quinta-feira, 29 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XXIV.

- A vingança parece extensão do mecanismo de defesa diante da análise que o senhor e a senhora acabam de fazer – Isolda fala pensativa; os pais e o irmão escutam. Ao revidarem, quinze anos depois, os alemães se defenderam das acusações contidas no tratado de 1919. No esporte, a vingança também está presente. Quando uma equipe perde e se sente humilhada, aguarda a oportunidade de retribuir e de vencer a outra de modo escabreado. No cotidiano, ao receber tapa numa das faces, ninguém oferece a outra; vai para o revide, se puder.

- Por essas e outras que examino os livros religiosos com muito cuidado – Leopoldo exibe determinação no semblante. Não me fio na falácia dos clérigos, segundo a qual devemos ler com os olhos da fé religiosa, fé cega. Eles pretendem que abdiquemos da razão e aceitemos baboseiras como verdades divinas. A fé cega convém à dominação mental. Interessa-lhes fazer dos fiéis um rebanho e mantê-los em servidão. Não acredito que as palavras de Jesus tenham sido lançadas com fidelidade nos evangelhos e nas epístolas. Ele era um mestre. Sabia, pois, que a perfeição não é deste mundo. Padres, pastores, rabinos, freiras, professores, cientistas, operários, lavradores, crianças, adultos, todos são imperfeitos. Apesar da natural organização, o corpo humano apresenta defeitos. A sociedade apresenta problemas estruturais e funcionais desde a antiguidade até a idade contemporânea.

- Doutrinas religiosas e teorias científicas apresentam incoerências – Dorotéia aproveita o gancho. Vejam o segundo mandamento nuclear: “Amai ao próximo como a si mesmo” ou “amai ao próximo como si mesmo”? Se suprimirmos o artigo “a”, o sentido se modifica. Na primeira forma, toma-se como suposta a separação física e espiritual entre o eu e o tu. Na segunda, o suposto é que o eu e o tu constituem uma unidade espiritual. Qual dessas duas proposições Jesus ditou? Depois de meio século, o escritor do evangelho reproduziu corretamente a frase pronunciada por Jesus? Lembrem-se: a primitiva e miúda comunidade cristã, com uma ou duas exceções, era composta de pessoas pobres e analfabetas.

Isolda apóia com entusiasmo a argumentação dos pais. Cita como exemplo a palavra recepção na entrada do hotel. Basta trocar a letra “r” pela letra “d” e teremos outra palavra: decepção. Foi o que sentimos em relação ao serviço hoteleiro nas férias. – A graça de Isolda teve fria recepção dos pais e do irmão, o que a deixou decepcionada. Ela avançou na conversa, tentando superar o desconforto, dizendo que Jesus pretendia uma perfeição incompatível com este mundo; que ele mesmo era imperfeito.

- Episódios narrados na bíblia mostram a imperfeição de Jesus. No templo, bagunçou o coreto e desceu o porrete nos comerciantes. Ele, que era galileu, xingava os judeus; discutia com os poucos judeus letrados e os chamava de víboras, hipócritas e certamente outros impropérios. Na casa de Lázaro, flertou com uma das moças e permitiu que ela derramasse caro perfume sobre ele. Na Galiléia, humilhou a mãe e os irmãos dele na frente da platéia. Livro apostólico não incluído na bíblia revela o caso amoroso dele com Maria Madalena. Eu e minhas amigas não temos dúvida: os dois transavam adoidados.

- Minha filha, por amor a Deus, deixe de falar essas coisas com suas amigas, quer nos intervalos das aulas, quer fora do colégio – Dorotéia se impressionou com o arroubo de Isolda. Você está no último ano. Se isto chegar aos ouvidos da madre superiora você poderá ser expulsa do colégio e atrasar teu ingresso na universidade. O teu linguajar é inadequado a assuntos religiosos. Concordo com as tuas idéias e as do teu pai sobre a imperfeição. Acho, entretanto, que Jesus criou um padrão de conduta para que fôssemos felizes, desprendidos das coisas materiais. Ele almejava paz e fraternidade entre os seres humanos, apesar do censurável comportamento mencionado por você. Missionários católicos e protestantes seguem os mandamentos e a doutrina nos limites individuais, na medida da imperfeição de cada um. As igrejas preocupam-se com os pobres, dedicam-se à educação, à terapêutica, à assistência social; constroem e mantêm escolas, clínicas, hospitais, albergues e creches.

- Tudo bem – Júnior fala de modo cordato. Nessa área atuam católicos, protestantes, espíritas, maçons, místicos. Seguem a escola de Jesus. Para dar visibilidade à ação caridosa, a igreja católica usa alguns vultos. Para tanto, vale-se dos meios de comunicação social. Mulheres como Madre Teresa de Calcutá e homens como Frade Francisco de Assis, merecem respeito e admiração, inclusive ateus e pessoas de diferentes credos que, no anonimato ou publicamente, prestam assistência aos necessitados. Além dos cristãos, também islamitas, hinduístas, budistas, têm propósitos humanitários. A clientela dos colégios e universidades católicas e protestantes é de ricos e remediados. Aos pobres, a escola pública.

- As instituições cristãs de ensino abrem vagas e concedem bolsas de estudo aos pobres – ponderou Dorotéia.

- As palavras da minha irmã podem ser impróprias fora de casa, porém, o pensamento dela coincide com o meu – intercede Júnior. A igreja católica criou o Vaticano, Estado muito rico. As basílicas que visitei são monumentos de arte e riqueza. Os serviços religiosos são prestados a troco de dinheiro. Atribuindo valor sacramental ao dízimo, as igrejas católicas e protestantes arrancam dinheiro dos fiéis. A arrecadação vai para os cofres clericais. Pouco reverte em benefício dos pobres. O dinheiro é aplicado em bolsas de valores, em títulos do tesouro estatal, em bancos e na aquisição de imóveis, obras de arte, emissoras de rádio e televisão, veículos terrestres, aéreos, fluviais, formando valioso patrimônio usufruído pelo clero católico e protestante. Essa riqueza e a concorrência entre as igrejas para aumentar o número de contribuintes e a respectiva arrecadação contrariam o exemplo de vida mística e modesta dado por Jesus. A fé tornou-se fonte de renda; a religião, mercado.

- A pobreza é doença social crônica – Isolda expõe o seu ponto de vista aproveitando o apoio do irmão. Ao invés de curar essa doença que assola a humanidade desde os primórdios da civilização, Jesus apenas consolou os pobres com promessas paradisíacas para depois da morte. As instituições políticas e religiosas não se interessam pela cura dessa doença, embora aparentem o contrário. Os pobres prestam os serviços primários na sociedade. Sem os pobres não haveria pirâmides, nem demagogos. Sem os pobres, os remediados e os ricos não sobem ao reino celestial. Falta a quem fazer caridade. Os pobres são necessários para justificar a riqueza das instituições beneficentes civis e religiosas.

- Realmente – Leopoldo encaminha o consenso – ao dignificar a pobreza com a promessa do reino divino, Jesus admitiu sua impotência para curar essa doença social aqui na Terra. A cura cabe a Cezar, ou seja, ao governo do Estado, com a colaboração dos segmentos civil e religioso da sociedade. Os indivíduos praticam assistência social quando pagam tributos, depositam moedas nas súplices mãos dos mendigos, prestam serviço voluntário e ajudam financeiramente instituições beneficentes. No entanto, os pobres continuam pobres.

- A missão de Jesus não era a de acabar com a pobreza, tarefa que cabe ao Estado e à Sociedade – defende Dorotéia. A missão de Jesus era a de consolar e valorizar os pobres aos lhes dar esperança de uma vida melhor no reino celestial; incentivar a fraternidade resultante da paternidade divina; inspirar paz e amor à humanidade; profetizar o juízo final. O evangelho não tinha os pobres como destinatários exclusivos, embora fossem a maior clientela de Jesus. Incluía todos que cumprissem os mandamentos: ricos, remediados e pobres. As portas do reino divino abrem-se aos humildes, postura espiritual que não é apanágio dos pobres. Há pobres orgulhosos e de mau caráter. Há ricos humildes e de bom caráter. O reino celestial é franqueado aos humildes de coração e de pensamento, independente das posses terrenas. Realista, conhecendo a natureza humana, Jesus sabia que ricos dificilmente teriam acesso ao reino celestial. A experiência mostra que é mais fácil encontrar moeda de um centavo na areia da praia, do que encontrar um rico humilde.

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