Através de emissoras de rádio, no mês de novembro de
2014, o jornalista Alexandria Garcia, serviçal da empresa O Globo, elogia a
polícia e se refere às eleições presidenciais de 2014 de modo desfavorável à vencedora.
Antes, ele havia elogiado os militares em texto que comentei no artigo “O
Golpe”, publicado neste blog em 14.04.2014.
A linha dos encômios se inclui nos atos preparatórios de um golpe de Estado,
como se depreende da experiência republicana brasileira. Encerrado o processo
eleitoral com a vitória dos democratas e a derrota dos aristocratas, arma-se o
circo. O tumulto na sessão do Congresso Nacional do dia 02/12/2014, foi a
imagem deprimente do picadeiro e o exemplo mais loquaz da perfídia.
Na transmissão radiofônica acima aludida, o bajulador jornalista
tece loa à força pública provavelmente para obter favores pessoais e/ou apoio ao
golpe dos vencidos no pleito presidencial. A lisonja à força policial vem
carregada de oportunismo e de ocultas intenções. O povo sabe que há policiais
honestos, cumpridores dos seus deveres, defensores da lei, da paz social, da integridade
física e do patrimônio das pessoas. O povo sabe também que prisões ilegais, flagrantes
forjados, associação a delinqüentes, seqüestros, torturas, assassinatos, violência
contra jovens e adultos de ambos os sexos, são práticas policiais do passado e
do presente, fatos notórios que constam de registros idôneos.
O esperto jornalista cita o resultado da votação de
modo tendencioso a fim de reduzir o tamanho da vitória da adversária que obteve
mais de 54 milhões de votos e não 53 milhões como ele diz. O concorrente obteve
50 milhões de votos. Vitória com diferença superior a 4 (quatro) milhões de votos não
pode ser considerada “apertada” como pretendem os vencidos e o seu porta-voz. Vitória
folgada, isto sim. Quanto aos 30 milhões de eleitores que deixaram de votar, a
comparação com Pilatos feita pelo jornalista é inadequada. Esses eleitores não “lavaram
as mãos como Pilatos” e sim evitaram mergulhar as mãos na lama. Desde que a
roubalheira foi comprovada, esses 30 milhões de eleitores compreenderam que
votando em qualquer dos candidatos estariam colocando bandidos do colarinho
branco no governo. Sentir-se-iam cúmplices, caso votassem. De forma consciente
e responsável, esses eleitores se recusaram a participar da bandalheira. Portanto,
a pecha de covardia que lhes foi lançada pelo jornalista é inconsistente.
Covardes são aquelas pessoas iguais ao jornalista que: (1) negam o potencial
humano para atos heróicos e para condutas éticas; (2) fogem da luz, esgueiram-se
nas trevas e agem sorrateiramente.
No Brasil, há uma vergonhosa tradição que esses 30
milhões de eleitores resolveram não tolerar: a desonestidade dos agentes públicos.
Ilícitos penais praticados por esses agentes e os danos decorrentes eram
absorvidos pela administração pública desde, pelo menos, a construção de
Brasília. Os agentes ficavam impunes. O “mensalão” veio à tona. A impunidade
começa a declinar. Os 104 milhões de eleitores que votaram em Dilma e em Aécio devem
ter seus motivos para compactuar com a sujeira. Talvez, entre esses eleitores, haja
muitos que ainda acreditam na honestidade daquela gente que integra as duas
quadrilhas rivais. Outros votam por considerarem a corrupção normal e
corriqueira (“sempre foi assim”). Alguns votam por temor às penalidades da lei.
Pensam estar obrigados a escolher um dos candidatos. Ignoram que estão
obrigados tão só a comparecer ao local de votação, mas que, na cabine, eles são
livres para escolher ou não escolher. Com certeza, entre os 104 milhões que
votaram incluem-se: (1) os membros das duas quadrilhas; (2) outras pessoas que:
(i) se beneficiam da roubalheira; (ii) receberam algum tipo de recompensa;
(iii) nutrem a esperança de receber o que lhes foi prometido.
Inconformados com a derrota, os aristocratas tentam o
golpe a ser executado pela força ou por astúcia. Atrairão para si o aparelho de
segurança nacional seduzindo generais, almirantes e brigadeiros. A ladainha
será a de sempre: combater o comunismo que está tomando conta do país e
ameaçando a família brasileira. Tropas e tanques nas ruas, ocupação de prédios,
cassação de mandatos, fechamento do Congresso, exílios, prisões e mortes, tudo
para “salvar” a nação. Protegidos pelos militares, os aristocratas corruptos assumem
o governo e “salvam” a nação. Passam a “administrar” o tesouro nacional, o petróleo,
os minérios, as licitações, os negócios em geral. Mostrarão
a “necessidade” de privatizar o patrimônio público, acabar com os projetos
sociais e reduzir os direitos dos trabalhadores.
O golpe também pode ser desferido astuciosamente por via
judicial ou legislativa. Exemplo da via judicial foi dado no artigo “Posse
Presidencial” publicado neste blog em
21.11.2014, sobre golpe supostamente arquitetado por dois ministros do Tribunal Superior Eleitoral. O provimento de impugnação do mandato da vencedora do
pleito presidencial abriria vaga para o vencido assumir o governo. O tribunal
daria interpretação capciosa aos fatos e à lei e decretaria a perda do mandato.
A esperteza desviante no processo judicial já foi objeto de debate no passado.
Ao julgarem os casos, os magistrados deviam considerar objetivamente os fatos,
abster-se de qualquer interpretação e aplicar a lei na sua literalidade. In claris cessat interpretatio. Vingou a
tese oposta: tanto o fato como a norma, ainda que aparentemente claros,
necessitam de interpretação. Tese que se mostrou válida na Microfísica, onde o senso comum, a intuição sensível, a certeza dos
esquemas cedem lugar ao questionamento, à incerteza e às retificações
conseqüentes no plano empírico e teórico. Aplicada ao processo judicial, essa
tese enseja o engodo, ginásticas cerebrinas, fuga ao justo e à realidade
objetiva. “As coisas mudam e o direito deve se adaptar às mudanças” é a
justificativa recorrente, sem que se leve em conta a velocidade, o caráter e o
valor da mudança em relação à estabilidade presente e futura. Certeza e segurança, princípios
jurídicos fundamentais, são negligenciados. Prevalecem o oportunismo e a sagacidade
malandra. O critério de utilidade substitui o critério de justiça. A emergência
submerge a decência. Símbolo da imparcialidade e da austeridade, a toga é
vilipendiada por juízes de indecorosa conduta.
Quanto à via
legislativa, pode ser imediata ou mediata. Através da via legislativa imediata, a Câmara dos Deputados autoriza a
instauração de processo contra a presidente reeleita; o Senado Federal a
condena por crime de responsabilidade. A materialidade do crime pode ser
forjada segundo a conveniência e a direção do vento, como fizeram com o
presidente Collor. A presidente reeleita perde o cargo e o derrotado na eleição
assume o governo.
A via
legislativa mediata seria utilizada para assegurar a vitória dos atuais
derrotados, nas próximas eleições. Emenda à Constituição alteraria o §1º, do
artigo 14, que passaria a ter a seguinte redação: “O alistamento eleitoral e o voto são facultativos. Somente poderá
alistar-se como eleitor o brasileiro cuja renda individual mensal for igual ou
superior a dez salários mínimos, que tenha completado o segundo grau escolar e que
seja proprietário de bem imóvel”. No Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias acrescentar-se-ia novo artigo: “Dentro de 30 dias da promulgação da EC nº. 000/00 que alterou a redação
do §1º, do artigo 14, da Constituição, o Tribunal Superior Eleitoral
providenciará novo alistamento. Ficam sem efeito todos os títulos eleitorais
expedidos até a presente data”.
A frase inicial do dispositivo modificado suaviza a que
se lhe segue. Tornar o alistamento e o voto facultativos é progredir no direito
político. O alistamento e o voto serão direito
do cidadão e não mais obrigação. O descumprimento
da obrigação de votar acarreta
sanções, o que não acontece com o direito
de votar. A maldade vem na frase seguinte. Tornar o voto privilégio de pequena
parcela do povo é regredir no direito político. “Se quiserem votar, fiquem
ricos”, dizia Guizot, primeiro-ministro no governo do rei francês Luís Felipe. Certamente,
esta é a divisa preferida dos derrotados no pleito presidencial de 2014.
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