Valeram o bom exemplo e a boa formação moral que eles deram aos filhos.