domingo, 15 de março de 2015

FILOSOFIA XV - 29



EUROPA (1900 a 2014). Continuação.

Gaston Bachelard (1884 a 1962) professor, filósofo, poeta francês, nasceu em berço modesto, sustentou seus estudos com o suor do seu rosto e conquistou diploma universitário. Lecionou na Universidade de Dijon a partir de 1930 e na Sorbonne a partir de 1940. Foi admitido na Academia de Ciências Morais e Políticas da França em 1961. Classificava sua produção intelectual em dois blocos: (1) dos conceitos {ciência e filosofia}; (2) das imagens {poesia}. Do primeiro bloco, entre outras, constam: “O Novo Espírito Científico”, “A Formação do Espírito Científico”, “A Filosofia do Não”, “O Racionalismo Aplicado”, “O Materialismo Racional”, livros publicados entre 1934 e 1952. O objetivo do livro citado em primeiro lugar, dito pelo próprio autor, foi o de captar o pensamento científico contemporâneo na sua dialética e assim mostrar a sua novidade essencial.  Do segundo bloco, entre outras, constam: “A Psicanálise do Fogo”, “A Água e os Sonhos”, “O Ar e os Sonhos”, “A Terra e os Devaneios da Vontade”, “A Poética do Espaço”, textos publicados entre 1938 e 1957.

No campo filosófico, Gaston dedicou-se à Epistemologia e estudou a relatividade do objeto de conhecimento. Sofreu influência da Teoria da Relatividade exposta por Albert Einstein e do processo dialético presente nas filosofias de Hegel e de Marx. Defendeu o caráter específico do pensar e do obrar da ciência moderna. Afirmou a ruptura desta ciência com o senso comum, entendido este, como a produção científica do passado. O trabalho científico é retificador do saber e, como tal, alarga os quadros do conhecimento. O cientista constrói o seu objeto de estudo. No estudo do mundo atômico há que se renunciar à noção de objeto. O cientista destrói as construções passadas antes de construir o seu objeto de estudo. [Modus in rebus: em princípio, a “destruição” é intelectual e para fins metodológicos]. Este movimento dialético constitui a tarefa da nova Epistemologia. O empirismo da ciência velha é superado pelo racionalismo da ciência nova. O vetor epistemológico segue o percurso do racional para o real e de modo nenhum o inverso, isto é, da realidade para o geral como professavam todos os filósofos desde Aristóteles até Bacon. O empirismo é solidário com o conhecimento comum (senso comum) enquanto que o racionalismo é solidário com o conhecimento científico.

O espírito determina o objeto e o objeto determina a experiência do cientista, num movimento dialético. As causas da estagnação e da regressão constituem obstáculos epistemológicos através dos quais podem ser analisadas as condições psicológicas do progresso científico. A realidade é um desses obstáculos. O visível pode enganar. [“O que os olhos não vêem o coração não sente”, diz a poesia popular. O que os olhos vêem pode enganar o intelecto, diz o homem de ciência]. Aquilo que acreditamos saber com clareza ofusca aquilo que devíamos saber. O senso comum é outro obstáculo. O cientista deve superar o seu conhecimento comum, as suas opiniões, os seus preconceitos, as avaliações decorrentes da sua própria posição social e econômica. Gaston cita Bouty: “A ciência é um produto do espírito humano elaborado em conformidade com as leis do nosso pensamento e adaptado ao mundo exterior. Apresenta, portanto, dois aspectos, um subjetivo e outro objetivo, ambos igualmente necessários, porque nos é igualmente impossível mudar o que quer que seja tanto às leis do nosso espírito como às do mundo”.

Cedo ou tarde, o pensamento científico tornar-se-á o tema fundamental da reflexão filosófica. A ciência cria filosofia. A linguagem realista e a linguagem racionalista devem convergir na interpretação do pensamento científico. A prova científica se firma simultaneamente na experiência e no raciocínio. As relações entre a teoria e a experiência são tão estreitas que nenhum método, quer experimental, quer racional, tem a garantia de conservar o seu valor. Se a atividade científica experimenta, terá de raciocinar; se raciocina, terá de experimentar. A experiência científica é uma razão confirmada. A generalização polêmica faz passar do porque ao por que não? Paralogia ao lado da analogia. Gaston cita Nietzsche: “Tudo o que é decisivo só nasce apesar de”. Toda experiência nova nasce apesar da experiência vigente; toda verdade nova nasce apesar da evidência atual. Gaston cita Heisenberg: “Devemos lembrar-nos que a linguagem humana permite formar proposições das quais não se pode tirar conseqüência alguma e que são, na verdade, vazias de substância, embora produzam na nossa imaginação uma espécie de imagem”. [Vulgarmente, ouve-se: fulano falou muito e disse nada]. Gaston cita Jean Perrin: “Todo conceito acaba por perder a sua utilidade, a sua própria significação, quando nos afastamos cada vez mais das condições experimentais em que ele foi formulado”.

Há um valor dilemático nas teorias novas (surgidas a partir do século XIX) como a geometria não-euclidiana, a medida não-arquimediana, a mecânica não-newtoniana, a física não-maxwelliana, a aritmética não-pitagórica. Há também uma epistemologia não-cartesiana que consagra a novidade do espírito científico contemporâneo. [Teoria proposta por Gaston]. Em todas estas negações nada há de automático. As novas teorias não entram logicamente no quadro das antigas por mera conversão. O caso é de extensão. Assim, por exemplo, a geometria não-euclidiana não contradiz a geometria euclidiana, mas funciona como um fator adjunto que permite o acabamento do pensamento geométrico. A astronomia de Newton é um caso particular da pan-astronomia de Einstein, tal como a geometria de Euclides é um caso particular da pangeometria de Lobatchewsky.  As novas teorias projetam uma luz recorrente nas obscuridades do conhecimento incompleto. Gaston cita Lalande: “A ciência não visa apenas à assimilação das coisas entre si, mas também e acima de tudo, a assimilação dos espíritos entre si”. Acima do sujeito, para além do objeto imediato, a ciência moderna baseia-se no projeto. No pensamento científico, a meditação do objeto por parte do sujeito assume sempre a forma do projeto.

A atividade científica realiza conjuntos racionais. Gaston cita Juvet: “No fluxo impetuoso dos fenômenos, na realidade incessantemente movediça, o físico discerne permanências; para fazer a descrição, o seu espírito constrói geometrias, cinemáticas, modelos mecânicos”. O conhecimento abstrato desempenha papel primordial na Física contemporânea. A relatividade nos obriga a incorporar a nossa experiência à formação dos nossos conceitos. Então, o mundo é menos a nossa representação do que a nossa verificação. A idéia simples só é conhecida compositamente pelo seu papel nos compostos em que se integra. Não há fenômeno simples. O fenômeno é sempre um tecido de relações. Não se há de falar do lugar do elétron se antes não houver a experiência de encontrar o elétron. Toda definição de um conceito é funcional. A marca da ambigüidade é trazida pelo real e não pelo conhecimento. Mudando o objeto, muda a forma do pensamento. O cálculo tensorial, quadro psicológico do pensamento relativista, é instrumento matemático que enseja a ciência física contemporânea tal como o microscópio enseja a microbiologia. Sem o domínio desse novo instrumento matemático não há avanço na ciência física. O real é reconhecido como um caso particular do possível. Tal perspectiva é adequada para alargar o pensamento científico. A matemática abre novos caminhos à experiência.

A noção de energia constitui o traço de união mais frutuoso entre a coisa e o movimento. Absurdo supor a matéria em repouso no mundo microfísico, posto que a matéria, sendo energia, só nos envia mensagens através da irradiação. Por intermédio da energia é que se pode ver como é que um movimento se torna uma coisa. A matéria não tem energia; a matéria é energia. [Simetricamente: deus não tem luz, vida e amor; deus é luz, vida e amor].

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