domingo, 14 de dezembro de 2014

O GOLPE IV



O processo de prestação de contas da campanha eleitoral da candidata Dilma Vana Rousseff seguia seus trâmites no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) até que o relator, ministro oriundo da advocacia, afastou-se do cargo em virtude da exaustão do biênio para o qual fora nomeado. Esperava-se que o ministro substituto, também da classe dos advogados, assumisse a direção do processo. O presidente do tribunal resolveu redistribuir o processo para outro ministro. O sorteado foi Gilmar Mendes. A opinião popular democrática reagiu, principalmente através da rede de computadores, por ver no ato do presidente o desenho de um golpe de Estado.

A distribuição e redistribuição de processos nos casos previstos em lei competem ao presidente do tribunal. Qualquer irregularidade no exercício dessa competência pode ser alvo de impugnação cujo exame cabe ao tribunal pleno. “A distribuição poderá ser fiscalizada pela parte ou por seu procurador”, diz o cânon processual. No caso em tela, evidenciava-se a malícia do presidente. O Ministério Público (MP) e o advogado da candidata se insurgiram contra a conduta do presidente. Antes de o incidente ser levado ao conhecimento e decisão do plenário, os requerentes desistiram. O procurador da república (MP) e o advogado não são levianos e nem irresponsáveis; não teriam desistido dos seus requerimentos se não lhes fosse assegurada imparcialidade no julgamento das contas. Isto indica a provável celebração de um acordo de cavalheiros entre eles e os ministros.

Na abertura da sessão de julgamento (10/12/2014) o presidente do tribunal, ministro Dias Toffoli, homologou a desistência dos requerimentos que impugnavam a redistribuição do processo de prestação de contas. O ministro protestou contra o que chamou de insinuações. Leu e “interpretou” normas regimentais na tentativa de arredar as suspeitas.

Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, diz o cânon processual. Se a parte requer e depois desiste do requerimento tempestivamente, não haverá mais o que tutelar; o ofício jurisdicional cessa no que concerne ao objeto do requerimento. A desistência referente à impugnação da redistribuição esvaziou a postulação; não mais havendo postulação, não há o que julgar. Cabe ao magistrado tão só homologá-la. Entretanto, apesar de extinta a impugnação, o presidente do tribunal insistiu em ler o seu voto. Contrariou a norma processual e o bom senso. Tentou justificar a manobra que visava a impedir o ministro substituto de assumir a relatoria do processo.

O TSE dispõe de 14 juízes nomeados pelo Presidente da República dos quais 6 são ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), 4 são ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e 4 são advogados. Dessa totalidade, 7 são juízes titulares e 7 são juízes substitutos. Na ausência do titular, o respectivo substituto assume a direção dos seus processos. Cada juiz titular oriundo do STF é substituído pelo juiz substituto da mesma origem (STF); cada juiz titular oriundo do STJ é substituído pelo juiz substituto da mesma origem (STJ); cada juiz titular oriundo da advocacia é substituído pelo juiz substituto da mesma classe. Vagou o cargo de juiz titular oriundo da advocacia. A direção dos processos que estavam sob seus cuidados caberia ao juiz substituto oriundo da classe dos advogados. Esta é a lógica do sistema. Há juiz substituto permanente para substituir no cargo o titular que se afasta. Isto evita a interrupção dos trâmites processuais e a redistribuição dos processos. Desse modo, atende-se aos princípios da celeridade processual e do juiz natural.

O ministro Gilmar Mendes pediu a palavra. Agressivo, nervoso e destemperado, ele defecou pela boca. Desqualificou os blogs informadores da manobra que impediria a posse da candidata reeleita. Os “blogs sujos” a que ele se referiu, certamente são aqueles que mostram a outra face da Lua. Disse que o jornalista denunciante do golpe agia por dinheiro e por este motivo fora desligado da Folha de São Paulo. O ministro preocupou-se com o dinheiro quando o essencial era saber se o jornalista dissera a verdade. O procurador da república e o advogado que haviam impugnado a redistribuição foram chamados de burros por ignorarem as regras regimentais. O ministro referiu-se também a uma burrice generalizada no país. Exigiu respeito. Esqueceu que a sua conduta como juiz togado desfavorece o tratamento respeitoso, como bem frisou, tempos atrás, o ministro Joaquim Barbosa, em plena e pública sessão do STF. A opinião popular também não lhe é favorável, principalmente após a sua tendenciosa atuação nos casos do Daniel Dantas e do médico estuprador.  

O advogado Arnaldo Versiani, que já foi ministro classista no TSE, promoveu de forma clara e metódica, em pouco mais de dez minutos, a sustentação oral. Apontou erros, inclusive de soma, cometidos pela assessoria do tribunal, nas planilhas e pareceres, tais como: (1) contar valores em dobro; (2) exigir nota fiscal em demonstrativo de certo mês quando o efetivo pagamento só ocorreu no mês seguinte; (3) qualificar de irregularidade o que era simples impropriedade. O advogado pleiteou a aprovação das contas. O representante do MP, procurador da república, em pouco mais de cinco minutos, reportou-se ao parecer escrito da procuradoria, ressaltou alguns erros no trabalho da assessoria do tribunal e opinou pela aprovação das contas. O procurador encerrou a sua fala reafirmando a sua independência funcional, o seu posicionamento como custos legis e repudiando as ofensas dirigidas contra a sua corporação. Ao votarem, os ministros foram sucintos, salvo o relator. Todos votaram pela aprovação das contas; alguns não aderiram às proposições do relator.

Do que se viu e ouviu na sessão, conclui-se que faltou isenção aos assessores do tribunal. O incenso que sobre eles fumigou o presidente não afasta esta realidade: é possível trabalhar intensamente e varar madrugadas com bons e maus propósitos. Prolixidade e substancialidade não se confundem. Assim, também, não se há de confundir o trabalho do perito (investigar, espiolhar, reunir dados e emitir parecer ou laudo) com o trabalho do juiz (fixar os limites da lide, examinar a prova e julgar). O relator gastou mais de duas horas para expor o seu voto quando menos de meia hora bastava para solucionar um caso em que prevaleciam números e não idéias. Abusou da paciência do público. Dicção ruim. Repetições enjoativas. Modulação na voz, do pico à planura, em prejuízo da nitidez. Ocupou grande parte do tempo espiolhando peças da assessoria do tribunal e da comissão composta de funcionários do Banco Central, do Tribunal de Contas da União e da Receita Federal, o que revela deficiência técnica na arte de julgar. O relator quis passar ao público a imagem de juiz meticuloso, imparcial, a fim de camuflar argumentação capciosa. Aparentava o aborrecimento de quem está sendo contrariado, como se os demais ministros houvessem dado sinal antecipado de que não apoiariam manobras. Para compensar a frustração, o relator usou circunlóquios. Nesse mecanismo compensatório, ele propôs a remessa das contas da presidente reeleita aos órgãos fiscalizadores visando a um exame mais demorado e votou pela aprovação com ressalvas, contentando parcialmente a assessoria do tribunal, cujo parecer era pela rejeição das contas.  

Antes de encerrar a sessão, o presidente: (1) prodigalizou elogios a Gilmar Mendes, o que seria desnecessário se o elogiado tivesse as virtudes que lhe foram atribuídas; (2) louvou o trabalho dos assessores, o que seria compreensível se houvesse ausência de erros e se não houvesse suspeita de parcialidade; (3) comentou o exagero dos gastos nas campanhas eleitorais e a necessidade de estabelecer limites, sendo que na presidencial deste ano, a campanha da candidata do PT atingiu a cifra de 350 milhões de reais e a do candidato do PSDB, a cifra de 290 milhões de reais; (4) citou países em que os gastos são menores.

O golpe de Estado pela via judiciária ficou no limbo.

Nenhum comentário: