sábado, 26 de agosto de 2017

DECLÍNIO DO DECORO

Episódios ocorridos na sociedade brasileira a partir da última década do século XX confirmam o declínio do decoro e dos preceitos éticos em geral. A desmedida elasticidade dos limites éticos enseja a libertinagem e incrementa a corrupção. A nação adoece econômica, moral e espiritualmente.
Decoro implica sintonia entre conduta e honestidade; dignidade e beleza moral irradiadas do respeito a si próprio e aos outros; decência ao agir, reagir e se expressar por palavras e gestos. A frase “à mulher de Cesar não basta ser honesta, tem que parecer honesta” evoca a necessidade do decoro, de cada pessoa estampar, no seu proceder, dignidade pessoal e respeito por seus semelhantes. A conduta decorosa inclui o valor estético, o modo de falar, de vestir, de andar, de dançar, de trabalhar, enfim, o modo de se comportar na sociedade dentro dos padrões morais aceitos.
Parlamentares, chefes de governo, ministros, magistrados, agentes do ministério público, advogados, funcionários públicos, serventuários da justiça, todos devem obediência ao decoro; quando o desatendem, ficam sujeitos a penas disciplinares (advertência, censura, suspensão, demissão, exoneração, expulsão). Considera-se decoroso o exercício da função pública em harmonia com os preceitos éticos implícitos ou explícitos na Constituição, nas leis e nas convenções sociais.
Visando ao decoro nas audiências, eu tratava os agentes do ministério público e os advogados de excelência e deles recebia igual tratamento. Certa vez, nos anos 80, um advogado questionou: “excelência não sou eu e sim vossa excelência”. Respondi: excelente é a função dos advogados na distribuição de justiça em nosso país, daí o meu tratamento a vossa excelência e aos seus colegas durante as audiências. Ele sorriu e replicou candidamente: “assim, até dá vontade de continuar advogando”. Fiquei com a impressão de que os advogados não eram bem tratados pelos juízes.
Titular da 3ª Vara de Família da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro (1988/1990), eu tratava os serventuários de senhor e senhora. Com eles, eu despachava os processos no gabinete. Certo dia, o escrivão informou: “excelência, o colega [que acabara de sair do meu gabinete] não é senhora, ele é homem”. Só então entendi porque “ela” saía feliz depois de despachar comigo. Solicitei o seu título de nomeação, chamei-o à minha presença e lhe assinei curto prazo para se apresentar como homem e atender o público como homem. Ele desobedeceu. Afastei-o da serventia, à disposição da Corregedoria. Foi um fuzuê. Imprensa nacional e estrangeira e gente com cartazes defendiam o serventuário visto como vítima de preconceito. Alguns advogados com ele se solidarizaram. Em meu gabinete, deputado estadual pressionava-me para reconsiderar a decisão. Perguntei-lhe: o senhor vê algum funcionário do Banco do Brasil atender o público vestido de mulher? O deputado não me deu resposta. Percebeu que o problema não era a homossexualidade do serventuário e sim a importância do decoro tanto para empresas e bancos privados como para órgãos públicos. Mantive a decisão.
Homem se vestir de mulher ou como tal se apresentar é contrafação. Na vida privada, nas ruas, no clube, na academia, no carnaval, cada pessoa se apresenta conforme a sua vontade e preferência sexual, mas do ponto de vista da natureza só há dois sexos: macho e fêmea. Por ser pederasta, o homem não deixa de pertencer ao sexo masculino; por ser lésbica, a mulher não deixa de pertencer ao sexo feminino. O que os diferencia dos heterossexuais não é o sexo e sim a relação sexual, a libidinosa atração por pessoas do mesmo sexo. Para ser mulher, ao pederasta não bastam os trejeitos femininos, remover o pênis, colocar silicone no peito. Ele necessitará de ovários e útero, de pensar, sentir e reagir como mulher. O fator natural, contudo, não impede a identidade social do pederasta e da lésbica, o pleno gozo dos seus direitos como pessoas e cidadãos, mas isto não os isenta dos deveres para com a sociedade e o estado.
Em Goiás (agosto/2017), durante sessão do Tribunal Regional do Trabalho, advogada se apresentou para sustentação oral vestindo camiseta, o que foi considerado indecoroso por um dos juízes. Em defesa do decoro no tribunal, o juiz admoestou a advogada, expôs serenamente os motivos e se retirou da sessão. A advogada sentiu-se humilhada e reclamou junto à OAB.
Para atuar perante um tribunal de justiça os agentes do ministério público e os advogados devem estar decente e adequadamente vestidos, apresentar suas razões de modo respeitoso. A relevância social e política de um tribunal de justiça exige decoro dos operadores do direito. Dentre as prerrogativas dos advogados, quando no exercício da profissão, não se acha a de comparecer ao tribunal calçando sandália havaiana, vestindo bermuda e camiseta, por mais que pesem os direitos fundados na liberdade.
Em Santa Catarina (agosto/2017), ao fazer defesa oral, advogado acusou juiz de exigir 700 mil reais por um voto favorável. Irritado, cabelos brancos em contraste com a negra beca, o advogado xingou o juiz de safado e vagabundo em plena sessão. O episódio colocou em xeque o decoro. O juiz pediu a prisão do advogado, mas o presidente da sessão não a decretou talvez pela gravidade da acusação que, se procedente, autoriza a exoneração do magistrado. O advogado saiu do recinto escoltado por dois colegas. Cabe: [1] ao Ministério Público, apurar a existência do crime cuja autoria é atribuída ao juiz; [2] à OAB catarinense, apurar se o advogado abusou das prerrogativas; [3] ao juiz, processar o advogado, se for o caso.
Em Brasília, a conduta indecorosa de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) envergonha a nação brasileira. No entanto, esse ministro permanece impune e em atividade como juiz parcial, militante da política partidária, empresário do ensino, fazendeiro com capangas. Omissos quanto a essa censurável realidade, os juízes do STF mantêm corporativa solidariedade ao colega. Julgando em causa própria, os juízes do STF se excluíram do controle disciplinar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), contrariando a letra e o espírito da Constituição Federal. Intencional e astutamente, confundiram função administrativa com função jurisdicional para sustentar superioridade hierárquica em relação ao CNJ.
A competência do CNJ, órgão autônomo de relevante e moralizadora função administrativa disciplinar, abrange o Poder Judiciário como totalidade, inclusive no que tange aos deveres funcionais dos juízes. No entanto, os ministros do STF não se consideraram juízes para fins disciplinares. Impunemente, descumprem aqueles deveres. O impeachment do ministro Gilmar Mendes, requerido por cidadãos brasileiros, ainda não surtiu efeito. No desvão da imoralidade, tribunais remuneram os magistrados acima do teto constitucional. O CNJ se mostra timorato na sua atribuição de representar ao Ministério Público por crime contra a administração pública e de abuso de autoridade.   
O rasgado elogio a Aécio Neves, notório delinquente, feito por Marco Aurélio, ministro do STF, parece retribuição de favor prestado pelo senador à nomeação da filha do ministro para o cargo de juíz de tribunal federal. Nomeada por Michel Temer, notório delinquente, lá está a moça nos seus verdes anos e com seu “notável saber jurídico” aboletada no tribunal.    
Os meios de comunicação social denunciaram reunião extraordinária realizada em agosto/2017, no palácio Jaburu, entre o presidente da república, Michel Temer, e o senador da república, Aécio Neves, na qual teria ocorrido quebra do decoro. Contudo, lente sociológica revela apenas reunião [fora da agenda] de dois delinquentes no covil dos corruptos, sem que estivessem representando oficialmente os seus respectivos partidos (PMDB + PSDB). Na sequência, paz selada.  
Noticiada a reunião, Michel aproveitou o ensejo para, no intuito de se defender, aumentar a sua coleção de asneiras. “Teoria da conspiração é assunto de quem não tem o que fazer”, disse ele.
Teoria resulta do trabalho de quem pensa, estuda, pesquisa e sistematiza o conhecimento sobre certa matéria. Teoria da conspiração é a racional explicação do comportamento humano no que toca ao costume das pessoas de trocar informações, traçar objetivos, elaborar planos, tudo em segredo, visando a alterar o status quo
Conspirar significa tramar, operação mental e volitiva de quem atua em segredo para realizar objetivos contrários ao interesse de outrem. Usa-se este verbo no sentido figurado quando, por exemplo, se diz que o universo “conspira” para coisas acontecerem na vida do indivíduo e da comunidade (o que supõe o funcionamento de uma inteligência cósmica).
Conspiração é o ato de reunir duas ou mais pessoas em segredo com o propósito de contrariar interesses públicos e/ou privados, boicotar negócios, derrubar governos, pregar peças nos incautos. Conspiração não é uma teoria e sim um fato sobre o qual é possível teorizar, meditar, definir como crime na lei penal.
A notícia versava o fato e não a teoria. O presidente e o senador faziam o que é comum e frequente na política: conversar e conspirar. Os dois patifes não elaboravam teoria, apenas conversavam e conspiravam, tal como fizeram para derrubar um governo legítimo e democrático.   

sábado, 19 de agosto de 2017

VOTO DISTRITAL

Em trâmites pelo Congresso Nacional proposta de reforma do sistema político. Entre as mudanças pretendidas está a de incluir o voto distrital e o critério majoritário para eleição de deputados e vereadores. Há correntes a favor e contra a mudança. Alguns questionamentos mostram-se oportunos. Como nação, o que somos? O que devemos ser? O que podemos ser? O que temos? O que devemos ter? O que podemos ter? Considerando que a igualdade está na base dos conceitos de justiça e de democracia, podemos considerar democrática uma nação onde impera a desigualdade? Há democracia onde justiça não é um valor supremo e a toga dos juízes tem cor partidária?
As respostas a essas questões ajudarão a moldar um sistema político adequado ao Brasil, ainda que não seja o melhor do mundo. Os reformadores não devem imitar, como “macaquitos” (royalties aos argentinos), modelo alheio estranho ao trópico e ao povo racialmente miscigenado; devem evitar teorias estrangeiras impróprias e mal digeridas. Conveniente que as discussões sobre essa matéria fossem além do nível partidário e da preocupação do parlamentar consigo mesmo; que não girassem em torno do questionamento se a mudança fortalecerá ou enfraquecerá os partidos, beneficiará ou prejudicará alguns parlamentares, aumentará ou diminuirá a inevitável influência do dinheiro. Mais importa saber se a mudança será benéfica à nação, se trará mais efetividade ao processo democrático, se aperfeiçoará o sistema político brasileiro, se contribuirá para a elevação do nível moral dos políticos, se resgatará a credibilidade da atividade política, se respeitará a vontade do corpo eleitoral.
Os reformadores devem indagar a si próprios: [1] O que entendemos por república democrática? Quiçá, aquele estado em que se reconhece a existência de um bem comum administrado em benefício da população segundo a vontade da maioria do povo. [2] Quem deve governar esse estado? Quiçá, a parcela da população denominada povo composta de pessoas com discernimento para decidir sobre o destino da nação. [3] O povo governará direta ou indiretamente? Quiçá, os dois modos. No Brasil, convivem procedimentos diretos (plebiscito, referendo, iniciativa popular) e indiretos (parlamentares e chefes de governo eleitos pelo povo elaboram leis e administram os negócios de estado). 
A eleição dos governantes (legisladores + administradores) pelo voto popular é essencial ao funcionamento da república democrática no que concerne à defesa territorial, patrimonial e institucional do estado, à garantia dos direitos fundamentais, ao bem-estar e à cultura da população. O sufrágio (procedimento de escolha dos governantes) pode ser: [1] restrito quando inclui no corpo eleitoral só pessoas de nobre nascimento, afortunadas patrimonial e culturalmente; [2] amplo (apelidado “universal”) quando admite no corpo eleitoral maior parcela da população a partir de certa idade do cidadão, incluindo por exemplo: analfabetos, mendigos, pobres, negros, indígenas, mulheres, idosos, homossexuais; excluindo estrangeiros e eventualmente nacionais em serviço militar obrigatório e prisioneiros definitivamente condenados por crimes praticados.
Na eleição indireta, o eleitor primário (corpo eleitoral amplo) vota no eleitor secundário (corpo eleitoral restrito) que, por sua vez, vota no candidato ao cargo eletivo. Na eleição direta, o eleitor vota sem intermediário, como no Brasil, onde a eleição se faz sob duplo critério: majoritário para senador e chefe de governo (elege-se o candidato com mais votos); proporcional para deputado e vereador (em nome da minoria elege-se candidato com menos votos).
O critério proporcional, embora muito difundido, afeiçoa-se menos à democracia e se inspira na hipocrisia. A democracia supõe a prevalência da vontade da maioria do povo (na rua) e dos representantes (no tapete). As chamadas “minorias” mais pela condição social do que pelo número (pobres, mulheres, negros, indígenas, homossexuais, idosos) têm voz através dos parlamentares à esquerda do espectro político. No seio das minorias há eleitores. No governo (legislativo + executivo) há eleitos que representam essas minorias. No critério proporcional, a legenda que tiver candidato com grande força eleitoral (puxador de voto) consegue eleger seus candidatos mais fracos e menos votados do que os candidatos de outra legenda. Daí o paradoxo gerado por esse critério: candidatos com menos votos vencem candidatos com mais votos, o que é incompatível com o espírito democrático e com a soberania popular expressa no voto direto, secreto e de igual valor para todos. Sob tal critério, o voto do eleitor é desrespeitado. Deforma-se a representação popular na câmara dos deputados, na assembleia legislativa e na câmara dos vereadores.
O critério majoritário e o voto distrital corrigirão essa anomalia do processo eleitoral brasileiro. Eleger-se-á o candidato a deputado e a vereador que obtiver mais votos, independente da legenda. A representação popular tornar-se-á autêntica e mais adequada ao processo democrático. O processo eleitoral brasileiro livrar-se-á (i) da complicação matemática do quociente eleitoral e (ii) da superioridade do partido político em relação ao corpo eleitoral e à escolha do eleitor.
Na república democrática quem deve ser eleito? O candidato mais qualificado física, moral e intelectualmente, segundo o axioma da ciência política: a nação deve ser governada por seus filhos mais capazes. No Brasil, quem é eleito? O candidato menos qualificado moralmente, segundo o postulado da razão prática: a nação deve ser governada por seus filhos da puta. Os partidos políticos eleitoralmente mais fortes não oferecem candidatos honestos, de espírito público, voltados para o bem geral da nação. Resultado: quadrilhas de bandidos assumem o comando da nação. Da elaboração e execução das leis e da política governamental participam traidores da pátria, estelionatários da fé religiosa, traficantes e usuários de drogas, mandantes de crimes, grileiros, enfim, toda a fauna de predadores. 
O voto distrital e majoritário combinado com a exigência de ficha limpa ajudará a mudar essa realidade, dificultará a candidatura e a eleição de pessoas desqualificadas. A proximidade permitida pelo distrito possibilitará melhor escolha e o fortalecimento do vínculo de confiança entre eleitor e eleito. O novo mecanismo não eliminará a imoralidade dos políticos, mas certamente a reduzirá e contribuirá para melhorar a imagem do Congresso Nacional, o que já é um avanço. Nas eleições de legisladores federais, estaduais e municipais, o país, o estado federado e o município serão divididos em distritos nos quais serão eleitos os candidatos mais votados, vistos de perto pelos eleitores distritais. O voto distrital acentua o aspecto sociológico da representação política ao ligar o eleito aos problemas regionais vivenciados pelos eleitores do distrito. Destarte, embora representativo, o mandato eletivo aproximar-se-á do tipo imperativo ao estimular a consciência do mandatário para os problemas comuns e gerais dos eleitores do seu distrito. 
Considera-se representativo o governo cujas decisões sobre os negócios de estado são tomadas por representantes do povo investidos de autoridade para efetivá-las. O mandato eletivo pode ser: [1] imperativo quando vincula o eleito ao programa do eleitorado; [2] representativo quando não há essa vinculação e o eleito atua segundo as suas próprias diretrizes no propósito de atender as necessidades sociais e não as individuais. Esta última modalidade vigora no Brasil. Portanto, ainda que cidadãos protestem, os parlamentares federais da direita, da esquerda e do centro representam formalmente a nação brasileira e decidem em nome de todos os brasileiros. Deputados e senadores são invioláveis civil e penalmente por qualquer de suas opiniões, palavras e votos.
Atualmente, brasileiros mostram descontentamento com o mandato eletivo do tipo representativo em decorrência do fato de os representantes se desviarem do interesse público para atender interesses privados. Apesar de vinculados aos princípios, regras e objetivos declarados na Constituição da República, alguns representantes se desviam. As normas constitucionais não esgotam a ética do governo representativo. Os bons costumes e as convenções complementam-na. A má conduta do parlamentar pode ser punida: [1] pelo órgão disciplinar da Casa Legislativa; [2] por órgão do Poder Judiciário; [3] pelos eleitores quando não o elegem nos futuros pleitos. Todo servidor público brasileiro tem o dever jurídico de agir dentro das balizas morais (CR 14, 9º + 37).

sábado, 12 de agosto de 2017

OPINIÃO ILEGAL

O Tribunal Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre/RS, julgará os recursos do ministério público e do réu, interpostos da sentença proferida pelo juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, que condenou o réu Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente da república brasileira. O juiz e a sentença foram alvos de severas críticas no país e no estrangeiro feitas por juristas, jornalistas, políticos, intelectuais de diversas áreas. O presidente daquele tribunal defendeu o juiz e a sentença quando entrevistado por jornalista do Estado de São Paulo no dia 31/07/2017 (edição de 06/08/2017).
Talvez, ante as veementes críticas, o desembargador presidente sentiu-se no dever de entrar na arena. Entretanto, não lhe assentam bem as armas e as sumárias vestes de gladiador. Ao magistrado mais convém a toga. Talvez, a humana vaidade contribuiu para o desembargador entrar em cena, atraído pelas cores do palco e luz dos holofotes. Talvez, ele tenha agido na esperança de ocupar uma cadeira no supremo tribunal onde pontificou o seu avô. Talvez, por amor à história do seu rincão, ele queira evitar que um estadista nordestino ensombre a imagem de um estadista gaúcho. Reconheça-se com franqueza, honestidade e justiça: Vargas, rico estancieiro gaúcho, e Silva, pobre metalúrgico nordestino, foram os dois maiores estadistas do período republicano da história do Brasil.
Para explicar a atitude do desembargador haverá mais outro talvez? Relações encortinadas? Quem sabe? Em síntese, ele diz que a sentença é tecnicamente irrepreensível e entrará para a história do Brasil; que o juiz examinou de modo irretocável a prova dos autos; que indício também é prova. Ele compara a sentença do caso Lula com a do caso Herzog e indica o ponto comum: as duas não se preocuparam com erudição e sim com a prova. Disse mais, que se integrasse a 8ª Turma e a sentença fosse justa, ele a confirmaria sem titubear, pois dela gostou.
Gosto não se discute. Há outras pessoas que também gostaram (operadores do direito, donos de jornais e de emissoras de televisão, empresários, banqueiros, políticos). Acontece que a sentença é injusta como atestam abalizadas críticas publicadas nos diversos veículos de comunicação social. Apesar disto, o desembargador manda um recado subliminar aos seus colegas da 8ª Turma: confirmem a sentença condenatória. Para a sua influência dentro e fora do tribunal concorre a presidência por ele ocupada. Na citada entrevista há um quê de superioridade, como se o desembargador presidente fosse jurista melhor capacitado do que os seus colegas.
Comparar a sentença do juiz curitibano com a proferida pelo juiz paulista é sacrilégio. No caso de São Paulo, Herzog foi vítima de homicídio quando estava preso. No caso de Curitiba, a questão é patrimonial, sem ligação com assassinato. O raciocínio do juiz paulista foi correto enquanto o do curitibano foi o oposto (indução insuficiente, dedução com premissas falaciosas, nexo de causalidade inexistente). O juiz paulista firmou a sua convicção em prova idônea enquanto o curitibano firmou a sua em “prova” inidônea (matéria jornalística, delação, indícios). A prova, inclusive a pericial, deve ser idônea e convincente. Na crônica forense há episódios, como o de Wladimir Herzog, nos quais o laudo pericial confirma a versão policial de suicídio do prisioneiro. No entanto... pois, é.  
A comparação feita pelo desembargador para prestigiar o seu pupilo assemelha-se à que se faz no futebol para valorizar o passe do jogador: eleva-se artificiosamente o jogador ao nível de Pelé.
Quando menciona falta de erudição, o desembargador implicitamente desculpa a linguagem sofrível e o rombudo intelecto do juiz curitibano. Dos magistrados não se exige erudição e sim cultura geral e jurídica, honestidade, imparcialidade, independência, serenidade, assiduidade, pontualidade, urbanidade, decoro, sensatez, clareza, objetividade, respeito à Constituição e às leis.
Ao afirmar que a sentença é tecnicamente irrepreensível, o desembargador dá o seu aval de presidente a gritantes falhas técnicas tais como: prolixidade (falta de síntese), autodefesa do juiz no corpo da sentença (como se fosse réu), complexidade artificialmente criada (embromação, lawfare), indício equiparado a prova. Do seu pronunciamento subentende-se que os recorrentes e os desembargadores devem aceitar as inconsistências da sentença, posto ser ela irrepreensível (sem mácula, perfeita). Tal sugestão presidencial implica a intenção de limitar o direito postulatório do acusador e do defensor e controlar o poder jurisdicional da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal.
O desembargador presidente afirma que o exame da prova foi minucioso e irretocável. Isto significa que os postulantes e os desembargadores da turma recursal devem se abster de retocar o aludido exame, ou seja, devem se limitar à argumentação sem examinar a prova dos autos. Todavia, nos termos da lei processual, as apelações do acusador e do defensor têm efeito devolutivo. Portanto, os desembargadores têm o dever de examinar os fatos e as provas e não só as razões de direito. Nota-se, por exemplo, que nas suas 218 páginas, a sentença não especifica a prova do ato de ofício que o réu teria praticado e que explicaria a propina e tipificaria o crime de corrupção passiva.
A tese de que indício é prova, ainda que amparada na autoridade de algum doutrinador, agride a semântica. Indício significa sinal, vestígio. A lei brasileira assim o define: circunstância conhecida e provada que tendo relação com o fato, autorize por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias. (Código de Processo Penal – CPP, 239). Circunstância é particularidade que circunda o fato central. O indício provoca juízo de probabilidade, não é prova em si, mas algo circunstancial ao redor do fato típico, particularidade da investigação que complementa, agrava ou atenua, um ato ou fato supostamente repreensível. A validade jurídica do vestígio depende do exame pericial. (CPP, 158). O galão de gasolina encontrado no local (indício) sugere a probabilidade de o incêndio ter sido intencional; o exame pericial apontará a causa. As cinzas indicam que algo foi queimado (indício), mas o quê, como, quando, quem, qual finalidade, depende de prova específica e idônea. A certeza da existência do indício não se confunde com a certeza da existência do fato típico objeto da ação penal. A confusão, às vezes proposital, entre as duas certezas, pode mascarar a ausência de prova idônea do fato central (típico). 
No processo judicial, a prova oral é produzida em audiência na presença do juiz, sob o crivo do contraditório (quando os depoentes sujeitam-se às perguntas do juiz, do agente do ministério público e do advogado). Compreende: confissão, depoimentos (das partes, de testemunhas e informantes) e os esclarecimentos prestados pelos peritos. Depois de o juiz reduzi-los a termo (escrito ou gravado) os elementos orais adquirem natureza documental. Depoimentos extrajudiciais postos por escrito não valem como prova oral e sim como prova documental. Tais depoimentos escritos podem constar de instrumento particular assinado pelos depoentes ou de instrumento público lavrado no cartório de títulos e documentos. O depoimento extrajudicial converter-se-á em prova oral se o depoente comparecer perante o juiz e ratificá-lo ou retificá-lo no devido processo legal. Caso contrário, permanecerá como prova documental cuja idoneidade e cujo peso o juiz avaliará.
No processo judicial brasileiro não há hierarquia entre as provas. Todas têm igual valor (oral = documental = pericial) embora possam ter pesos distintos no plano dos fatos. No que tange ao bem imóvel, por exemplo, a escritura pública é a prova por excelência da propriedade e pesa mais do que a prova oral; já no que tange à posse, a prova oral pesa muito. Matéria jornalística, delação premiada, papéis desvinculados da causa e outros indícios, não funcionam como prova do ilícito penal e sim como informação para se obter a prova. Daí, o frouxo alicerce da sentença que condenou o ex-presidente e entrou para a história do Brasil como herética prestação da tutela jurisdicional. Tal sentença ficará registrada na memória da nação brasileira como vergonhoso capítulo da indecorosa e ilícita influência da política partidária e ideológica no processo judicial.     
O desembargador presidente emitiu opinião sobre um processo ainda em andamento no qual ele não funciona como relator, revisor ou vogal. A sua conduta contraria a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC 35/1979, art. 36, III): “É vedado ao magistrado manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem (...) ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou exercício do magistério”. No mesmo diapasão, o Código de Ética da Magistratura Nacional (art. 4º + 12, II) promulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e publicado no Diário da Justiça de 18/09/2008. A manifestação do desembargador não se enquadra nas ressalvas da lei e do código. Da sua atitude emanam: de um lado, antipatia pela filiação partidária e pelo status político do réu; de outro, simpatia (quiçá hereditária) pela direita do espectro político. A liberdade de expressão não isenta de responsabilidade quem ultrapassa limites éticos e jurídicos.    
Quem irá promover perante o CNJ a ação administrativa disciplinar contra o desembargador pela infração cometida? Advogados relutam em processar magistrados porque: (i) acreditam na impunidade decorrente da solidariedade corporativa existente no seio da classe; (ii) receiam represálias nas suas atividades forenses e o estigma de inimigos da magistratura. Há notícia de que um deputado federal representou contra o desembargador.    

sábado, 5 de agosto de 2017

DRÁGEAS

PROCESSO. Entende-se por processo a dinâmica na qual coisas acontecem numa ordem própria no mundo da natureza e no mundo da cultura. O processo natural é desencadeado segundo as leis da natureza brotadas da inteligência cósmica. Formação e multiplicação da matéria, gênese e evolução das estrelas, plantas, animais. O processo cultural ocorre conforme regras postas pela inteligência, vontade e ação dos humanos nos terrenos da política, economia, religião, educação, esporte, técnica, arte, ciência. Procedimentos empíricos no campo da química, da física, da biologia, sistematizados pela razão humana para os mais diversos fins. Conexão e sequência de fatos políticos e econômicos desenhando modelos e regimes. Método de estabelecer diretrizes, dirimir dúvidas, solucionar problemas, resolver conflitos, mediante procedimentos regulados pelos costumes e regras escritas. Conjunto de procedimentos ordenados para: [1) elaborar leis (processo legislativo); [2] executar as leis (processo administrativo); [3] prestar tutela jurisdicional (processo judicial).

ARGUMENTAÇÃO. Consiste na faculdade racional de concatenar palavras num discurso que expressa ideias, intenções e pretensões com o fim de: [1] demonstrar a verdade ou a falsidade do que se conhece; [2] convencer o outro; [3] obter adesão; [4] chegar ao consenso; [5] provocar o dissenso. Quanto maiores o vocabulário, a experiência, a reflexão e o saber, maior é a chance de o indivíduo ser eficiente argumentador. O processo parlamentar é teatro da argumentação política. O processo judicial é teatro da argumentação jurídica. Nos dois teatros, os atores disputam primazia de valores e de interesses públicos e privados, utilizando argumentos para convencer. Os processos da operação lava-jato servem de exemplo: os procuradores e o juiz primam pelo argumento correto na forma e falso no fundo. Esse tipo de argumento denomina-se sofisma. Os procuradores e o juiz raciocinam assim: Em chuvosos e diferentes dias, Ana, Silvia, Beatriz, foram estupradas; ora, Ana, Silvia, Beatriz, são mulheres; logo, mulheres são estupradas sempre em dias chuvosos. Do ponto de vista formal, o raciocínio está correto, pois as premissas autorizam a conclusão. Todavia, do ponto de vista material, o raciocínio é falso, eis que (i) a indução é insuficiente e (ii) inexiste nexo de causalidade entre chuva e estupro. 

ESTUPRO. Mediante violência ou grave ameaça, tipifica crime constranger alguém à conjunção carnal. Sob chuva ou sol, mulheres são estupradas, submetidas ao coito vaginal e/ou anal. Essa violência nem sempre é punida; às vezes, sequer chega ao conhecimento das autoridades; quando chega, nem sempre é levada a sério. Aliás, na discussão com a deputada Maria do Rosário, o deputado Jair Bolsonaro se mostrou seletivo: admitiu estuprar exclusivamente mulheres bonitas e gostosas.

PROVA. Considera-se prova tudo o que no mundo da natureza e no mundo da cultura servir para mostrar e demonstrar a verdade ou a falsidade do conhecimento. A prova é essencial ao processo judicial onde se busca a verdade dos fatos e a justiça das pretensões dos litigantes. O direito brasileiro admite como prova: confissão, depoimentos de testemunhas, documentos, exames periciais. À instauração do processo penal bastam a prova da existência do fato (materialidade) e o indício da autoria.  Prova cabal da autoria pode ser feita no curso da instrução. Encerrada esta, forma-se o juízo de culpa ou de inocência. No direito constitucional brasileiro, a inocência do réu é presumida; portanto, ao réu não cabe prová-la. O ônus da prova cabe a quem acusa (agente do ministério público ou queixoso). O inquisidor juiz da operação lava-jato atua contra o direito: [1] ao considerar o réu culpado antes de encerrada a instrução processual; [2] ao exigir do réu, prova da inocência. 

DENÚNCIA. Entende-se por denúncia a exposição ou notícia de atos e fatos levada ao conhecimento das autoridades, do público, ou de quem interessa. No processo penal, trata-se da petição inicial apresentada pelo agente do ministério público, ou pelo queixoso, relatando ação ou omissão tipificada como crime. O atual presidente da república foi denunciado por crime praticado no exercício do cargo. A instauração do processo depende da autorização da Câmara dos Deputados. Em sessão do dia 02/08/2017, por maioria de votos e com o peso de bilhões de reais, a autorização foi negada. Isto não significa inocência do acusado e sim que o Brasil continuará a ser governado por um delinquente. A decisão da Câmara, acertada na opinião de uns, equivocada na opinião de outros, tem natureza política (juízo da inconveniência de instaurar o processo); resulta do processo parlamentar e não do processo judicial. Ao dizer “a decisão dos deputados foi clara e incontestável” e “erram os que tentam dividir os brasileiros”, o presidente aumentou o seu cabedal de asneiras. A Câmara está dividida. Quase a metade dos deputados votou pela autorização. O povo brasileiro está dividido. De um lado, a direita apoia o golpe de estado; de outro, a esquerda não se conforma e protesta. O ódio e o rancor acentuam essa divisão política, ideológica e emocional. Pesquisas indicam que a maioria da população é a favor do “Fora Temer”.            

REPRESENTAÇÃO. Esta palavra comporta os significados: [1] tornar presente fatos, imagens, sentimentos, interesses, ideias; [2] falar e agir em nome de outrem; [3] petição aos órgãos públicos denunciando, reclamando ou reivindicando. A Câmara dos Deputados representa o povo no plano formal, mas não no plano material. Nas eleições de 2014, do total de 142 milhões de eleitores, 45 milhões se negaram a escolher deputados federais por não acreditarem na honestidade dos candidatos e estarem desiludidos com a política. A maioria dos deputados foi eleita com poucos votos, enquanto candidatos com mais votos ficaram de fora em consequência do malicioso sistema proporcional colocado pelos partidos fortes no texto constitucional. Apesar de o sistema majoritário ser o mais adequado à representação popular e à democracia (elege-se quem tiver mais votos independente do partido a que estiver filiado), os grandes partidos dele fogem como o diabo da cruz. A representação é fragmentada. O povo, como unidade coletiva, não está representado. A Câmara representa setores da sociedade e interesses econômicos e estratégicos estrangeiros. Quadrilhas governam o Brasil.    

ORATÓRIA. As palavras podem ser usadas com arte, adequadamente, a fim de convencer, dissuadir, comemorar, homenagear, distrair. Atualmente, em extensão planetária, o crível tem sido mais forte do que o veraz. A crença ainda pode mais do que a verdade. As pessoas são convencidas mais pelo discurso imbricado na fé do que pelo discurso imbricado na razão. Ao invés de aceitar as evidências do conhecimento racional, elas preferem crer nas infantilidades da escritura “sagrada”, nas fantasiosas imagens dos templos, no emotivo e tendencioso discurso dos sacerdotes, pastores, missionários, rabinos, na enganosa propaganda veiculada pelos meios de comunicação social. Acolhem melhor a ilusão do que a realidade. Há eleitores brasileiros que preferem acreditar na colorida imagem e na entusiástica palavra do político manhoso e fechar os olhos para os defeitos e vícios. Reconheça-se, entretanto, que ao eleitor é difícil escolher qual dos ladrões é o melhor.

CRÍTICA. Operação intelectual que avalia de modo criterioso as virtudes e os vícios do pensamento, da conduta e da obra das pessoas. A crítica não desmoraliza a Política, mas tão somente constata e divulga a imoralidade dos políticos.