sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

VIAGEM

III

O casamento.

De terno e gravata, lá estávamos eu e Rafael. Raras vezes assim me vestia após me aposentar do cargo de juiz de direito do Estado do Rio de Janeiro. Jussara, minha dileta esposa, não veio porque indisposta para ir ao Rio, escolher e comprar vestido longo, sapatos, bolsas e adereços. Ainda pesa nessa indisposição a morte do Boris, nosso dócil, querido e inesquecível cão gigante.

Igreja lotada, florida e ornamentada. À mostra, roupas e sapatos novos, penteados, maquiagens, unhas pintadas, jóias e bijuterias. A fisionomia de algumas jovens estampava o sonho de algum dia protagonizar semelhante cerimônia. Coral harmonioso. Repertório de bom gosto. Procissão pelo corredor central da igreja: crianças, adultos, parentes, padrinhos, faceiros pelo destaque diante do público. Encaminhavam-se aos primeiros bancos, menos o noivo, que se postou no primeiro degrau do altar. De véu, grinalda, caudaloso vestido branco sensualmente ajustado ao esbelto corpo, sorridente e ao compasso da marcha nupcial, a noiva, conduzida pelo pai, encerra a procissão. O noivo a recebe e ambos sobem os degraus do altar e se colocam diante do sacerdote oficiante. Após interlocução com o padre, os noivos sentaram à direita do altar. Jovem mulher procedeu à leitura de versículos de uma das epístolas de Paulo aos Coríntios. O sacerdote inicia o discurso num espetáculo visual e sonoro, como no teatro, que envolvia catequese subliminar. Os versículos serviram de fulcro à prédica. A união do homem e da mulher foi o tema, com ênfase na indissolubilidade do vínculo matrimonial. “O que Deus uniu, não separe o homem” (com exceção dos xipófagos, certamente). Naquele momento, o papel de Deus é encenado pelo vigário que celebra a união. A chave foi o amor, não apenas o de índole sexual, como também o de caráter doméstico e social, de mútuo respeito durante o convívio. Seguiram-se as promessas de fidelidade e assistência diante do altar e do padre. Promessas, porque juramento Jesus proibiu: “não jureis de modo algum” (Mt 5: 34). Os noivos colocaram as alianças após recitarem prece em nome do pai, do filho e do espírito santo, amém. Linda, desinibida, determinada, Marcela empurrou o anel até a raiz do dedo de Rafael, enquanto dizia um enfático amém que mais pareceu um “até que enfim!”. 

Celebração longa e cansativa. No altar, filha casando, pais descasados. O noivo, pais e avós, domiciliados em Porto Velho, Estado de Roraima, de lá trouxeram esse padre moderno, de boa aparência, enquadrado no modelo atual aprovado pela igreja e que vemos nas emissoras católicas de TV e nas capas de CD. A igreja está perdendo fiéis. Os padres aproveitam cerimônias como esta para mediante palavras e gestos manter e ampliar o rebanho. Misturam rito religioso e encenação profana a fim de agradar e atrair o público jovem. Dividem a cerimônia em vários atos. De alguns, o público participa ativamente; de outros, passivamente. Por diversas vezes, o público senta, levanta, reza, faz o sinal da cruz, completa ladainha e assim vai até o final, quando os cônjuges deixam o altar, transitam pelo corredor central e saem diretamente para o automóvel. Recebem os cumprimentos em outro lugar, pois a igreja necessita do espaço livre para a próxima peça. Caíram em desuso o cumprimento pessoal, o toque de mãos e os abraços à porta da igreja, do restaurante ou de outro local da recepção dos convidados. A agitada vida contemporânea tem a força de abolir usos e costumes. 

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