quinta-feira, 15 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XVII.

Após os conselhos ao neto e as considerações de Leopoldo e Geromina, Grimaldi retoma a explanação sobre democracia.

- A participação direta e indireta do povo no governo é inerente à idéia de democracia. Há participação direta quando o povo resolve questões de Estado sem intermediários; indireta quando o faz através de representantes no Legislativo, no Executivo, no Judiciário. As duas formas de participação se combinam no sistema constitucional. A direta ocorre na escolha dos governantes, na resposta a consultas e na iniciativa de leis. Além disto, parcela do eleitorado compõe o júri. O poder de decisão dos jurados é soberano. Setores da sociedade participam de órgãos governamentais consultivos no modelo constitucional vigente em nosso país.

- Vô! Desculpe a interrupção, mas o senhor inclui o Judiciário na representação popular? Até onde eu sei os magistrados não são eleitos pelo povo!

- Realmente, Isolda, em nosso país os juízes não são eleitos. Nos EUA, sim, eles são eleitos. As técnicas de livre nomeação pelo chefe de governo e de eleição pelo povo são piores do que a seleção de juízes por concurso público, porque introduzem oficialmente a politicagem partidária no Judiciário com todos os males e inconvenientes que isto acarreta. Há poucos meses, na suprema corte do Estado de Wisconsin – EUA, juiz republicano e juíza democrata entraram em luta corporal porque o republicano queria acelerar decisão que favorecia o seu partido e a democrata retardava os trâmites processuais no interesse do seu partido. A cena do pugilato entrou nas retinas dos cidadãos. Irremediável quebra da austeridade. Evidente menoscabo ao interesse público. Convém notar, Isolda, que representação política não deriva exclusivamente de eleição. Dinastias se mantêm por séculos no governo. Reis e ditadores representam seus respectivos Estados em âmbito nacional e internacional. Cada Estado se compõe de território, povo e governo. Sob este ângulo, reis e ditadores no governo representam o povo. A estranheza embutida no teu questionamento deriva da confusão entre representação de direito civil, cujo instrumento é o contrato, e representação política que provém da investidura no poder. A representação civil é pessoal; a política, institucional. Na democracia, todo o poder emana do povo. Representa o povo quem estiver investido no poder em nível governamental: parlamentares, chefes de governo, magistrados. Espero minha neta, ter esclarecido a tua dúvida.

- Vô! O senhor fala em poder de decisão, em poder do povo, em poder do Estado. Tudo isso implica uso da força, ou seja, poder e força são a mesma coisa – Isolda aproveita a referência que lhe fez Grimaldi, para compensar a falta de percepção das diferenças por ele apontadas.

- Força é alguém levantar um peso de 50 quilos; poder é eu mandar alguém levantar um peso de 50 quilos e esse alguém obedecer – resposta dada por Geromina, que se antecipou ao marido, irritada com a jactância da neta. Grimaldi concorda.

- De fato, força é quantidade de energia gasta ou a ser gasta no movimento. Em atividade, essa energia produz, acelera ou freia o movimento. Individual ou coletivamente, nós a utilizamos para diversos fins. O vocábulo força é empregado para significar ação física geradora de algum efeito, aparelhamento militar, violência, vigor, robustez. Eventualmente, o poder se efetiva pela força com o propósito de prevenir, reprimir ou resistir. O vocábulo poder também comporta vários significados, tais como: faculdade ou capacidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa de modo independente, sem subordinação à vontade de outro; efetiva disposição para limitar a liberdade alheia; prevalência do pensamento e da vontade do sujeito no interior do grupo; autoridade; domínio. Ordem e submissão formam o binômio do poder nas relações humanas. Em havendo relação harmoniosa entre autoridade e liberdade, entre governante e governado, não há necessidade da força individual, social ou estatal para a convivência das pessoas. Diante da insubmissão interna ou da agressão externa, a força se faz necessária. Vou continuar a conversa do ponto em que me preparava para responder as indagações do Leopoldo. A resposta a consultas é forma de o povo exercer diretamente o poder. Há duas modalidades de consulta popular em nosso país: o plebiscito, que se faz antes da elaboração da lei, e o referendo, que se faz após a publicação da lei. Na modificação territorial dos Estados, fato de suma relevância por repercutir na organização política e administrativa do país, a consulta popular se faz mediante plebiscito porque assim está previsto na Constituição. Na modificação por incorporação e por desmembramento, ouve-se a população dos Estados envolvidos. Na modificação por subdivisão, ouve-se a população do Estado que será subdividido. Em qualquer dos três tipos de modificação será ouvida somente aquela parcela da população capacitada ao sufrágio universal: o eleitorado da região.

- Vô! Conceda-me um aparte – Júnior arremeda o discurso parlamentar e Grimaldi concede o aparte sorrindo afetuosamente. A norma constitucional menciona apenas população sem referir-se à capacidade eleitoral. População inclui todos os habitantes, com ou sem capacidade eleitoral, desde crianças recém nascidas até os mais idosos.

- Preste atenção Júnior. Na linguagem vulgar, população, nação e povo equivalem-se. Fala-se indistintamente em população alpina, população sulina, povos antigos, povo europeu, nação indígena, nação tricolor. Todavia, quando surge problema como esse que veio à balha e levado ao tribunal para ser resolvido, a especificação dos conceitos se torna necessária. Veja a controvérsia a respeito da expressão população diretamente interessada utilizada pelo legislador constituinte. Dizem alguns: a expressão cinge-se aos habitantes da nova área que resultará da modificação. Dizem outros: a expressão envolve os habitantes de ambas as áreas, a remanescente e a nova. Ainda há os que dizem: toda a nação deve ser ouvida, porque a modificação repercute em todos os Estados e no Distrito Federal. Você percebe como é importante esclarecer e especificar o significado das palavras no processo judicial?

- Percebo, mas no exemplo, o senhor podia citar a nação rubro-negra, bem maior do que a tricolor – o comentário de Júnior provocou risos.

- A clareza é importante não só no processo judicial como, também, na comunicação entre as pessoas, salvo a obscuridade intencional na arte, na religião e no misticismo – Dorotéia responde em seguida ao filho.

- Tudo bem – Isolda meneia a cabeça e utiliza a expressão como alavanca e não como concordância. Esclarecer e especificar o significado das palavras – ela repete a frase do avô e faz breve pausa, como se estivesse a meditar. “Muito bem” – aqui, Isolda utiliza a expressão como preparatória do questionamento e não como aplauso. “Mas, exatamente, o que os senhores querem dizer com isso?”.

- Expor a compreensão e a extensão dos conceitos – Leopoldo responde. A compreensão do conceito é o seu conteúdo ideal, as idéias de que é composto. O conceito animal, por exemplo, se compõe das idéias de ser vivo, consciente, que se nutre, se locomove e se reproduz. A extensão do conceito é o número de coisas a que ele se aplica. O conceito animal, por exemplo, se aplica ao menino, ao boi, ao pintassilgo, ao lambari.

- Na linguagem do direito – Grimaldi prossegue altaneiro – o conceito população tem sentido demográfico e se aplica ao conjunto de habitantes do planeta, do país, da província, da cidade, do bairro, independente da faixa etária, da saúde mental, da cidadania, das características raciais e culturais das pessoas; o conceito nação tem sentido sociológico e se aplica ao conjunto de pessoas moralmente unidas por duráveis laços históricos e culturais, como ideais, crenças e costumes comuns; o conceito povo tem sentido político e se aplica à parcela da população vinculada a um país por laços de cidadania. Na subdivisão, participam do plebiscito os eleitores do Estado federado, ou seja, a parcela da população daquela unidade da federação capacitada a votar. Na incorporação e no desmembramento, participam do plebiscito os eleitores inscritos nas zonas eleitorais dos Estados diretamente envolvidos. Embora a mudança repercuta na federação, só aos eleitores da região respectiva cabe decidir, conforme regra ditada pelo legislador constituinte. A população mencionada na regra é aquela formada pelos habitantes locais com capacidade e discernimento para participar das decisões políticas. Tal qualificação é comprovada pelo título eleitoral.

- O jantar está servido! – Anastácia anuncia e todos tomam seus lugares à mesa.

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