sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

MAGISTRATURA

XIV
Outro exemplo de raquitismo nos tribunais é o mandado de injunção 860, impetrado em julho de 2008, no Supremo Tribunal Federal, sendo relator o ministro Marco Aurélio, em que se pede o disciplinamento do preceito constitucional sobre moralidade para exercício de cargo eletivo. Trata-se de integração do ordenamento jurídico a ser realizada pelo Judiciário no caso concreto. Nesse tipo de processo, a solução judicial expressa o caráter normativo do poder jurisdicional.
A disciplina solicitada mediante o referido mandado de injunção era necessária para o eleitor impugnar pedido de registro de candidatura com base na vida pregressa de candidato a prefeito de município do interior fluminense. A vida pregressa inclui ações e omissões do candidato quanto aos seus deveres para com a família, a sociedade e o Estado, desde a maioridade até a idade atual. Não se limita, pois, à ficha criminal. Daí a necessidade de regras disciplinadoras da matéria constitucional em cada caso, enquanto o Legislativo se mantiver omisso.
O presidente do Congresso Nacional prestou informações. O Procurador-Geral da República devia se pronunciar, consoante regra constitucional e regimental. O relator suprimiu essa fase e negou seguimento ao mandado de injunção. Decisão nula de pleno direito por escandalosa agressão à norma em vigor. Além de arbitrária, a decisão revela raquitismo inesperado em uma corte de justiça. Troca o nome da medida judicial de mandado de injunção para mandado de segurança, sinal do descaso com que foi tratada matéria tão relevante. Redação sofrível e linguagem equivocada. Degrada a Constituição chamando-a de “Carta”. Denomina-se “carta” o documento unilateral escrito por alguém para comunicar alguma coisa a outrem. O destinatário não participa da elaboração do documento. A comunicação se dá de pessoa a pessoa privativamente (carta fechada) ou do emissor ao público (carta aberta). No restaurante, carta de vinhos; na escravatura, carta de alforria; no reino, carta régia (determinações do rei aos súditos).
Na política, denomina-se “Carta” a lei fundamental do Estado posta unilateralmente pelo dono do poder (rei na monarquia, ditador na república), sem participação do povo. Destarte, consideram-se “cartas” as leis fundamentais do Brasil de 1824, 1937 e 1967, outorgadas pelo imperador, pelo chefe civil da revolução e pelo estamento militar, respectivamente. Reserva-se o nome de Constituição à lei fundamental do Estado posta pelo povo, autor e destinatário concomitantemente. Destarte, consideram-se “constituições” as leis fundamentais do Brasil de 1891, 1934, 1946 e 1988, votadas pelos representantes do povo em clima de liberdade.
Inadvertidamente, alguns operadores do direito usam a palavra “carta” por imitação da Magna Charta Libertatum, documento histórico de 1215, outorgado por João, rei da Inglaterra, aos seus súditos. Cuidava-se de carta régia elaborada e assinada pelo monarca, aconselhado pelo clero e pela nobreza, sem participação do povo.

O despacho em comento carece de fundamentação. Limita-se a citar outra ação judicial (ADPF 144-7/DF) como se as duas ações fossem idênticas. Havia diferenças essenciais ignoradas pelo prolator do despacho. A ADPF e o mandado de injunção tratavam de questões diferentes do ponto de vista fático e jurídico. Concorrendo semelhança acidental e diferença essencial, descabe analogia. Em evidente equívoco lógico, a decisão apoiou-se em descabida analogia. O impetrante interpôs agravo regimental que dorme no gabinete do relator há três anos. Nesta altura, o mandado de injunção perdeu o objeto por dois motivos: (i) a eleição municipal que lhe servia de propósito findou em 2008; (ii) lei superveniente disciplinou a matéria (ficha limpa).

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