EUROPA (1800
a 1900). Continuação.
Ao
expor o seu modo de encarar as relações entre o cognoscente (sujeito que conhece) e o cognoscido (objeto do conhecimento), Kant provocou uma revolução semelhante
à de Copérnico, como ele mesmo compara. Antes dele, entendia-se que a faculdade
de conhecer regulava-se pelo objeto do conhecimento. Com ele, passou-se a
entender que o objeto do conhecimento é que se regula pela faculdade de
conhecer. A função do filósofo é investigar a possível existência de princípios
a priori que seriam responsáveis pela síntese dos dados empíricos. Há
princípios a priori da sensibilidade
e princípios a priori do
entendimento. Kant trata da Estética
como teoria da sensibilidade e não como teoria do belo. Por estética transcendental, ele
entende a maior preocupação com o modo de conhecer os objetos do que com
os próprios objetos, na medida em que esse conhecimento deve ser possível a
priori. Quanto aos princípios “a priori” do entendimento, referem-se à
estrutura do conhecimento na Física. Na dialética transcendental, Kant expõe as
categorias do entendimento. Cuida da aplicação que a razão pode fazer dessas
categorias. A sensibilidade constitui-se de: (1) elemento material ou
receptivo, que consiste nas impressões dos objetos externos no sujeito; (2)
elemento formal ou ativo, que consiste na ordem em que as impressões são
colocadas.
Há
duas formas puras da intuição
sensível como princípios do conhecimento a priori: o espaço e o tempo. O espaço não é um conceito discursivo, mas sim uma intuição pura. Trata-se de uma representação a priori
necessária que subjaz a todas as intuições externas. Essa representação
originária de espaço é intuição a priori e não conceito. Espaço de modo algum representa uma
propriedade de coisas em si, nem a estas em suas recíprocas relações. Espaço é a forma de todos os fenômenos
dos sentidos externos. Aqui reside a sua realidade
empírica. Como algo subjacente às coisas em si mesmas, fora da sua
condição de possibilidade de toda experiência, o espaço é mera idealidade
transcendental. Sob este ângulo, o
espaço é nada.
O
tempo, também, não é um
conceito discursivo, empírico, abstraído de qualquer experiência, mas
sim uma representação necessária subjacente às intuições. No tempo, os fenômenos podem ocorrer de
modo simultâneo ou sucessivo. O tempo
nada mais é do que a forma do sentido interno, isto é, do intuir a nós mesmos e
ao nosso estado interno. O tempo é a
condição formal a priori de todos os fenômenos em geral; a sua realidade
é empírica, isto é, tem validade objetiva relativa aos objetos captados por
nossos sentidos. O tempo é mera idealidade
transcendental quando se abstrai das condições subjetivas da intuição
sensível, não podendo ser incluído como subsistindo e nem como inerente aos
objetos em si mesmos (sem a sua relação com a nossa intuição). Sob este ângulo,
o
tempo é nada.
Categorias
do entendimento são conceitos puros que se referem, a priori, aos
objetos da intuição em
geral. Do elenco de todos os conceitos puros (categorias), originários da síntese que,
a priori, o entendimento contém em si,
constam: (1) quantidade:
unidade, pluralidade, totalidade; (2) qualidade: realidade, negação,
limitação; (3) relação: (I) inerência e subsistência (substância e acidente);
(II) causalidade e dependência (causa e efeito); (III) comunidade (ação
recíproca entre agente e paciente); (4) modalidade: (I) possibilidade e
impossibilidade; (II) existência e não-existência; (III) necessidade e
contingência. A procura desses conceitos fundamentais constituiu um plano
perspicaz de Aristóteles. Desses conceitos originários e primitivos do
entendimento podem ser derivados outros conceitos igualmente puros, embora
subalternos, tais como: (1) da causalidade são predicáveis: força, ação,
paixão; (2) da comunidade são predicáveis: presença, ausência,
resistência; (3) da modalidade são predicáveis: nascimento, perecimento,
mudança.
A
teoria do conhecimento
pode ser assim resumida: todo conhecimento é constituído por sínteses
dos dados ordenados pela intuição sensível espaço-temporal mediante as
categorias apriorísticas do entendimento. Por conseguinte, impossível
conhecer o noumenon (as coisas em si mesmas), mas tão somente o phaenoumenon
(as aparências), ou seja, os objetos tais como resultam das sínteses
apriorísticas do próprio ato de conhecer. Pelo conhecimento das coisas em si
mesmas (noumenon) a Metafísica apresenta respostas últimas e definitivas
para todos os problemas. Tais respostas resultam de um emprego do entendimento
humano fora dos limites racionais; visa ao absoluto
e trata de objetos que não são apreendidos empiricamente. Entre os
conhecimentos a priori (acima de qualquer experiência sensível) podem
ser mencionados: deus, liberdade, imortalidade, necessidade, identidade.
Tais são os objetos da Metafísica, ciência que procede dogmaticamente, sem
indagar se a razão é capaz ou incapaz de tal conhecimento. “Quando se está
acima da esfera da experiência, então se está seguro de não ser contestado pela
experiência”.
A
ocupação maior da razão consiste em desmembramentos dos conceitos que já temos
dos objetos. [A independência do pensamento em relação à experiência traz certa
comodidade ao sujeito, livre do incômodo de buscar provas nos fatos. Essa
licença pode conduzir a proposições absurdas, a ficções, a manobras para
escapar das contradições. O mesmo ocorre na província da fé, onde o círculo
pode ser definido com figura quadrada. Nessa província vale tudo, menos a
entrada da razão. O pássaro no seu vôo encontra a resistência do ar. Melhor
voaria sem essa resistência, como Fernão Capelo Gaivota ao alcançar a liberdade
no espaço infinito. A razão é um entrave para a fé. A lei natural da
multiplicação verifica-se, também, no pensamento, quando este avança mediante o
desdobramento de idéias, desliga-se do campo da experiência e rompe todos os
limites, como aconteceu com Platão].
Pensar
é diferente de conhecer, diz
Kant. O conhecimento requer dois elementos: (1) o conceito pelo
qual em geral um objeto é pensado; (2) a intuição pela qual o objeto é
dado. A faculdade de representar um objeto sem a sua presença na intuição
denomina-se imaginação. A imaginação pode ser: (1) produtiva,
quando resulta da espontaneidade; (2) reprodutiva, quando resulta da
associação, síntese subordinada a leis empíricas. A Lógica Geral está construída
sobre um plano que concorda com a divisão das faculdades superiores do
conhecimento, a saber: entendimento
{idéia}, capacidade de julgar {juízo}
e razão {raciocínio}. Sob o ângulo
analítico, a Lógica Geral trata de conceitos, juízos e inferências, conforme a
ordem e as funções daquelas faculdades. A Lógica Transcendental trata do uso
transcendental da razão. Por isso mesmo, tal uso não é válido objetivamente
e não pertence à lógica da verdade e sim à lógica da ilusão. A capacidade
de servir-se corretamente das regras lógicas depende do sujeito exclusivamente.
Um legislador, chefe de governo ou juiz, pode conhecer leis e ser professor,
mas pode falhar na aplicação do seu conhecimento ao caso concreto por
deficiência na capacidade natural de julgar.
A
Lógica Transcendental serve para prevenir os passos em falso da capacidade de
julgar. Aos conceitos sensíveis puros não subjazem imagens dos objetos, mas tão
somente esquemas. O esquema do triângulo, por exemplo, não pode existir em
lugar algum, salvo no pensamento. É no conjunto de toda a experiência possível
que residem todos os nossos conhecimentos e é na referência universal a tal
experiência que consiste a verdade transcendental que precede e torna possível
toda a verdade empírica. A explicação da possibilidade de juízos sintéticos é a
tarefa mais importante da Lógica Transcendental, que examina as condições e o
âmbito de sua validade. A possibilidade da experiência é o que dá realidade
objetiva a todos os nossos conhecimentos a priori. O princípio supremo de todos os juízos
sintéticos é assim enunciado: todo objeto está sob as condições necessárias
da unidade sintética do múltiplo da intuição numa experiência possível.
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