EUROPA (1900 a
2014). Continuação.
Gaston Bachelard (1884 a 1962) professor,
filósofo, poeta francês, nasceu em berço modesto, sustentou seus estudos com o
suor do seu rosto e conquistou diploma universitário. Lecionou na Universidade
de Dijon a partir de 1930 e na Sorbonne a partir de 1940. Foi admitido na
Academia de Ciências Morais e Políticas da França em 1961. Classificava sua
produção intelectual em dois blocos: (1) dos conceitos {ciência e filosofia};
(2) das imagens {poesia}. Do primeiro bloco, entre outras, constam: “O Novo
Espírito Científico”, “A Formação do Espírito Científico”, “A Filosofia do
Não”, “O Racionalismo Aplicado”, “O Materialismo Racional”, livros publicados
entre 1934 e 1952. O objetivo do livro citado em primeiro lugar, dito pelo
próprio autor, foi o de captar o pensamento científico contemporâneo na sua
dialética e assim mostrar a sua novidade essencial. Do segundo bloco, entre outras, constam: “A
Psicanálise do Fogo”, “A Água e os Sonhos”, “O Ar e os Sonhos”, “A Terra e os
Devaneios da Vontade”, “A Poética do Espaço”, textos publicados entre 1938 e
1957.
No campo filosófico, Gaston
dedicou-se à Epistemologia e estudou a relatividade do objeto de conhecimento.
Sofreu influência da Teoria da Relatividade exposta por Albert Einstein e do
processo dialético presente nas filosofias de Hegel e de Marx. Defendeu o
caráter específico do pensar e do obrar da ciência moderna. Afirmou a ruptura
desta ciência com o senso comum, entendido este, como a produção científica do
passado. O trabalho científico é retificador do saber e, como tal, alarga os
quadros do conhecimento. O cientista constrói o seu objeto de estudo. No estudo
do mundo atômico há que se renunciar à noção de objeto. O cientista destrói as
construções passadas antes de construir o seu objeto de estudo. [Modus in rebus: em princípio, a
“destruição” é intelectual e para fins metodológicos]. Este movimento dialético
constitui a tarefa da nova Epistemologia. O empirismo da ciência velha é
superado pelo racionalismo da ciência nova. O vetor epistemológico segue o
percurso do racional para o real e de modo nenhum o inverso, isto é, da
realidade para o geral como professavam todos os filósofos desde Aristóteles
até Bacon. O empirismo é solidário com o conhecimento
comum (senso comum) enquanto que o racionalismo é solidário com o conhecimento científico.
O espírito determina o objeto e o
objeto determina a experiência do cientista, num movimento dialético. As causas
da estagnação e da regressão constituem obstáculos epistemológicos através dos
quais podem ser analisadas as condições psicológicas do progresso científico. A
realidade é um desses obstáculos. O visível pode enganar. [“O que os olhos não
vêem o coração não sente”, diz a poesia popular. O que os olhos vêem pode
enganar o intelecto, diz o homem de ciência]. Aquilo que acreditamos saber com
clareza ofusca aquilo que devíamos saber. O senso comum é outro obstáculo. O
cientista deve superar o seu conhecimento comum, as suas opiniões, os seus
preconceitos, as avaliações decorrentes da sua própria posição social e
econômica. Gaston cita Bouty: “A ciência
é um produto do espírito humano elaborado em conformidade com as leis do nosso
pensamento e adaptado ao mundo exterior. Apresenta, portanto, dois aspectos, um
subjetivo e outro objetivo, ambos igualmente necessários, porque nos é
igualmente impossível mudar o que quer que seja tanto às leis do nosso espírito
como às do mundo”.
Cedo ou tarde, o pensamento
científico tornar-se-á o tema fundamental da reflexão filosófica. A ciência
cria filosofia. A linguagem realista e a linguagem racionalista devem convergir
na interpretação do pensamento científico. A prova científica se firma
simultaneamente na experiência e no raciocínio. As relações entre a teoria e a
experiência são tão estreitas que nenhum método, quer experimental, quer
racional, tem a garantia de conservar o seu valor. Se a atividade científica
experimenta, terá de raciocinar; se raciocina, terá de experimentar. A
experiência científica é uma razão confirmada. A generalização polêmica faz
passar do porque ao por que não? Paralogia ao lado da
analogia. Gaston cita Nietzsche: “Tudo o que é decisivo só nasce apesar de”. Toda experiência nova nasce
apesar da experiência vigente; toda verdade nova nasce apesar da evidência
atual. Gaston cita Heisenberg: “Devemos lembrar-nos que a linguagem humana
permite formar proposições das quais não se pode tirar conseqüência alguma e
que são, na verdade, vazias de substância, embora produzam na nossa imaginação
uma espécie de imagem”. [Vulgarmente, ouve-se: fulano falou muito e disse nada]. Gaston cita Jean Perrin: “Todo
conceito acaba por perder a sua utilidade, a sua própria significação, quando
nos afastamos cada vez mais das condições experimentais em que ele foi
formulado”.
Há um valor dilemático nas
teorias novas (surgidas a partir do século XIX) como a geometria
não-euclidiana, a medida não-arquimediana, a mecânica não-newtoniana, a física
não-maxwelliana, a aritmética não-pitagórica. Há também uma epistemologia
não-cartesiana que consagra a novidade do espírito científico contemporâneo.
[Teoria proposta por Gaston]. Em todas estas negações nada há de automático. As
novas teorias não entram logicamente no quadro das antigas por mera conversão.
O caso é de extensão. Assim, por exemplo, a geometria não-euclidiana não
contradiz a geometria euclidiana, mas funciona como um fator adjunto que
permite o acabamento do pensamento geométrico. A astronomia de Newton é um caso
particular da pan-astronomia de Einstein, tal como a geometria de Euclides é um
caso particular da pangeometria de Lobatchewsky. As novas teorias projetam uma luz recorrente
nas obscuridades do conhecimento incompleto. Gaston cita Lalande: “A ciência
não visa apenas à assimilação das coisas entre si, mas também e acima de tudo,
a assimilação dos espíritos entre si”. Acima do sujeito, para além do objeto
imediato, a ciência moderna baseia-se no projeto. No pensamento científico, a
meditação do objeto por parte do sujeito assume sempre a forma do projeto.
A atividade científica realiza
conjuntos racionais. Gaston cita Juvet: “No fluxo impetuoso dos fenômenos, na
realidade incessantemente movediça, o físico discerne permanências; para fazer
a descrição, o seu espírito constrói geometrias, cinemáticas, modelos mecânicos”.
O conhecimento abstrato desempenha papel primordial na Física contemporânea. A
relatividade nos obriga a incorporar a nossa experiência à formação dos nossos
conceitos. Então, o mundo é menos a nossa representação do que a nossa
verificação. A idéia simples só é conhecida compositamente pelo seu papel nos
compostos em que se integra. Não há fenômeno simples. O fenômeno é sempre um
tecido de relações. Não se há de falar do lugar do elétron se antes não houver
a experiência de encontrar o elétron. Toda definição de um conceito é
funcional. A marca da ambigüidade é trazida pelo real e não pelo conhecimento.
Mudando o objeto, muda a forma do pensamento. O cálculo tensorial, quadro psicológico do pensamento relativista, é
instrumento matemático que enseja a ciência física contemporânea tal como o
microscópio enseja a microbiologia. Sem o domínio desse novo instrumento
matemático não há avanço na ciência física. O real é reconhecido como um caso
particular do possível. Tal perspectiva é adequada para alargar o pensamento
científico. A matemática abre novos caminhos à experiência.
A noção de energia constitui o traço de união mais frutuoso entre a coisa e o
movimento. Absurdo supor a matéria em repouso no mundo microfísico, posto que a
matéria, sendo energia, só nos envia mensagens através da irradiação. Por
intermédio da energia é que se pode ver como é que um movimento se torna uma
coisa. A matéria não tem energia; a matéria é energia.
[Simetricamente: deus não tem luz, vida e amor; deus é luz, vida
e amor].
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