quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

FILOSOFIA XIV - 24



EUROPA (1800 a 1900). Continuação.

Arthur Schopenhauer acreditava em uma força universal que dirige o nascimento e o desenvolvimento dos fenômenos da natureza e dos fatos sociais. Ao examinar uma só folha, o botânico desvela a planta inteira. Uma só atitude da pessoa pode revelar o seu caráter. A força universal é vontade, assim entendido o desejo cego e inconsciente de sobreviver que existe nas espécies e nos indivíduos. Imitação e hábito são as molas mestras das ações humanas. A direção do corpo é dada pela vontade. Na esfera noumenal (da “coisa em si”), a vontade não está sujeita ao tempo, ao espaço e às categorias. A “coisa em si” (noumenon), raiz metafísica de toda realidade, é apreensível como vontade. O real é cego e irracional. A consciência que cada indivíduo tem de si mesmo é primitiva e irredutível. A consciência é a superfície da mente cujo interior desconhecemos. [Posteriormente, esse interior da mente, o inconsciente, foi estudado por Freud]. O corpo é objetivação da vontade; o que se quer e o que se faz são a mesma coisa vista de perspectiva diferente.

Como representação, o mundo tem duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis: (1) o objeto, cujas formas são o espaço e o tempo; (2) o sujeito fora do espaço e do tempo porque se encontra de modo inteiro e indiviso no "ser que percebe". Se o ser que percebe desaparece, o mundo como representação também não mais existe. A vontade irracional e inconsciente – raiz metafísica do mundo e da conduta humana – é a fonte de todo sofrimento. O que se conhece por felicidade é a temporária interrupção do processo de infelicidade. A felicidade é exceção; a infelicidade, a regra. A lembrança de um passado sofrimento cria a ilusão de um bem presente. Viver é sofrer. O consolo é saber que o vizinho sofre mais do que nós. Trabalho, aflição, esforço e necessidade é a sina da maioria dos humanos no curso das suas vidas. A procriação oferece novas vítimas ao sofrimento. O mais forte devora o mais fraco. No fundo, o ser humano é um animal selvagem e terrível que às vezes rompe os freios da civilização que o subjugam. Diferente do animal irracional, o humano maltrata pelo prazer de maltratar e nisto consiste o seu caráter demoníaco. Somente o homem vai à caça de animais que não lhe são úteis nem prejudiciais. A crueldade com a qual eram tratados os escravos na América exemplifica a ferocidade do homem.

Este mundo é o inferno em que os humanos formam, de um lado, os atormentados e de outro, os demônios. Quem não quiser ouvir esta verdade e sim ouvir que deus tudo fez do melhor modo, dirija-se à igreja e deixe em paz os filósofos, ou então, procure os filosofastros, trapaceiros que afeiçoam a doutrina filosófica aos ensinamentos da igreja. Egoísmo, dor e miséria são inseparáveis da vida. O egoísmo faz do homem inimigo do homem. [Lupus lupi homine, já dizia Hobbes; luta diuturna em que a paz é apenas um pequeno intervalo; luta consigo mesmo e com os outros]. Melhor estar só do que estar entre traidores. O egoísmo advém da ilusão de vontades independentes que afirmam seus ímpetos individuais. A dignidade humana decantada dos princípios morais é expressão vazia, em que pese a sua aceitação no mundo moderno. Essa pretensa dignidade repousa sobre a moralidade. Considerando a vontade tão pecaminosa do homem, o seu espírito tão limitado, o seu corpo tão frágil e o seu caráter tão volúvel, esse conceito de dignidade só pode ser aplicado ironicamente. [Isto lembra a desonestidade, a falta de palavra, a flexibilidade do caráter dos homens brancos brasileiros, constatadas pelo cacique Juruna, que passou a usar gravador quando com eles parlamentava].

Arthur menciona as virtudes cardinais citadas por Platão: justiça, coragem, moderação e sabedoria. A moderação {chamada de temperança por Cícero} é expressão indeterminada de múltiplo significado: ponderação, lucidez, cabeça no lugar. A bravura (coragem na guerra) não é virtude e sim propriedade do temperamento que pode se voltar tanto para o bem como para o mal. A covardia é incompatível com um caráter nobre, apesar da doutrina cristã em contrário, ao recomendar a não resistência {quando esbofeteado em uma das faces, oferecer a outra}, a tolerância {respeitar a opinião e a crença alheias}, a benevolência {amar o próximo como a si mesmo}. Sobre a coragem, Arthur cita os versos de Calderón: ainda que o natural temor / pese sobre todos igualmente / não mostrá-lo é ser valente / e isto é o que faz o valor.  Cita, ainda, as virtudes cardinais alinhadas pelos chineses: compaixão, justiça, cordialidade, sabedoria e sinceridade.

Na concepção antiga, virtuoso era o homem portador de qualidades elogiáveis, fossem físicas, intelectuais ou morais. Com o advento do cristianismo, a virtude ficou restrita a um conceito moral, a um conjunto de qualidades éticas {excelência moral}. A doutrina cristã colocou a moral como tendência fundamental da vida. O cristianismo carece de virtudes cardinais próprias; possui apenas virtudes teologais: fé, esperança e caridade. [Segundo a doutrina católica, pelo batismo são infundidas na alma não só as virtudes teologais, mas também, as virtudes cardinais como expostas por Tomás de Aquino na “Summa Theológica”: prudência, justiça, fortaleza e temperança, com as quais a boa conduta está relacionada]. O ser humano porta em seu interior a compaixão e a inveja, qualidades diametralmente contrárias. A inveja ergue o muro entre tu e eu; a compaixão faz desaparecer esse muro. Há um princípio bom e redentor neste Sansara. {Diz um texto budista: “Isto é Sansara: o mundo do prazer e do desejo, do nascimento, da doença, da velhice e da morte; é o mundo que não deveria ser”}.

A caridade é o início da mística [que se não confunde com mistificação no plano conceitual, mas que pode se confundir no plano dos fatos em razão da hipocrisia do agente]. A contemplação artística supera a dor. A atividade artística revela as idéias eternas através de diversos graus passando sucessivamente pela arquitetura, escultura, pintura, poesia lírica, poesia trágica e finalmente pela música. Liberta de qualquer referência a objetos da vontade, a música exprime a vontade em sua essência geral e indiferenciada. No entanto, para superar as dores do mundo é necessária a ascensão do homem a um nível superior de conduta ética. O caráter das coisas do mundo humano é mais a distorção do que a imperfeição. A contemplação da verdade é o caminho de acesso ao bem. Nas relações humanas, o espírito beligerante deve ser substituído pela simpatia, etapa ética em que o homem atinge o fundamento da verdade moral: não prejudiques pessoa alguma, sê bom com todos. Tal fundamento foi expresso no mandamento cristão: ama a teu próximo como a ti mesmo. Necessário, entretanto, ir além para alcançar a felicidade. A negação da vida é o único caminho para a felicidade humana, à maneira dos ascetas orientais. Ao dopar a vontade, o homem alcança o nirvana. O transe místico afasta a ilusão (o véu de Maya) e elimina a vontade; apenas o conhecimento subsiste.

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