quarta-feira, 14 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XVI.

Geromina lembrou ao marido que a filha, o genro e os netos haviam também criticado os juízes por intromissão na organização territorial do país.

- Ah, sim! É verdade. Já ia esquecendo – Grimaldi bate com a palma da mão na testa. De fato, modificações territoriais por incorporação, subdivisão ou desmembramento, seguem os trâmites de um processo político delineado na Constituição e na lei. O tribunal só interfere se provocado por iniciativa dos interessados para se pronunciar sobre a constitucionalidade e a legalidade dos procedimentos.

- O que o senhor quer dizer com provocado e que procedimentos são esses? – Júnior pergunta cautelosamente para não provocar a ira da avó por interpelação afrontosa.

- Quero dizer que juiz ou tribunal só atua se alguém pedir. Juiz e tribunal não se oferecem nem se intrometem e sim aguardam ser chamados para resolver problemas e o fazem obedientes à processualística em vigor. O juiz não pode agir de ofício antes de instaurado o processo. Uma vez provocado, verifica se a matéria lhe compete, se há interesse processual, se o requerente tem legitimidade para postular em juízo e se a sua petição é apta ao fim pretendido. Esse procedimento materializa o juízo de admissibilidade. Os procedimentos caracterizam a dinâmica do processo: atos praticados em seqüência desde a petição inicial até a decisão final. Só haverá retrocesso nessa dinâmica se o juiz ou o tribunal reconhecer nulidade total ou parcial. Lembrem-se, meus queridos, de que o processo jurídico compreende o processo político, o processo administrativo e o processo judicial. Na modificação do território estadual de que estamos tratando, o processo jurídico é de natureza política e tem início com um procedimento fundamental: prévia consulta à população. Se o povo reprovar, o processo se encerra; se o povo aprovar, o processo continua no Congresso Nacional. Se os parlamentares discordarem da modificação, o processo se encerra; se concordarem, o projeto de lei complementar vai ao Presidente da República para sanção. No curso desse processo político, o tribunal pode ser chamado a dissipar dúvida e resolver controvérsia. Instaura-se, então, o processo judicial.

- O senhor menciona povo e população. Afinal, quem deve responder à prévia consulta: a nação por inteiro ou só os habitantes dos Estados envolvidos?

A pergunta de Leopoldo leva intenção crítica. Ao justificar seu questionamento, fala das sérias conseqüências da modificação territorial, da perda da identidade histórica da população do Estado que sofre a modificação, do desequilíbrio financeiro nas unidades da federação em conseqüência da redução da cota de cada Estado na repartição das receitas tributárias. Júnior aproveita o ensejo para mostrar seus conhecimentos. Afirma que a consulta ao povo tipifica a democracia participativa; que a criação de novos Estados vem assentada na ambição de políticos da província que almejam ser governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores, cargos decorrentes da reorganização territorial. Grimaldi ouviu o que diziam o genro e o neto com um leve sorriso. Perguntou se alguém tinha mais alguma coisa a acrescentar. Percebia-se nuance desafiadora na sua voz.

- Bem. Vamos às respostas. Vou começar pelo comentário do Júnior. O surgimento de um novo Estado muda a composição do Senado e da Câmara dos Deputados. Exige assembléia legislativa, palácio de governo, tribunal de justiça, câmaras municipais, prefeituras, organização burocrática e imensa carga de despesa pública. No que tange à democracia participativa, trata-se de um adjetivo a mais. Teóricos nacionais e estrangeiros costumam abusar das classificações para imprimir caráter científico aos seus estudos. A democracia adjetivada serve de exemplo. Temos as democracias burguesa, social, popular, direta, indireta, representativa, participativa e por aí vai. Sem adjetivos, o conceito é simples e satisfatório: democracia é o povo no governo do Estado.

Apesar dos complicados conceitos e classificações na ciência do Estado e do Direito, provenientes da busca dos teóricos por chifres em cabeça de cavalo com o propósito de cunhar cientificidade às suas teorias, Grimaldi aconselhou o neto a seguir à risca os manuais e as lições dos professores e não se aventurar a expor idéias próprias nas provas da faculdade e nos concursos públicos, mormente quando toupeiras ocuparem as bancas examinadoras. Júnior devia homenageá-las e se, por descuido, delas discordasse, devia se retratar imediata e humildemente. Se ele quisesse progredir em alguma das carreiras jurídicas, devia seguir as trilhas existentes. Abrir novas trilhas constitui grave ameaça à prática sedimentada e ao saber institucionalizado. Criatividade é para artista e inventor; não é para jurista e julgador. Quem se atreve a inovar é posto na geladeira. A reação é venenosa.

Assim falou o avô ao neto. A expectativa de percalços na futura carreira do filho rói as entranhas de Dorotéia. “Protecionismo acontece em outras carreiras profissionais”, disse ela, consolando a si própria. “Tacanho costume que emerge da constante interação entre a força demoníaca e a força angelical que compõem a estrutura do ser humano”.

- Realmente, existe protecionismo nas empresas nacionais e estrangeiras – acrescenta Isolda em abono à opinião da mãe. Eu vi reportagem na televisão e artigo na rede de computadores sobre este assunto. Lugares no escalão superior da empresa são preenchidos com base no parentesco ou na amizade do diretor com a pessoa a ser promovida. Funcionários eficientes são preteridos na selvagem competição por cargos bem remunerados e de comando.

- No mercado internacional também ocorre protecionismo. Cada país tenta proteger a sua produção, o seu mercado interno, o emprego para sua população. Como parte do mecanismo de defesa natural, o protecionismo acontece na família, nas relações entre empresas nacionais, no campo da ciência e da tecnologia, nas instituições em geral – Leopoldo gesticula ao falar e cita exemplo. Nikola Tesla, croata, engenheiro, destacou-se por inventos e experiências no ramo da eletricidade em fins do século XIX e começo do século XX. Considerado gênio pela comunidade científica, acusou os inventores Thomas Edison e Gugliemo Marconi de plágio, de utilizarem idéias e projetos que eram dele. Recusou o prêmio Nobel para não dividi-lo com Edison, seu desafeto. Alguns contemporâneos, sem argumento para atacar as idéias, atacavam a pessoa de Tesla. Brindaram-no com os epítetos de louco e excêntrico. Entre as suas invenções contam-se: gerador de corrente elétrica alternada, lâmpada fluorescente, rádio, controle remoto de navios e submarinos, radar. Se o governo estadunidense houvesse acreditado no projeto de Tesla sobre o raio da morte, talvez a tragédia de Hiroxima e Nagasaki não tivesse acontecido. De modo pioneiro, ele utilizou a força hidráulica das cataratas do Niagara, produziu e distribuiu energia elétrica. O gerador de corrente alternada inventado por ele transmitia energia a longa distância, o que não acontecia com o gerador de corrente contínua de Edison. Ainda jovem, o croata viajara aos EUA para se entrevistar com Edison, inventor da lâmpada incandescente e do gramofone, dono da empresa de eletricidade que levava o seu nome e abastecia parte da cidade de Nova Iorque. Edison desdenhou da idéia e do projeto de Tesla e os rejeitou, mas prometeu 50 mil dólares ao croata se ele conseguisse aumentar a eficiência dos geradores da empresa no prazo de dois meses. Tesla executa o trabalho com êxito no prazo previsto, mas Edison lhe dá o calote, dizendo que prometera o dinheiro por brincadeira. Edison não queria concorrente na fama e nos negócios. Nada melhor para controlar adversário do que tê-lo sob dependência. Tesla se retirou da empresa de Edison, buscou apoio financeiro e fundou a sua própria empresa de eletricidade. Inventores, escritores, artistas, cientistas, filósofos, recorrem aos mecenas, reis, papas, empresários, na busca de apoio financeiro às suas idéias, projetos e obras. Os capitalistas retiraram o apoio quando Tesla projetou a transmissão da eletricidade pelo ar, sem fios, o que ensejaria energia gratuita à população. Edison liderou a conspiração. Tesla não casou, não tinha filhos, nem lar, morreu idoso, isolado, sem ver o seu nome nos livros didáticos.

- Eis aí, o mundo cão – a voz de Geromina vertia amargor.

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