O processo de prestação de contas da campanha
eleitoral da candidata Dilma Vana Rousseff seguia seus trâmites no Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) até que o relator, ministro oriundo da advocacia,
afastou-se do cargo em virtude da exaustão do biênio para o qual fora nomeado.
Esperava-se que o ministro substituto, também da classe dos advogados,
assumisse a direção do processo. O presidente do tribunal resolveu redistribuir
o processo para outro ministro. O sorteado foi Gilmar Mendes. A opinião popular
democrática reagiu, principalmente através da rede de computadores, por ver no
ato do presidente o desenho de um golpe de Estado.
A distribuição e redistribuição de processos nos casos
previstos em lei competem ao presidente do tribunal. Qualquer irregularidade no
exercício dessa competência pode ser alvo de impugnação cujo exame cabe ao
tribunal pleno. “A distribuição poderá
ser fiscalizada pela parte ou por seu procurador”, diz o cânon processual.
No caso em tela, evidenciava-se a malícia do presidente. O Ministério Público
(MP) e o advogado da candidata se insurgiram contra a conduta do presidente.
Antes de o incidente ser levado ao conhecimento e decisão do plenário, os
requerentes desistiram. O procurador da república (MP) e o advogado não são levianos
e nem irresponsáveis; não teriam desistido dos seus requerimentos se não lhes
fosse assegurada imparcialidade no julgamento das contas. Isto indica a
provável celebração de um acordo de cavalheiros entre eles e os ministros.
Na abertura da sessão de julgamento (10/12/2014) o
presidente do tribunal, ministro Dias Toffoli, homologou a desistência dos requerimentos
que impugnavam a redistribuição do processo de prestação de contas. O ministro protestou
contra o que chamou de insinuações.
Leu e “interpretou” normas regimentais na tentativa de arredar as suspeitas.
Nenhum juiz
prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a
requerer, diz
o cânon processual. Se a parte requer e depois desiste do requerimento
tempestivamente, não haverá mais o que tutelar; o ofício jurisdicional cessa no
que concerne ao objeto do requerimento. A desistência referente à impugnação da
redistribuição esvaziou a postulação; não mais havendo postulação, não há o que
julgar. Cabe ao magistrado tão só homologá-la. Entretanto, apesar de extinta a
impugnação, o presidente do tribunal insistiu em ler o seu voto. Contrariou a
norma processual e o bom senso. Tentou justificar a manobra que visava a impedir
o ministro substituto de assumir a relatoria do processo.
O TSE dispõe de 14 juízes nomeados pelo
Presidente da República dos quais 6 são ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF), 4 são ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e 4
são advogados. Dessa totalidade, 7 são juízes titulares e 7 são
juízes substitutos. Na ausência do titular, o respectivo substituto assume a
direção dos seus processos. Cada juiz titular oriundo do STF é substituído pelo
juiz substituto da mesma origem (STF); cada juiz titular oriundo do STJ é
substituído pelo juiz substituto da mesma origem (STJ); cada juiz titular
oriundo da advocacia é substituído pelo juiz substituto da mesma classe. Vagou
o cargo de juiz titular oriundo da advocacia. A direção dos processos que
estavam sob seus cuidados caberia ao juiz substituto oriundo da classe dos
advogados. Esta é a lógica do sistema. Há juiz
substituto permanente para substituir
no cargo o titular que se afasta. Isto evita a interrupção dos trâmites
processuais e a redistribuição dos processos. Desse modo, atende-se aos
princípios da celeridade processual e do juiz natural.
O ministro Gilmar Mendes pediu a palavra. Agressivo, nervoso
e destemperado, ele defecou pela boca. Desqualificou os blogs informadores da manobra que impediria a posse da candidata
reeleita. Os “blogs sujos” a que ele se referiu, certamente são aqueles que
mostram a outra face da Lua. Disse que o jornalista denunciante do golpe agia por
dinheiro e por este motivo fora desligado da Folha de São Paulo. O ministro preocupou-se com o dinheiro quando o
essencial era saber se o jornalista dissera a verdade. O procurador da
república e o advogado que haviam impugnado a redistribuição foram chamados de burros por ignorarem as regras
regimentais. O ministro referiu-se também a uma burrice generalizada no país. Exigiu respeito. Esqueceu que a sua
conduta como juiz togado desfavorece o tratamento respeitoso, como bem frisou,
tempos atrás, o ministro Joaquim Barbosa, em plena e pública sessão do STF. A
opinião popular também não lhe é favorável, principalmente após a sua tendenciosa
atuação nos casos do Daniel Dantas e do médico estuprador.
O advogado Arnaldo Versiani, que já foi ministro classista
no TSE, promoveu de forma clara e metódica, em pouco mais de dez minutos, a
sustentação oral. Apontou erros, inclusive de soma, cometidos pela assessoria
do tribunal, nas planilhas e pareceres, tais como: (1) contar valores em dobro;
(2) exigir nota fiscal em demonstrativo de certo mês quando o efetivo pagamento
só ocorreu no mês seguinte; (3) qualificar de irregularidade o que era simples
impropriedade. O advogado pleiteou a aprovação das contas. O representante do
MP, procurador da república, em pouco mais de cinco minutos, reportou-se ao
parecer escrito da procuradoria, ressaltou alguns erros no trabalho da
assessoria do tribunal e opinou pela aprovação das contas. O procurador
encerrou a sua fala reafirmando a sua independência funcional, o seu
posicionamento como custos legis e repudiando as ofensas dirigidas contra a
sua corporação. Ao votarem, os ministros foram sucintos, salvo o relator. Todos
votaram pela aprovação das contas; alguns não aderiram às proposições do
relator.
Do que se viu e ouviu na sessão, conclui-se que faltou
isenção aos assessores do tribunal. O incenso que sobre eles fumigou o
presidente não afasta esta realidade: é possível trabalhar intensamente e varar
madrugadas com bons e maus propósitos. Prolixidade e substancialidade não se
confundem. Assim, também, não se há de confundir o trabalho do perito (investigar,
espiolhar, reunir dados e emitir parecer ou laudo) com o trabalho do juiz (fixar
os limites da lide, examinar a prova e julgar). O relator gastou mais de duas
horas para expor o seu voto quando menos de meia hora bastava para solucionar
um caso em que prevaleciam números e não idéias. Abusou da paciência do
público. Dicção ruim. Repetições enjoativas. Modulação na voz, do pico à
planura, em prejuízo da nitidez. Ocupou grande parte do tempo espiolhando peças
da assessoria do tribunal e da comissão composta de funcionários do Banco Central,
do Tribunal de Contas da União e da Receita Federal, o que revela deficiência
técnica na arte de julgar. O relator quis passar ao público a imagem de juiz meticuloso,
imparcial, a fim de camuflar argumentação capciosa. Aparentava o aborrecimento
de quem está sendo contrariado, como se os demais ministros houvessem dado sinal
antecipado de que não apoiariam manobras. Para compensar a frustração, o
relator usou circunlóquios. Nesse mecanismo compensatório, ele propôs a remessa
das contas da presidente reeleita aos órgãos fiscalizadores visando a um exame
mais demorado e votou pela aprovação com ressalvas, contentando parcialmente a assessoria
do tribunal, cujo parecer era pela rejeição das contas.
Antes de encerrar a sessão, o presidente: (1) prodigalizou
elogios a Gilmar Mendes, o que seria desnecessário se o elogiado tivesse as
virtudes que lhe foram atribuídas; (2) louvou o trabalho dos assessores, o que
seria compreensível se houvesse ausência de erros e se não houvesse suspeita de
parcialidade; (3) comentou o exagero dos gastos nas campanhas eleitorais e a
necessidade de estabelecer limites, sendo que na presidencial deste ano, a campanha
da candidata do PT atingiu a cifra de 350 milhões de reais e a do candidato do
PSDB, a cifra de 290 milhões de reais; (4) citou países em que os gastos são
menores.
O golpe de Estado pela via judiciária ficou no limbo.
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