sexta-feira, 3 de junho de 2011

VIAGEM3

Caminhamos pela orla de Cannes. Os banhistas dividem a estreita faixa de areia com os quiosques montados junto ao muro. De um modo geral, as praias do Mar Mediterrâneo são formadas dessa areia compacta, que lembra a praia de Torres, no Rio Grande do Sul. No retorno, pretendíamos ficar alguns dias em Cannes, mas o festival de cinema no mês de maio mudou o nosso plano. O mesmo aconteceu em relação a Mônaco, ante a programada corrida de automóveis da Fórmula I para o final do mês. O nosso propósito era o de evitar agitação sempre que possível.
Em Milão, hospedamo-nos no Hotel Astória, da rede Best Western, na Viale Murillo. A catedral milanesa é a única no mundo com cinco portas na frente, por sinal, bonitas, com figuras bem esculpidas no metal. A fachada exibe esculturas. No Cenacolo Vinciano onde pretendíamos ver a “Última Ceia”, pintada por Leonardo da Vinci, informaram não haver mais bilhete. Recorremos a uma agência de turismo. Fomos atendidos por uma brasileira do Estado de Santa Catarina. Ingressamos em um grupo, colamos o distintivo da agência na camisa e blusa, guia à frente em passos calculados para controlar o tempo e não cansar demais o pessoal, mulher relativamente jovem e bonita, falava inglês com sotaque italiano, tagarelava e gesticulava como italiana enquanto visitávamos castelo, igreja, museu, mostra da obra de Michelangelo (esboços, esculturas) em três horas de caminhada sob o sol. Diante de cada atração turística a guia parava e deitava falação. Rafael vertia pouca coisa para o português, pois o assunto não nos interessava. Apontei o arco romano (há muitos desses arcos na Itália; só em Roma há, pelo menos, três próximos ao Coliseu: arco de Constantino, de Tito e de Dolabella) situado no lado oposto ao do castelo. A separar os dois (castelo e arco) há vasta área verde com lago, jardins, árvores, caminhos de cascalho. No dia anterior, Jussara, Rafael e eu havíamos percorrido aquele setor. “O arco lembra o de Paris, mas agora se chama arco da liberdade e não mais arco do triunfo” explicou a guia. O arco milanês não consta do itinerário turístico. Quando o visitamos no dia antecedente, estava às moscas, apesar da beleza arquitetônica e da limpeza. A inscrição no alto revela o motivo: o arco foi construído em homenagem a Napoleão Bonaparte, quando a Itália estava sob domínio francês, do que os milaneses não se orgulham nem se alegram. Aliás, parece que eles também não gostam de lembrar (ou ignoram) a ajuda prestada pelo exército brasileiro na libertação da Itália, ao fim da segunda guerra mundial, nem do incômodo testemunho do cemitério de Pistóia, onde estão sepultados os soldados brasileiros. Preferem lembrar a vitória da seleção italiana de futebol sobre a seleção brasileira. Todavia, segundo depoimento do meu primo Augusto, um representante de associação civil italiana esteve em Fortaleza afirmando que anualmente, naquela região da Itália, os brasileiros são lembrados com gratidão, não só por sua atuação bélica, mas principalmente por sua ação solidária e fraterna com aquele povo que passava fome. Faltavam víveres. Havia racionamento decorrente da guerra. Espontaneamente, sem que recebessem ordens ou orientação dos superiores hierárquicos, os soldados brasileiros dividiam as suas rações com os italianos necessitados. Nenhum outro soldado estrangeiro adotou semelhante conduta.
Formávamos a última leva de turistas a visitar o cenáculo naquele dia. O curador do museu interrompe a longa explicação da guia e solicita a retirada do grupo em face da exaustão do horário. Tivemos tempo suficiente para bem examinar a pintura de Leonardo na parede do antigo refeitório dos padres. A enorme pintura ocupa toda a extensão da parede dos fundos: 12 metros de largura por 4 metros de altura, aproximadamente. Sob domínio napoleônico, o refeitório virou estábulo. Abriram uma porta medindo cerca de 2 metros de altura por 1,50 metros de largura, na parte central da parede, para servir de entrada à cozinha. A porta mutilou o quadro. Os infelizes acontecimentos do passado causaram avarias à pintura. Na obra de restauro, a porta foi fechada com tijolos e massa. Em conseqüência, mancha branca com o contorno daquela porta cobre a parte central da pintura, do meio para baixo. Originalmente, ali estariam os pés de Jesus e dos apóstolos situados imediatamente à sua direita e à sua esquerda, além de qualquer outra coisa porventura ali pintada por Leonardo. Entusiasmada nas suas horas de glória, a guia, em plena apoteose, fazia gestos teatrais ao explicar o significado daquela pintura como se ali estivesse retratada a verdadeira ceia. No entanto, a pintura é criação artística de Leonardo, sem corresponder à realidade. Ninguém sabe a real posição da mesa (ou das mesas), a distribuição dos convivas, se havia divãs para acomodação (costume da época), se Jesus ocupava o centro da mesa ou uma das pontas. As reais fisionomias de Jesus e dos apóstolos são desconhecidas; não há retratos nem estátuas da época. Leonardo da Vinci inventou tudo aquilo inspirado no momento em que no transcorrer da ceia, segundo a narrativa bíblica, Jesus anunciava a existência de um traidor. Por ocasião da ceia, os apóstolos não eram tão idosos como pintados por Da Vinci. João era adolescente imberbe, daí a hipótese sensacionalista, sem amparo na realidade histórica, levantada no livro “O Código Da Vinci” de Dan Brown, de aquela imagem ser de mulher (Maria Madalena). Os demais apóstolos eram adultos, mas não idosos. Do Novo Testamento depreende-se que todos tinham idade aproximada à de Jesus. Segundo a epístola de Paulo aos hebreus, Jesus tinha mais de 40 anos de idade quando celebrou aquela páscoa e foi crucificado. Na pintura, Leonardo colocou Jesus no centro, os apóstolos, simetricamente, seis de cada lado, e os agrupou de três em três. Nos semblantes, espanto e surpresa. Arte magnífica.

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