domingo, 25 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XXII.

Soprava suave brisa. Céu estrelado. Lua crescente. Acomodaram-se na varanda longa e retangular, piso de madeira, caibros de imbuia, sarrafos e telhas à vista. Pequena mesa circular de jacarandá no espaço entre as poltronas e o sofá de vime com almofadas. Copos e moringa de água em cima da mesa. Roupas leves. Sentada sobre uma das pernas, a outra pendente da poltrona, pés descalços, short de jeans, Isolda enrola os cabelos nos dedos de uma das mãos. Ela estudara em colégio de freiras e seu irmão em colégio de jesuítas por insistência de Dorotéia, que via nesses colégios boa qualidade de ensino aliada à formação religiosa. Na poltrona ao lado e de frente para os pais, Júnior indaga se além da separação entre religião e política, também a separação entre religião e ciência estaria implícita na afirmação de Jesus de que o reino dele não era deste mundo e de que se devia dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Dorotéia arca as sobrancelhas e estanha os olhos, surpresa com a pergunta e com o interesse do filho pelo assunto que ela considerava encerrado.

- Creio que sim – responde Dorotéia. A política e a ciência fazem parte do reino de César. No contexto da época, seguir Jesus significava acompanhá-lo nas andanças, na pregação da doutrina, no culto à divindade e integrar um tipo especial de vida comunitária. Significava sacerdócio e comunhão. Para exercer o sacerdócio e entrar naquela comunidade, o seguidor tinha de se desprender da família e dos bens materiais e confiar na providência divina.

Dorotéia faz uma breve pausa a fim de propiciar aos filhos ensejo de deglutir aquele trecho da exposição. Depois, continua.

- Quem não mostrasse vocação para o sacerdócio podia seguir Jesus de outro modo: aceitar a sua doutrina e cumprir os mandamentos nucleares: amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como si mesmo; e os mandamentos periféricos: honrar pai e mãe, não cometer homicídio, não lesar ao próximo, não praticar adultério, não prestar falso juramento nem falso testemunho, não cobiçar a mulher do próximo nem os bens alheios. Quem os cumpre, está no caminho de Jesus. Se todos fossem sacerdotes, não sobraria pessoa alguma para atender as necessidades materiais. A divisão do trabalho é lei natural; diferentes afazeres e diferentes vocações distinguem as pessoas na sociedade. Dedicar-se ao estudo e à pesquisa dos fenômenos naturais e dos fatos culturais é tarefa do cientista.

- Se acreditarmos nos evangelhos – Leopoldo argumenta condicionalmente – verificar-se-á que Jesus considerava perfeito aquele que, além de cumprir os mandamentos, se desapega dos bens materiais e se dedica exclusivamente às coisas divinas; imperfeito aquele dedicado às coisas mundanas, embora cumpridor dos mandamentos. Nessa linha de idéias, o cientista situar-se-ia no grupo dos imperfeitos, a serviço de César e não de Deus.

- Oferecer a outra face é mais uma das expressões metafóricas de Jesus – comenta Júnior. Segui-la ao pé da letra contraria a natureza humana. Além das emoções, o rosto reflete a própria dignidade. Esbofeteá-lo significa agredir o amor próprio de quem foi esbofeteado. A vítima inferiorizada aquieta-se ou busca reparação na Justiça.

- A vítima refinada moralmente dispensa o revide e busca os meios legais de compensação – aduz Dorotéia. A vítima elevada espiritualmente perdoa e faz preces em favor do ofensor. O conselho de Jesus é contra a violência e a favor da paz.

- Interessante, a cultura humana e suas contradições – Leopoldo analisa. A troca de socos nas lutas entre atletas ou em brigas de rua não é vista como ofensa à honra. Lá, competição esportiva; cá, simples contravenção.

- A natureza dotou os humanos de mecanismos orgânicos e psicológicos de defesa – explica Dorotéia, sem registrar o comentário de Leopoldo. O mecanismo de defesa tem raízes no instinto de conservação da vida, da integridade física e da liberdade. O corpo reage ao ataque de elementos estranhos. Células sadias combinam movimentos para aniquilar bactérias que ameaçam a saúde; cicatrizam feridas. Glândulas segregam substâncias curativas. O organismo seleciona o que é útil e elimina o que é nocivo. O indivíduo se defende mediante gestos automáticos, sem treinar, sem pensar, quando é agredido ou quando luz ou som incide sobre seus olhos e ouvidos. O sujeito afasta de si pensamentos e sentimentos ameaçadores a fim de preservar costume, visão de mundo ou a paz de espírito.

- Percebo o mecanismo de defesa, físico e psíquico, nos fatos que vejo na televisão e leio nos jornais e revistas, ou dos quais tomo conhecimento no meio social que freqüento – Júnior interrompe o discurso da mãe e tira proveito da atividade forense. Em processos criminais, por exemplo, sei do costume do réu de negar a prática criminosa de que é acusado, embora haja evidência de ser ele o autor do crime. Culpa e castigo, crime e pecado, são noções introduzidas na estrutura mental das pessoas através da educação ou por osmose. Daí, a imediata, automática e irrefletida negação de culpa para evitar o castigo.

- Colho outro exemplo da vida social – Leopoldo fala antes de Dorotéia recuperar a palavra. No futebol, logo depois de jogada faltosa, a primeira reação do jogador é levantar os braços para indicar que nenhuma falta cometeu. Tenta enganar o árbitro e evitar a punição. Crianças e adolescentes exclamam “não fui eu”, reflexamente, embora tenha sido deles a peraltice. Adultos negam prontamente a safadeza que praticam; defendem como legítima, a conduta que a opinião pública e a lei qualificam de imoral e ilegal. Quando estourou escândalo em nosso país, no último governo do século XX, a reação imediata do ministro da área econômica foi negar participação, apesar de envolvido até o pescoço nas falcatruas. Ameaçou processar judicialmente a quem o denunciasse. Defesa prévia imediata, reflexa, para intimidar. Deu certo. Figuras do governo e do sistema bancário responderam a processo. Ele não.

- Aquele governo e o primeiro governo eleito no século XXI, disputam o troféu do mais corrupto da nossa história republicana – Dorotéia recupera a palavra. Os dois presidentes saíram ilesos; nenhum foi processado, apesar de chefiarem quadrilhas. Foi necessário mulher na presidência da república para atacar a corrupção. A presidente poderá sofrer reveses ao enfrentar a canalha engastada no governo há mais de vinte anos.

- O primeiro presidente civil, após a ditadura militar, veio do Maranhão e ostentava o titulo de maior corrupto de quantos ocuparam a presidência da república – Leopoldo continua o assunto iniciado por Dorotéia. O segundo presidente, após a ditadura militar, veio de Alagoas. Fechou torneiras e se deu mal. A canalha não suportou a sede e o afastou do comando. Foi duplamente processado: no Congresso Nacional, condenado; no Supremo Tribunal Federal, absolvido. No processo político, basta a opinião para sustentar o veredicto. No processo judicial, a certeza é necessária. O terceiro presidente, após a ditadura militar, veio de Minas Gerais e completou o mandato do segundo com honradez. O quarto e o quinto vieram de São Paulo. Estes dois últimos e aquele primeiro ocupam os três lugares no podium dos presidentes mais corruptos da história deste país.

- A corrupção e o mecanismo de defesa são processos naturais – Dorotéia analisa sob a perspectiva de geóloga. Em a natureza tudo se transforma, declarava Lavoisier. Tudo flui. Ninguém pisa duas vezes no mesmo rio, enunciava filósofo grego, Heráclito, se me não falha a memória. Minerais, vegetais e animais sofrem processo corrosivo no fluir do tempo. Alguns duram mais, outros menos. As estrelas chegam ao fim e se transformam em buracos negros após milhões de anos. O corpo humano vira pó em poucos anos. O processo corrosivo ocorre também no mundo da cultura. Instituições, costumes, crenças, idéias, métodos, são corroídos por fatores emergentes: novos conhecimentos tecnológicos e científicos, novas necessidades e utilidades, reorientação de valores e interesses. Obsolescência, renovação, obsolescência, renovação, assim vai, alternadamente, nos motores, aparelhos e equipamentos.

- Sim, mas falávamos da corrupção no campo da ética, do ilícito moral e jurídico, e aqui, corrupção significa deterioração moral – Leopoldo esclarece. Subornar é corromper. O processo corrosivo pode ser natural, mas no mundo da cultura, está subordinado a regras humanas. Esta é uma das características da civilização. Os valores que informam essas regras devem ser acatados enquanto não houver remodelação aceita e eficaz.

- Os transgressores estão sujeitos à punição e ao desprezo das pessoas de bem – aduz Júnior. Além da corrupção ativa e passiva definida como crime, há tipos de conduta que entram no conceito genérico de corrupção: desvio de verbas, fraude em licitações, falsidade ideológica.

- O combate não extingue a corrupção, mas a estanca e a comprime – Dorotéia arremata. A corrupção moral ergue muralha à felicidade. Em nível físico, os corruptos desfrutam alegria e prazer com bens obtidos desonestamente. Falta-lhes, todavia, o ditoso estado de espírito. Das pessoas de bem, os corruptos recebem, quando muito, formal respeito em virtude da elevada posição social que eventualmente ocupam, mas sem a efetiva consideração e com a reserva íntima do desprezo que se manifestará no momento adequado.

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