sábado, 17 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XVIII.

Junior ouvia seu professor, na aula de direito penal, afirmar que em todas as nações há pessoas boas e más, honestas e desonestas, inocentes e criminosas.

- A ação e a omissão consideram-se crimes quando assim definidas na lei penal. Ações e omissões decorrentes da negligência, imprudência, ou imperícia, sem intenção de delinqüir, caracterizam o crime culposo e recebem tratamento especial com pena mais leve do que a cominada para o crime intencional, doloso. O aborto, exempli gratia, supõe a intenção do agente. Aborto é interrupção da gravidez, extração do embrião ou do feto que se encontra no útero. A extração é permitida quando a gravidez resulta de estupro ou quando oferece perigo de vida à gestante. Fora dessas hipóteses, abortar é crime. Na China, crime é não abortar. O objetivo do governo chinês é reduzir o excesso de população; controle da natalidade obrigatório. Entre nós, a pesquisa científica com células embrionárias é permitida; não se compara e nem equivale ao aborto.

A matéria provocou debate na turma. Alguns alunos sustentavam que além de criminoso, o aborto é pecado, enquanto outros sustentavam que não era pecado e nem devia ser crime. O professor se mostrou arredio porque o debate incluía fé religiosa. Externou seu pensamento de modo periférico, sem tomar partido.

- A tipificação da ação abortiva como pecadora depende de fatores predominantes no país, como ideologia, usos, costumes, crenças. Em nível coletivo, o aborto é visto pelos cristãos como violação da lei divina, porém, em nível individual, é visto por alguns, como assunto de caráter pessoal, laico, a ser tratado pela medicina.

- A questão é de consciência e de livre arbítrio – Júnior falou de maneira dúbia. O professor ficou sem saber se ele interrogava ou afirmava. Decorridos alguns segundos, Júnior esclareceu. “Os seres vivos têm consciência. Os humanos, além da consciência, têm arbítrio. Responde por seus atos o humano que atingiu pleno discernimento e adquiriu capacidade de orientar a própria conduta segundo os valores vigentes na sociedade”.

- Vejo que você acompanha bem as aulas. Parabéns. A consciência não é uma substância com ser próprio, em si e por si. Trata-se, como você disse muito bem, de função cognitiva mediante a qual os seres vivos se orientam no ambiente em que vivem. Estamos incluindo o tropismo como forma de consciência dos vegetais, porém vou me ater aos animais, já que pertencemos a esse reino. Ao tomarem consciência do meio natural, das necessidades individuais e coletivas, dos obstáculos à respectiva satisfação, os humanos se organizam com base nos valores que entendem fundamentais e que se expressam em crenças, ritos, costumes, doutrinas e regras éticas de caráter religioso e jurídico cuja violação é punível.

- Quando, no uso retórico, mencionamos o tribunal da consciência, parece que essa palavra adquire outro sentido, como se houvesse algo substancial e não mera função do organismo – Júnior se manifestou cautelosa e criticamente. Alguns colegas lhe dirigiram olhar de censura e gestos de deboche. O professor ficou impassível, como se Júnior tivesse que acrescentar alguma coisa. Acrescentou. “Os colegas que me desculpem, mas ingressei na faculdade para aprender, o que implica anterior estado de ignorância. Encaro o futuro diploma como carta de alforria, certificado de libertação das trevas da ignorância. Insisto sobre esse tema porque o entendo importante para a compreensão da responsabilidade civil e penal”.

O professor alertou para outros significados do vocábulo consciência. Na responsabilidade jurídica influi o estado de consciência do agente da ação ou da omissão ilícita. Citou a hipótese de isenção de pena quando o agente é incapaz de entender o caráter ilícito do fato.

- Além daquela função cognitiva objetiva, comum aos animais, o ser humano dispõe de uma função cognitiva subjetiva que lhe é própria, mediante a qual toma conhecimento da sua existência e da sua individualidade no meio em que vive. O humano tem autoconsciência; sabe que sabe; distingue o que vem do exterior e o que vem do interior do seu corpo e da sua mente. Serve-se dessa função cognitiva denominada consciência para mergulhar dentro de si, perscrutar o seu mundo interior somático e psíquico; conhecer faixas vibratórias da alma; ingressar no mundo espiritual. Em outra direção, serve-se dessa mesma função para perscrutar a esfera material do mundo em extensão macroscópica e microscópica; conhecer faixas vibratórias da matéria; transpor fronteiras do mundo físico. Os limites dessa função cognitiva são individuais. Os marcos são fincados de acordo com a possibilidade e a disposição de cada ser humano para empreender essas viagens sensoriais, emocionais e racionais ao exterior e ao interior de si mesmo. Na extensão máxima dessa busca o ser humano atinge um grau cósmico de consciência. Estar consciente é estar receptivo, atento, reconhecer estímulos externos e internos, ainda que não saiba explica-los. Durante o sono ou o desmaio, perde-se a consciência. Tomo consciência do passado ao recordar vivências pretéritas. Tomo consciência do valor a mim atribuído por terceiros, que gradua o meu amor próprio e me faz orgulhoso, arrogante, ou inseguro, submisso. Tomo consciência do valor das ações e omissões, minhas e alheias, qualificando-as de justas ou injustas, boas ou más, úteis ou nocivas, prudentes ou pusilânimes, lícitas ou ilícitas. Ao perceber o sofrimento que causará à família do devedor, o credor deixa de exigir o pagamento da dívida. Neste exemplo, a consciência moral superou a consciência jurídica. Aí está exemplificado o tribunal da consciência referido por Júnior: foro íntimo por onde transitam os valores que balizam as ações, omissões e decisões do indivíduo. Nessa instância íntima, a conduta do sujeito passa pelo crivo de juízos éticos que a permitem ou a proíbem, aprovam-na ou a reprovam, louvam-na ou a censuram. A esta esfera pessoal, subjetiva, circunscreve-se o caso do aborto, no silêncio do Estado.

- Sim, mas se o Estado silencia sobre essa questão, hipótese que ainda não ocorre em nosso país, resta o poder do sagrado e da tradição – argumenta Júnior. A maior parte da sociedade pode ver algo sagrado na gravidez e na vida, caso em que o aborto estaria repudiado. O aborto seria um sacrílego atentado contra preceito bíblico sobre a reprodução humana. Significaria contrariar a vontade divina.

Paciente e didático, pisando cuidadosamente nesse terreno movediço, o professor diz que o texto bíblico é obra humana, em idioma humano; para os crentes, o texto revela a vontade divina; para outros, manifesta a vontade humana, tanto a sincera como a maliciosa.

- Quanto ao sagrado, tal qual a consciência, não é uma substância com ser próprio em si e por si. Trata-se de um valor eleito pela inteligência humana ao lado de outros valores como o justo, o bom, o verdadeiro, o belo, o santo. De acordo com os seus sentimentos, emoções, paixões e grau de conhecimento, o ser humano cobre entes físicos e metafísicos com o manto da santidade, tornando-os sagrados. Na esfera do sagrado, os humanos depositam interesses e aspirações. Em si mesmo, Deus não é justo nem injusto; não é bom nem mau; não é verdadeiro nem falso; não é sagrado nem profano. Deus existe indiferente aos atributos com os quais os humanos o qualificam. A Natureza é espelho de Deus, mas ninguém sabe se também ele tem forma e substância. Cada indivíduo terá sua própria compreensão de Deus advinda do coração e, às vezes, do êxtase místico. Os ateus nele não acreditam. Os cientistas dele prescindem. A sagração varia. Pedras, árvores, animais, personalidades, crenças, rituais, doutrinas, entram na esfera do sagrado em comunidades tribais primitivas e sobrevivem nas culturas antigas e modernas. Os santos dos cristãos católicos nada significam para os cristãos protestantes e adeptos de outras religiões. Os livros de uma religião nada têm de sagrado para quem não é seguidor. As infantilidades, fantasias e falsidades contidas nesses livros são vistas pelos crentes como verdades sagradas. Numinoso, o sagrado tem raízes no temor, na fragilidade, na ignorância, na esperança, matrizes da crença religiosa e fontes de profundas emoções. Costume, inércia social, irreflexão, cristalizam o sagrado através das gerações.

- A idéia religiosa supõe a divisão entre o sagrado e o profano – pondera Júnior. No entanto, essa divisão nem sempre ocorre nas instituições humanas. Em países como Israel e Irã, por exemplo, o direito subordina-se à religião. Os tribunais ostentam símbolos religiosos.

- Caro Júnior! A religião foi o berço da moral, do direito, da filosofia, da ciência e do misticismo. A atividade social primitiva orientava-se por preceitos religiosos. O povo do Egito era considerado o mais religioso de todos os povos da antiguidade e alcançou notável grau de civilização. Em países como os citados por você, os símbolos religiosos nos tribunais são adequados. Em nosso país, com a proclamação da república, adotou-se o governo laico, separado da igreja. Vige o pluralismo de crenças e ritos. A nossa população segue distintas religiões como a cristã, a judaica, a muçulmana. Entre os cristãos há católicos, protestantes e espíritas. Destarte, usar símbolo de religião em nossos tribunais e repartições públicas quebra a isonomia e afronta as demais religiões. Crenças diferentes da minha merecem respeito. Cada pessoa é livre para seguir os preceitos morais e religiosos da sua família, enquanto a maturidade e a reflexão não lhe trouxerem novas escolhas e diferente visão de mundo.

Soou a campainha. O professor encerrou a digressão. Terminou a aula.

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