sábado, 18 de junho de 2011

DIREITO4

Marcha da Maconha. A Procuradoria-Geral da República (PGR) insurgiu-se contra a proibição da marcha da maconha. Estribou-se na liberdade de reunião e de manifestação do pensamento declarada na Constituição Federal. A proibição vinha amparada no artigo 287 do Código Penal, que considera crime “fazer, publicamente, apologia de fato criminoso”. Na sessão do dia 16/06/2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o caso; entendeu que a marcha expressava o pensamento de parcela da população sobre a descriminalização da maconha e que isto não caracteriza apologia a fato criminoso; a marcha era legítima; o governo devia assegurá-la ao invés de impedi-la.

Em seu voto, o relator quase exauriu a matéria e a paciência dos ouvintes. Análise prolixa. Sobrou erudição. Faltou síntese. Colocação didática dos temas. Pertinentes citações da jurisprudência e da doutrina nacional e estrangeira. Texto brilhante do ponto de vista jurídico e intelectual. Comovente lembrança da luta de Ruy Barbosa pela presidência da república, da campanha civilista (oposta à campanha militarista de Hermes da Fonseca) e de sua histórica defesa das liberdades públicas. A derrota de Ruy mostra bem a politicagem entranhada na vida pública brasileira: no governo da república não há lugar para a decência e a honradez. As poucas exceções confirmam a regra.

Os demais ministros carrearam adminículos interessantes do ponto de vista jurídico e cultural. A ausência de três ministros contribuiu para maior fluência do julgamento. O ministro Lewandowski conceituou marcha: “reunião em movimento”. A reunião é de pessoas que podem se locomover ou ficar paradas em espaço definido, público ou privado. O local pode ser uma avenida e o trajeto esgotar a finalidade da reunião (passeata). A ministra Carmen Lúcia recordou a sua militância estudantil contra o regime ditatorial e o quanto isto despertava a consciência do valor da liberdade de reunião e de manifestação do pensamento. O ministro Ayres Britto colheu o ensejo do seu voto para rebater as críticas feitas ao STF provocadas pela decisão no caso Cesare Battisti.

A linguagem técnica dos magistrados contribui para obscurecer o entendimento dos jurisdicionados. Havia público leigo em matéria jurídica acompanhando o julgamento. Por não serem peritos em direito, jornalistas equivocam-se nas suas manifestações em jornais impressos e eletrônicos, e nas emissoras de rádio e televisão. O ministro Fux abordou o problema da comunicação com o público. Aos juízes falta esse cuidado com a linguagem. O emprego do “juridiquês” também pode servir à malícia. Felizmente, os ministros abreviaram os seus votos. A ministra Ellen Gracie deu o melhor exemplo: gentilmente mencionou os adminículos trazidos pelos colegas e acompanhou o voto do relator, sem apreciações redundantes e sem entrar no duelo de vaidades.

Nos termos da Constituição Federal, ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; a manifestação do pensamento é livre; todos podem reunir-se pacificamente sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.

O código penal e a lei penal extravagante consideram crime o incitamento público à prática delituosa, a apologia a fato criminoso, induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga. A lei não veda o exercício legítimo da liberdade de reunião e de manifestação do pensamento, mesmo quando a reunião destina-se a desqualificar conduta tipificada como crime.

Foi trazida à balha, a descriminalização da capoeira, do adultério, da sedução. Considerada atividade criminosa no século XIX, a capoeira foi reconhecida e enaltecida oficialmente, no século XX, como esporte genuinamente brasileiro. Antes tipificados como crimes, o adultério e a sedução saíram da esfera penal; entretanto, permanecem como ilícitos civis, morais e religiosos.

Quando exercia a judicatura, eu sistematicamente absolvia os réus processados por crime de sedução. Certa vez, nos idos de 1974, a secretária das audiências, surfando na onda feminista da época, mostrou inconformismo ao me interpelar: “Para Vossa Excelência o crime de sedução não existe mais?” Horrorizada, ela ouviu a curta resposta: “isso mesmo”. A sedução estava tipificada em lei penal inspirada nos costumes do século XIX, enquanto outros eram os costumes no terço final do século XX. Nas sentenças absolutórias eu sustentava que diante do tráfego intenso da informação pelos amplos e variados meios de comunicação da sociedade moderna, e diante da liberação dos costumes (da qual o movimento feminista era uma das alavancas) especialmente nos grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo, não se justificava condenar criminalmente pessoa alguma por conduta sedutora. A presumida ingenuidade das vítimas colidia com a realidade social. Após 30 anos da publicação daquelas sentenças que proferi como juiz substituto e 20 anos das que proferi como juiz titular, finalmente a sedução foi banida do código penal (lei 11.106/2005).

Embora cassada pelo STF, a decisão judicial que proibiu a marcha da maconha estimula a reflexão. A marcha veicula mensagem apologética e instigadora ainda que subliminarmente. Adolescentes podem ver a marcha como heróica defesa de uma coisa boa: a maconha. A marcha não está na estrada principal das “diretas já” e sim no desvio. A maconha é droga tanto quanto o tabaco. Hodiernamente, a liberdade de fumar, seja maconha ou tabaco, sofre restrições na América e na Europa. Aumenta o cerco social e legal em torno dos fumantes. Charmoso e sensual no passado, o ato de fumar é visto como deselegante e nocivo nos dias atuais. Liberar a maconha para depois impor restrições, como aconteceu com o tabaco, afigura-se insensatez.

A produção, a circulação e o consumo do tabaco geraram imensa indústria, um mercado internacional envolvendo bilhões de consumidores, empregos, dólares e uma fortuna em tributos para o Estado. A renda de milhões de famílias provém da indústria do tabaco. Pretender agora, diante dessa indisfarçável e dramática realidade, tipificar como crime a plantação, industrialização, comercialização e o consumo do tabaco, será provocar grave problema social e econômico. Quanto à maconha, cabe o dito popular: antes que o mal cresça, que se lhe corte a cabeça.

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