sábado, 17 de dezembro de 2011

BÓRIS

II
Certa vez, durante o matinal passeio, Pretinho, que assumira a frente, como era do seu costume, retornou e entrou em disparada na rua da nossa casa, na maior velocidade que suas curtas pernas permitiam. No seu encalço dois cachorros grandes, um pastor e outro de pelo dourado. Ao se depararem com o Bóris, os dois frearam e voltaram correndo. Bóris os perseguiu. Ao ver isto, Pretinho tomou-se de brios e valentia. Acompanhou o irmão. De perseguido passou a perseguidor. Os cachorros colocaram-se a salvo no quintal da casa. Em outra ocasião, Pretinho saíra pela manhã sozinho e tardava a voltar. Saí à sua procura. Levei o Bóris para ajudar na localização. Encontramo-lo amedrontado no final daquela rua. Os dois cachorros moravam nas proximidades e estavam à espreita. Portão aberto. Pretinho percebeu e estacionou distante, horas a fio. Diante da presença do Bóris, eles fugiram para os fundos da casa. Por via das dúvidas, coloquei o Pretinho no colo e voltamos para casa. Bóris ostentava um ar de triunfo. 
A linguagem de Bóris tinha tonalidades diferentes, de acordo com os seus propósitos. Latido agressivo e irritado para o carteiro e sua motocicleta barulhenta e também para o caminhão coletor de lixo. Aliás, Bóris ficava nervoso com ronco de motores e com o estouro de fogos de artifício (crime ambiental). Tinha medo das trovoadas e procurava abrigo no canil, na oficina de arte da Jussara ou na varanda da casa. Dócil, educado, valente e medroso. Assim era o nosso Bóris.
O cruzamento dos pais caninos de raças diferentes gerou rebentos musculosos e grandes, mas de saúde frágil. Imunidade baixa. Bóris tinha constantes infecções e recebia medicação segundo receitas do veterinário. Com intervalo de alguns anos entre uma e outra, ele foi submetido a duas cirurgias. Todos os irmãos de sangue morreram por volta dos quatro anos de idade, segundo informação do antigo dono. Bóris viveu sete anos. Latido suplicante e impaciente ao se aproximar hora de refeição. Movimentava o corpo como se fosse recuar, batia as patas dianteiras contra o chão de pedra, e mexia a cabeça para cima e para baixo.  A súplica ocorria em frente à janela da cozinha ou à porta do escritório. Ele nos fitava e latia baixo, curto e brando. Queria lembrar a nossa obrigação de lhe servir comida. O seu relógio biológico era pontual. Ele e seus três irmãos eram atendidos prontamente.
Latia rouco, em tom grave, mexia a cabeça impaciente, quando o provocávamos ao diálogo. Irritava-se consigo por não poder expressar com palavras o que sentia. Falávamos com ele de maneira afetuosa, como se fala a um filho mimado e ele respondia daquele modo. Depois de algum tempo, retirava-se aborrecido, na certeza de que não se fizera entender. Às vezes, mostrava-se de mau humor e não queria conversa. Ele gostava de brincar, mas o seu corpanzil assustava as irmãs e desanimava o irmão. Gigante com alma de criança. Gostava de colocar e balançar a cabeça entre os meus joelhos para brincar. Fazia festa quando chegávamos das compras ou das viagens.
Novembro. 2011. 27. Sul do Estado do Rio de Janeiro. Manhã fria. Céu nublado, telhados, árvores, plantas, grama, tudo molhado. Ainda assim, ouvia-se o ladrar de cães, o gorjeio de pássaros e o mugir do gado. No dia anterior, Bóris fora sepultado. A natureza entristecera. Manoel chorou doído. Fomos os únicos protagonistas do melancólico funeral. Os dois eram grandes amigos. Jussara também chorou e sua alma veste luto. Chora-se a perda de entes amados, sejam racionais ou irracionais. Chora-se pelas perdas mais preciosas. Sempre que eu me aproximava, Bóris deitava-se de lado, erguia e movimentava pata dianteira esquerda e a pousava na palma da mão que eu lhe estendia. Então, eu deslizava o polegar da mão direita na entrância da sua testa até o alto do crânio e lhe fazia cafuné. Ele ficava quieto a espera que eu repetisse a operação. E eu repetia várias vezes, por algum tempo.  
Nos últimos meses, ele perdera aquele porte majestoso, caminhava devagar, cansava, parecia idoso. No derradeiro dia da sua terrena existência, combalido apesar da medicação aplicada pelo veterinário, deitado na garagem, ele tornou a pedir carinho. Segurei a sua pata esquerda e repetimos o costumeiro ritual, até quando parou de respirar. Esticou as patas dianteiras para frente e as traseiras para trás, como se espreguiçando. Cessaram todos os movimentos. Seus olhos ficaram vidrados e esverdeados. Pareciam duas esmeraldas. 

Nenhum comentário: