quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

FILOSOFIA XIV - 17



EUROPA (1800 a 1900). Continuação.

Ao expor o seu modo de encarar as relações entre o cognoscente (sujeito que conhece) e o cognoscido (objeto do conhecimento), Kant provocou uma revolução semelhante à de Copérnico, como ele mesmo compara. Antes dele, entendia-se que a faculdade de conhecer regulava-se pelo objeto do conhecimento. Com ele, passou-se a entender que o objeto do conhecimento é que se regula pela faculdade de conhecer. A função do filósofo é investigar a possível existência de princípios a priori que seriam responsáveis pela síntese dos dados empíricos. Há princípios a priori da sensibilidade e princípios a priori do entendimento. Kant trata da Estética como teoria da sensibilidade e não como teoria do belo. Por estética transcendental, ele entende a maior preocupação com o modo de conhecer os objetos do que com os próprios objetos, na medida em que esse conhecimento deve ser possível a priori. Quanto aos princípios “a priori” do entendimento, referem-se à estrutura do conhecimento na Física. Na dialética transcendental, Kant expõe as categorias do entendimento. Cuida da aplicação que a razão pode fazer dessas categorias. A sensibilidade constitui-se de: (1) elemento material ou receptivo, que consiste nas impressões dos objetos externos no sujeito; (2) elemento formal ou ativo, que consiste na ordem em que as impressões são colocadas.

Há duas formas puras da intuição sensível como princípios do conhecimento a priori: o espaço e o tempo. O espaço não é um conceito discursivo, mas sim uma intuição pura. Trata-se de uma representação a priori necessária que subjaz a todas as intuições externas. Essa representação originária de espaço é intuição a priori e não conceito. Espaço de modo algum representa uma propriedade de coisas em si, nem a estas em suas recíprocas relações. Espaço é a forma de todos os fenômenos dos sentidos externos. Aqui reside a sua realidade empírica. Como algo subjacente às coisas em si mesmas, fora da sua condição de possibilidade de toda experiência, o espaço é mera idealidade transcendental. Sob este ângulo, o espaço é nada.

O tempo, também, não é um conceito discursivo, empírico, abstraído de qualquer experiência, mas sim uma representação necessária subjacente às intuições. No tempo, os fenômenos podem ocorrer de modo simultâneo ou sucessivo. O tempo nada mais é do que a forma do sentido interno, isto é, do intuir a nós mesmos e ao nosso estado interno. O tempo é a condição formal a priori de todos os fenômenos em geral; a sua realidade é empírica, isto é, tem validade objetiva relativa aos objetos captados por nossos sentidos. O tempo é mera idealidade transcendental quando se abstrai das condições subjetivas da intuição sensível, não podendo ser incluído como subsistindo e nem como inerente aos objetos em si mesmos (sem a sua relação com a nossa intuição). Sob este ângulo, o tempo é nada.

Categorias do entendimento são conceitos puros que se referem, a priori, aos objetos da intuição em geral. Do elenco de todos os conceitos puros (categorias), originários da síntese que, a priori, o entendimento contém em si, constam: (1) quantidade: unidade, pluralidade, totalidade; (2) qualidade: realidade, negação, limitação; (3) relação: (I) inerência e subsistência (substância e acidente); (II) causalidade e dependência (causa e efeito); (III) comunidade (ação recíproca entre agente e paciente); (4) modalidade: (I) possibilidade e impossibilidade; (II) existência e não-existência; (III) necessidade e contingência. A procura desses conceitos fundamentais constituiu um plano perspicaz de Aristóteles. Desses conceitos originários e primitivos do entendimento podem ser derivados outros conceitos igualmente puros, embora subalternos, tais como: (1) da causalidade são predicáveis: força, ação, paixão; (2) da comunidade são predicáveis: presença, ausência, resistência; (3) da modalidade são predicáveis: nascimento, perecimento, mudança.

A teoria do conhecimento pode ser assim resumida: todo conhecimento é constituído por sínteses dos dados ordenados pela intuição sensível espaço-temporal mediante as categorias apriorísticas do entendimento. Por conseguinte, impossível conhecer o noumenon (as coisas em si mesmas), mas tão somente o phaenoumenon (as aparências), ou seja, os objetos tais como resultam das sínteses apriorísticas do próprio ato de conhecer. Pelo conhecimento das coisas em si mesmas (noumenon) a Metafísica apresenta respostas últimas e definitivas para todos os problemas. Tais respostas resultam de um emprego do entendimento humano fora dos limites racionais; visa ao absoluto e trata de objetos que não são apreendidos empiricamente. Entre os conhecimentos a priori (acima de qualquer experiência sensível) podem ser mencionados: deus, liberdade, imortalidade, necessidade, identidade. Tais são os objetos da Metafísica, ciência que procede dogmaticamente, sem indagar se a razão é capaz ou incapaz de tal conhecimento. “Quando se está acima da esfera da experiência, então se está seguro de não ser contestado pela experiência”.

A ocupação maior da razão consiste em desmembramentos dos conceitos que já temos dos objetos. [A independência do pensamento em relação à experiência traz certa comodidade ao sujeito, livre do incômodo de buscar provas nos fatos. Essa licença pode conduzir a proposições absurdas, a ficções, a manobras para escapar das contradições. O mesmo ocorre na província da fé, onde o círculo pode ser definido com figura quadrada. Nessa província vale tudo, menos a entrada da razão. O pássaro no seu vôo encontra a resistência do ar. Melhor voaria sem essa resistência, como Fernão Capelo Gaivota ao alcançar a liberdade no espaço infinito. A razão é um entrave para a fé. A lei natural da multiplicação verifica-se, também, no pensamento, quando este avança mediante o desdobramento de idéias, desliga-se do campo da experiência e rompe todos os limites, como aconteceu com Platão].

Pensar é diferente de conhecer, diz Kant. O conhecimento requer dois elementos: (1) o conceito pelo qual em geral um objeto é pensado; (2) a intuição pela qual o objeto é dado. A faculdade de representar um objeto sem a sua presença na intuição denomina-se imaginação. A imaginação pode ser: (1) produtiva, quando resulta da espontaneidade; (2) reprodutiva, quando resulta da associação, síntese subordinada a leis empíricas. A Lógica Geral está construída sobre um plano que concorda com a divisão das faculdades superiores do conhecimento, a saber: entendimento {idéia}, capacidade de julgar {juízo} e razão {raciocínio}. Sob o ângulo analítico, a Lógica Geral trata de conceitos, juízos e inferências, conforme a ordem e as funções daquelas faculdades. A Lógica Transcendental trata do uso transcendental da razão. Por isso mesmo, tal uso não é válido objetivamente e não pertence à lógica da verdade e sim à lógica da ilusão. A capacidade de servir-se corretamente das regras lógicas depende do sujeito exclusivamente. Um legislador, chefe de governo ou juiz, pode conhecer leis e ser professor, mas pode falhar na aplicação do seu conhecimento ao caso concreto por deficiência na capacidade natural de julgar.

A Lógica Transcendental serve para prevenir os passos em falso da capacidade de julgar. Aos conceitos sensíveis puros não subjazem imagens dos objetos, mas tão somente esquemas. O esquema do triângulo, por exemplo, não pode existir em lugar algum, salvo no pensamento. É no conjunto de toda a experiência possível que residem todos os nossos conhecimentos e é na referência universal a tal experiência que consiste a verdade transcendental que precede e torna possível toda a verdade empírica. A explicação da possibilidade de juízos sintéticos é a tarefa mais importante da Lógica Transcendental, que examina as condições e o âmbito de sua validade. A possibilidade da experiência é o que dá realidade objetiva a todos os nossos conhecimentos a priori. O princípio supremo de todos os juízos sintéticos é assim enunciado: todo objeto está sob as condições necessárias da unidade sintética do múltiplo da intuição numa experiência possível.

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