terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

POLITICA



O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), no recente julgamento sobre a competência do Conselho Nacional de Justiça, disse, com razão, que não entendia como a expressão “normas do seu funcionamento” pudesse ser lida como “normas do seu funcionamento e do funcionamento dos tribunais”. No entanto, poucos dias depois, no julgamento das ações sobre a constitucionalidade da LC 135/2010 – lei da ficha limpa – na frase “considerada a vida pregressa do candidato” contida no §9º, do artigo 14, da Constituição da República, o ministro leu “considerada a vida pregressa do candidato e o trânsito em julgado de sentença condenatória criminal”. Enxergou frase oculta; criou condição inexistente no texto. A incoerência provém da mentalidade distorcida, da pescaria em águas turvas, do excesso de liberdade na interpretação das normas. O sistema de controle mútuo entre os poderes do Estado (freios e contrapesos) resulta da necessidade de impor limites ao legislador, ao administrador e ao julgador. A intencional ou involuntária incoerência ao julgar – como a do exemplo aqui citado – não é só do presidente do STF, mas também daqueles magistrados que, de igual modo, utilizam dois pesos e duas medidas na judicatura. Aos jurisdicionados restam perplexidade e insegurança.

Os votos vencidos (Tóffoli, Peluso, Gilmar, Celso) facilitavam a vida dos corruptos na política e contrariavam o caráter ético da iniciativa do povo brasileiro. O tribunal não há de sucumbir sempre à opinião pública. Contudo, essa opinião deve ser aceita sempre que sintonizar com os princípios éticos e jurídicos vigentes na sociedade. O dever de ajustamento mais se acentua quando a vontade popular manifesta-se não apenas nos veículos de comunicação social, mas, também, no voto ou em projeto de iniciativa popular, como aconteceu no caso da ficha limpa. Nesta densa hipótese, o legislador, o administrador e o julgador têm o dever de acatá-la, posto que, o poder emana do povo. O magistrado exerce o poder em nome do povo (CR 1°, p.u.).

O aforismo vox populi vox Dei agrada aos fiéis, dá cunho divino à democracia e justifica a soberania do povo. Entretanto, em termos reais, da voz do povo saem boas e más palavras. No bom caminho político, a voz do povo se harmoniza com os valores fundamentais da nação; dela promanam decisões úteis e sensatas. No mau caminho político, a voz do povo sai da garganta da irracionalidade e da insensatez, atiça o fanatismo, a violência, a transgressão, conforme o testemunho de momentos terríveis da história dos povos (linchamentos, rebeliões, guerras).   

Os ministros Gilmar e Celso, na sustentação dos seus votos contrários à lei, afirmam que a nação deve ser protegida de si mesma. Tolice colhida no arraial da autocracia. A história dos povos é feita de bons e maus momentos. A afirmativa dos ministros supõe a incapacidade mental do povo para guiar a si mesmo e a necessidade de protetores. Os lordes protetores, certamente, são os dois ministros e magistrados que comungam tal pensamento. Ditadura judicial sucessora da ditadura militar. A nação brasileira, neste século XXI, tem maturidade suficiente para dispensar tutelas e curatelas. Visando a eficácia da lei, admite a tutela de caráter jurisdicional prestada por juízes e tribunais no devido processo jurídico em harmonia com os princípios e regras constitucionais. A prestação desta tutela está condicionada à iniciativa da pessoa natural ou jurídica. Quando prestada, a tutela terá efeito inter partes (a sentença é lei para os litigantes) ou erga omnes (a sentença é lei para a nação), conforme o tipo de ação e o alcance da jurisdição no caso concreto.

Os brasileiros são livres para manifestar o pensamento e para agir dentro da lei. O direito é o limite da liberdade no seio da nação politicamente organizada. Parcela da nação brasileira tem capacidade jurídica para os atos da vida civil. Dispensa curadores e tutores. Nos momentos maus, a nação encontra meios de reagir e de organizar movimentos sociais como “diretas já” e “ética na política”. Cada caso deve ser examinado sob o duplo aspecto: individual e social. A vontade popular no caso da ficha limpa brotou de propósito que eleva culturalmente a nação brasileira. Reservar os cargos públicos eletivos a pessoas honestas e decentes, além de preparadas técnica e intelectualmente para a função, afigura-se propósito de alta relevância para os negócios do Estado e para os anseios da Nação; lógica inspirada eticamente que orienta a função pública; idoneidade moral necessária a quem pretenda exercê-la. Injustificável a falta de idoneidade de quem exercerá as mais altas funções de legislação e administração no Estado.

O acesso às vagas nos tribunais passa pelas mãos de padrinhos políticos. Os critérios de eficiência, reputação ilibada, notável saber jurídico, são desprezados. Basta ser amigo do rei. A notícia trazida em 2011 pela Corregedora Nacional de Justiça sobre esse apadrinhamento não é novidade para os que militam no mundo forense. Portanto, não causa estranheza que os apadrinhados, uma vez no cargo, servindo-se de sofismas, defendam a imoralidade e o façam atribuindo a si próprios o papel de tutores do povo. Pagam a dívida de gratidão ao assegurar sinecuras aos padrinhos políticos. A LC 135/2010, que modificou a LC 64/1990, atenuará os efeitos deletérios dessa vergonhosa tradição.

O tempo para cessação da inelegibilidade é bem determinado: oito anos. Esse prazo equivale a duas legislaturas; cada legislatura dura quatro anos (CR 44, p.ú.). Conforme o caso mencionado na lei, conta-se o prazo a partir: (I) do término do mandato; (II) da data da eleição para a qual a candidatura foi negada; (III) da sentença criminal condenatória: (i) prolatada por órgão monocrático em primeiro grau de jurisdição e transitada em julgado; (ii) ditada por órgão colegiado em primeiro ou segundo grau de jurisdição, ainda que recorrível.

Se a causa da inelegibilidade foi exclusivamente a existência de processo criminal, o candidato recupera o pleno exercício do direito político na hipótese de absolvição. O fato de ter sido excluído de eleições pretéritas constitui ônus decorrente do império do direito. A reforma da sentença condenatória restabelece o status quo ante, na medida em que a situação atual o permitir. O fato gerador da inelegibilidade não se reduz ao crime e pode até dele prescindir. Basta que o fato da vida pregressa seja desabonador e infirme o caráter do candidato para desempenhar o mandato político. Ainda assim, a lei permite ao candidato obter do tribunal ad quem a suspensão da inelegibilidade sempre que o seu recurso contiver pretensão plausível. A análise da plausibilidade incluirá alguma dose de subjetivismo, inevitavelmente.     

Na sessão de julgamento, para sustentação estatística dos votos vencidos, foi dito que 28% dos recursos extraordinários criminais são providos. No entanto, isto significa que 72% das decisões condenatórias são confirmadas. O cálculo incide sobre o pequeno número de processos que chega ao tribunal superior. Destarte, absolvição da minoria de uma minoria na derradeira e extraordinária instância não justifica a espera do trânsito em julgado para recusar registro de candidatura aos condenados. Tal espera esvaziaria o preceito constitucional.

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