domingo, 11 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XV.

- Há mulheres que passam por tensão pré-menstrual, estado de saúde alterado temporariamente e que interfere no humor e na capacidade analítica – Dorotéia aproveita a pausa feita pelo pai e introduz mais este dado no assunto. A juíza que padecer desse incômodo deve se abster de presidir audiências e de sentenciar durante aquele período. A cautela ajuda a propiciar decisões equilibradas. Partes, testemunhas, advogados, seriam poupados do destempero das juízas. O benefício restringir-se-ia às juízas que padecessem do distúrbio atestado por junta médica. As demais juízas funcionariam regularmente durante os cinco dias da semana, as quatro semanas do mês e os dez meses do ano.

- Nada justifica os assassinatos, embora caiba explicação – interrompe Grimaldi. O crime pode resultar do ódio pessoal que a conduta destemperada do juiz provoca no criminoso. Desentendimentos em relações perigosas mantidas pelo juiz podem gerar o desfecho letal. A escola da magistratura devia incluir ética judiciária no currículo a fim de minorar esse problema. Os assassinatos de juízes decorrentes do exercício da judicatura são praticados, em geral, por motivo torpe, à traição, de emboscada, por duas ou mais pessoas, para assegurar impunidade e até mesmo para intimidar a magistratura.

- Meu caro sogro! Aqui da minha condição de leigo, pela qual desde logo me penitencio, vislumbro algo mais grave. Se esses ataques se tornarem freqüentes, o problema terá amplitude institucional. A subversão estará implantada. A magistratura estará submetida à organização criminosa. Decisões judiciais ditadas sob cano de revólveres e fuzis. O juiz que demonstrar independência e coragem será morto!

- Meu caro genro! – Grimaldi, bem humorado, imita a ênfase de Leopoldo. Aguilhoada a magistratura, lá se vai o Estado Democrático de Direito. A Constituição restará folha de papel sem força normativa. A norma penal, que já é branda em nível constitucional e em nível infraconstitucional, terá sua aplicação ainda mais frouxa.

- No que tange à saúde dos operadores do direito, eu soube que há nova fonte de distúrbio que se relaciona com a minha área de negócios – comenta Leopoldo. Problemas oftalmológicos, neurológicos e ortopédicos provocados pelo uso intensivo dos computadores. Com a informatização do Judiciário, o acesso aos dados das varas e dos tribunais se faz em poucos segundos. A comunicação entre os órgãos da administração judiciária se tornou ágil. Todavia, a informatização se mostrou mais prejudicial do que benéfica no que concerne aos processos judiciais, conforme reclamações que ouvi. O usuário tem que se cadastrar. O cadastramento é complicado, uma via crucis de terminologia técnica estranha ao operador do direito. Depois do cadastramento, outra via crucis para o acesso ao processo: senhas, letras, números, perguntas idiotas e bloqueios.

- Parece que a lentidão da justiça é problema insolúvel – comenta Geromina, com leve suspiro e abandono dos braços sobre o colo a indicar desolação.

- A lentidão da marcha processual é própria da prestação jurisdicional – Grimaldi explica. Apurar fatos e responsabilidades é tarefa demorada. Requer paciência. A produção da prova inclui depoimentos, documentos, perícias, segundo o princípio da ampla defesa. Há fases postulatórias no primeiro plano, perante o juiz, no segundo plano, perante o tribunal ordinário, e no terceiro plano, perante o tribunal extraordinário, em que promotores e advogados apresentam argumentos em atenção ao princípio do contraditório. Pautas cheias. Poucos dias da semana destinados a audiências e a sessões de julgamento. Contribuem para a morosidade a falta de juízes e o grande volume de processos em trâmites nas varas e nos tribunais.

- De resto, a prudência é intrínseca à judicatura. Decisão precipitada pode gerar dano irreparável – adverte Dorotéia. Vejam o episódio nos EUA, com Dominique Strauss-Kahn, diretor do Fundo Monetário Internacional, acusado de constranger camareira de hotel a com ele manter relações libidinosas. Foi preso e tratado como criminoso antes do devido processo. Fotografado e filmado em ângulos desfavoráveis, a destorcida imagem foi publicada nas emissoras de televisão e em capas de revistas. A imprensa mundial denegriu-lhe a honra. Pagou milionária fiança em dólares e ficou em prisão domiciliar com pulseira eletrônica. Depois disso tudo, verificou-se que a acusação era falsa. O ministério público desistiu da ação penal, mas o estrago se consumara. Dominique havia renunciado ao cargo de diretor do FMI e à sua candidatura ao governo da França. Outro exemplo: o lutador de boxe, Mike Tysson, foi condenado à prisão e a pagar indenização de milhões de dólares à namorada porque ela o acusou de forçá-la à conjunção carnal no quarto do hotel. Os dois estavam naquele quarto de livre e espontânea vontade. Em tais circunstâncias e nas preliminares do gozo sexual, falar em arrependimento eficaz soa falso, além de exigir do parceiro corte drástico no fluxo da natureza. O rapaz foi vítima de armação. Além de indevida, a indenização foi fixada em valor estratosférico. A justiça dos EUA peca pelo açodamento. A nossa corte suprema também comete esse pecado – não ao prender – mas ao soltar bandidos de alto coturno.

- A velocidade aplaudida nas pistas de corridas é temerária no processo judicial, pelo que se vê desses e de outros exemplos – observou Júnior.

- No entanto, parece-me indesculpável a lentidão exagerada – retrucou Leopoldo. Os usuários do sistema são informados, em segundos, de que o processo aguarda meses e anos a decisão judicial que resolverá de vez a pendenga. A rapidez é da informação e não dos trâmites processuais. O exame do processo, dizem eles, é melhor nos autos de papel. O operador do direito compulsa duas ou mais peças ao mesmo tempo sem perder o fio da meada. Toca nos laudos, nas fotografias e demais coisas que o instruem. No processo eletrônico, para comparar duas ou mais peças, o operador tem que retorná-las uma a uma na tela do computador. O sistema cai frequentemente. Perde-se tempo. O raciocínio sofre solução de continuidade. Troca-se o sensível calor do toque direto nos autos do processo por luminosa frieza da tela. Há prazos a cumprir. Tudo isso afeta os nervos, agrava a ansiedade e os problemas de saúde.

- O registro eletrônico dos trâmites processuais é interessante, mas os autos em papel devem ser mantidos e, melhor ainda, com papel reciclado, em atenção ao ambiente ecologicamente equilibrado – opina Júnior. A televisão não acabou com o cinema. O computador e seus derivados, como a tábua plana ou tabletes, não acabaram com os livros. Creio que não devem acabar com os autos de papel. Encerrado, digitalizado e arquivado o processo no banco de dados, o papel dos autos respectivos será reciclado.

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