EUROPA (1800
a 1900). Continuação.
Para alcançar a felicidade, o
ente racional há de ser digno, o que implica submissão completa à lei moral. No
conhecimento do sumo bem consiste a
sabedoria teórica. Na conformidade da vontade ao sumo bem consiste a sabedoria prática. De um modo geral, são
atribuídas a deus: (1) as seguintes qualidades morais: (i) santidade
(legislador santo); (ii) bem-aventurança (governante bondoso); (iii) sabedoria
(juiz justo); (2) as seguintes propriedades
essenciais: onipresença (está
presente em tudo, no mundo natural e no mundo espiritual); onipotência
(tudo pode em ambas as esferas); onisciência (conhece a si mesmo e a
todos os seres nos reinos físico e metafísico). Os postulados da razão pura prática são:
(1) existência de deus; (2) imortalidade
da alma; (3) liberdade enquanto causalidade de um ente
pertencente ao mundo inteligível. Para cada uso da razão em relação a um
objeto são requeridos conceitos do entendimento (categorias) sem os quais
nenhum objeto pode ser pensado. As categorias têm sua sede e origem no
entendimento puro – enquanto faculdade de pensar – antes e independente de qualquer
intuição.
As carências da razão
especulativa deságuam nas hipóteses; as carências da razão
prática deságuam nos postulados. Inevitável é pressupor para todo ente
racional no mundo, aquilo que é necessário à sua possibilidade objetiva. Essa
pressuposição é tão necessária quanto a lei moral em relação à qual ela também
é válida. Se a natureza humana está destinada a aspirar ao sumo bem, a medida das suas faculdades de conhecer, principalmente
a relação delas entre si, tem que ser admitida como conveniente a esse fim.
Kant enfatiza a força e a
importância das inclinações para as quais a lei moral funciona como freio e
limitação. Pela desigualdade dos homens na constituição civil, as vantagens de
uns acarretam privações a outros.
[Vem à balha, a “privatização dos
lucros e socialização dos prejuízos”. Na imaginária balança social, um dos
pratos recebe os bônus (privilégios e vantagens) e o outro os ônus (sacrifícios
e privações). Em uma sociedade aristocrática, os bônus são da minoria e os ônus
da maioria, como regra geral; o inverso acontece como exceção, conforme o
estado de coisas. Em uma sociedade democrática, os bônus e os ônus são distribuídos
proporcionalmente entre todos os cidadãos. A proporção admite a desigualdade
que encontrar aceitável e racional justificação. As diferenças naturais e
culturais existem de fato e não devem ser ignoradas, sob pena de incidir-se em equivocado
e injusto nivelamento. No plano dos fatos, essa distribuição varia segundo a
realidade política, econômica e social de cada nação].
A lei moral é um mandamento da
razão pura prática incondicionada, portanto, superior à sensibilidade. A lei
moral reclama cumprimento por dever e
não por uma predileção que não se deve absolutamente pressupor. Arriscar
a vida pela pátria ou pelo próximo pode ser meritório, heróico, mas não
necessariamente moral. Perder a vida pela pátria é conseqüência de um comando
externo, de uma obrigação imposta pelo Estado e não de um impulso interno
ditado pela lei moral. Perder a vida pelos outros é violar o direito para
consigo mesmo e para com a sua família, quando esta não for o motivo da ação.
Quando arriscamos a vida pelos
outros nem sempre estamos vendo as suas virtudes e os seus vícios, as
singularidades morais e intelectuais; por vezes, nem sabemos de quem se trata.
Podemos estar arriscando a vida por uma pessoa de mau caráter, um
estelionatário, um corrupto, um assassino. Se disto nos inteirarmos
singularmente, é provável que nos abstenhamos da ação heróica, pois a
comparação entre nós e aquele tipo de pessoa é inevitável. Entre o risco da
minha vida e a de um criminoso, que padeça o criminoso. Quando desconhecemos a
pessoa em perigo, agimos vendo no próximo uma universalidade, um ente abstrato
provido de essência humana, um indivíduo da espécie animal a que pertencemos.
Estamos como que salvando a nós mesmos ou aos nossos entes queridos, numa substituição
psíquica, pois caso nos encontrássemos em igual situação de perigo, também gostaríamos
de ser salvos e que alguém arriscasse a vida para nos salvar, se fosse
necessário.
Método da razão pura prática exposto por Kant: (1) Tornar o
ajuizamento segundo leis morais uma ocupação natural. Conformidade à lei moral. Há
diferença entre a lei moral daquilo
que a carência dos homens exige de mim e o direito
daquilo que me é exigido. (2) A ação tem de ocorrer também (subjetivamente)
em vista da lei moral. Além
da retidão moral, a ação terá também valor moral como disposição concordante
com a sua máxima. A ocupação da faculdade de julgar em conformidade com a lei
moral dá à virtude (ou à maneira de pensar segundo leis morais) uma forma de
beleza que é admirada, mas, nem por isso, procurada. (3) O passo seguinte é
tornar perceptível, em exemplos, a pureza da vontade na apresentação viva da disposição moral. A reflexão pode
ocupar-se: (i) do céu estrelado acima de mim; (ii) da lei moral dentro de mim.
No primeiro caso, a reflexão começa no lugar que ocupamos no mundo sensorial
externo. A conexão em que nos encontramos ao imensamente grande (macrocosmo) estende-se,
pela reflexão, aos tempos ilimitados do seu movimento periódico. No segundo
caso, a reflexão começa em minha personalidade (em si mesma) e me expõe à
infinitude de um mundo com o qual me reconheço em conexão universal e
necessária, mas que é acessível apenas ao entendimento.
O espetáculo grandioso do universo
aniquila-me como criatura animal. Devolverei em pequeno prazo a matéria da qual
sou formado e que estava dotada de força vital. O espetáculo descortinado pela
personalidade eleva meu valor enquanto inteligência. A lei moral me revela uma
vida independente da animalidade e até mesmo de todo o mundo sensorial. A
contemplação do mundo começou do mais grandioso espetáculo – que só os sentidos
podem oferecer e o entendimento suportar e perseguir – e terminou na
astrologia. A moral começou na mais nobre propriedade da natureza humana – cujo
desenvolvimento e cultura visam a uma utilidade infinita – e terminou na
superstição e no fanatismo.
[A grandeza macroscópica do
universo amesquinha até mesmo o nosso planeta e o nosso sistema solar. Todavia,
perante a estrutura atômica e microscópica da matéria, o ser humano, o planeta
e o sistema solar se agigantam. Tudo é uma questão de perspectiva. Kant estava
inserido na cultura européia dos séculos XVIII e XIX. Seu pensamento está
desprovido do conhecimento científico de que dispomos na atualidade. No
entanto, a sua crítica sobre os desvios do caminho da ciência e do caminho da
moral é válida para a idade contemporânea. No que tange à parte nobre da
natureza, a linguagem reflete proximidade com a hierarquia social do regime
monárquico e aristocrático da idade moderna, mas que ainda vigora em nossos
dias. O organismo humano e todas as suas funções têm utilidade e importância.
Assim como o cérebro e a inteligência, também o coração e a intuição ocupam importante
lugar nos mecanismos do corpo humano].
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