sexta-feira, 9 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XIV.

- Não tem sentido a policia prender bandidos e o juiz soltar – Isolda volta à carga. A mãe faz sinal para ela se calar. O avô não se importa.

- Não tem sentido, mas tem legalidade – atalha Grimaldi. Em nosso país, a lei é branda, elaborada por deputados e senadores desonestos que deixam brechas para eles próprios se beneficiarem na eventualidade de serem processados criminalmente por suas ações e omissões ilícitas. Contam com assessoria de advogados criminalistas que sugerem brechas visando a proteger futura clientela e aos vultosos honorários pagos por endinheirados agentes de crimes comuns e de crimes do colarinho branco. Inúmeras exceções legais e jurisprudenciais impedem a prisão de bandidos que estão livres, bem como, permitem a soltura de bandidos que estão presos. Inúmeros casos de redução da pena. Inúmeras dificuldades para manter bandidos na cadeia. Mentalidade libertina informa a lei penal brasileira. O juiz está vinculado a essa lei. O povo elege parlamentares que elaboram leis cavilosas. Em meados do século XX, Assis Chateaubriand, poderoso jornalista da época, obteve lei para atender aos seus pessoais interesses. A moda pegou. Leis personalizadas continuam a ser promulgadas para atender aos interesses específicos de pessoas naturais e de pessoas jurídicas. Em nossa história republicana os parlamentares nunca representaram o povo no plano dos fatos. O Congresso Nacional sempre foi instituição corporativista burguesa, mesmo nos governos de esquerda, que legisla em benefício de certos indivíduos, de algumas famílias, de grupo, sindicato, partido político, empresa, banco, igreja, escola particular.

- Isto é verdade – concorda Leopoldo. Muito fácil comprar vereadores, deputados e senadores. Basta dispor de dinheiro, influência, votos. Recentemente, o Congresso Nacional votou projeto de lei para proteger banqueiro condenado na justiça federal pela prática de delitos. O banqueiro obteve, para si, lei que veda prisão provisória a quem pratica delito do tipo que ele praticou. Será preso só quando a sentença condenatória transitar em julgado. Assim mesmo, terá modalidades suaves de cumprimento de pena. Depois de curto tempo, será posto em liberdade. Isto se chegar a cumprir pena, pois até o processo criminal chegar ao fim, o banqueiro estará com mais de 100 anos de idade!

- Os parlamentares seguiram a linha do hábeas corpus concedido a esse banqueiro pela suprema corte – acrescenta Geromina. O relator desse hábeas corpus merece o titulo de príncipe dos corruptos. A escabrosa decisão favoreceu o bandido milionário e inutilizou trabalho da justiça federal. Censurado publicamente por seu colega de toga em sessão do tribunal, esse relator foi o mesmo que concedeu hábeas corpus ao ginecologista condenado a quase 300 anos de prisão por molestar quase 40 pacientes. Liberto, o médico bandido fugiu para o Líbano.

- Todo este assunto sobre os aspectos práticos do direito trouxe à minha memória um conto de Machado de Assis, lido em sala de aula – Isolda fala animada, mudando de posição no sofá, pernas paralelas, ambos os pés no chão e o busto empertigado. Se bem me lembro – diz ela, colocando o dedo indicador da mão esquerda no centro da testa e pondo à mostra o esmalte escuro das unhas – o conto vinha com o título “Teoria do Medalhão” e as minhas colegas de classe acharam graça. Tratava-se de diálogo entre um pai experiente e pragmático e o filho que completara 21 anos de idade e portava diploma de bacharel em direito. O pai ensinava os artifícios para o filho se tornar medíocre e assim galgar postos elevados no governo e conquistar bom conceito na sociedade. Ele preparava o filho para ser um medalhão, ou seja, aquele modelo de pessoa que triunfa na sociedade graças à sua refinada mediocridade.

Dorotéia dá seqüência ao assunto em sintonia com as palavras do pai e do marido, sem se deter no comentário de Isolda.

- De cambulhada, nivelados ao vulgo em conseqüência de eles próprios vulgarizarem nobre função do Estado, os juízes recebem ofensas físicas e morais. Juízes são vítimas de assassinato e outros tipos de represália porque nas audiências ou nas sentenças, às vezes, humilham autores e réus. A par disto, no exercício regular, moderado e honesto da judicatura, os juízes contrariam interesses escusos, principalmente em processos envolvendo quadrilhas e bandidos do colarinho branco. Tomando por referência o quadro traçado pelo senhor, meu pai, vê-se que, no geral, as vitimas desses assassinatos e represálias pertencem à elite da magistratura, uma vez que o pelotão burocrata sempre encontra maneira de se esquivar dos riscos da função judicante.

- Creio que sim – Grimaldi concorda com a filha. Gostei do “pelotão burocrata”, expressão que você usou para qualificar coletivamente os barnabés de toga. Embora tenhamos mais de uma centena de juízes ameaçados, são poucos os assassinados se considerarmos não só o número de magistrados ativos e aposentados, como também o número de homicídios praticados em nosso país. Cada ameaça, cada assassinato, merece apuração rigorosa. No que tange aos juízes, entre eles há diferença de personalidade, de condições de saúde, de modos de prestar jurisdição. Equacionar relações entre juiz, promotor, policial, advogado, réu e opinião pública é tarefa complexa. Compete ao Estado o combate ao crime, porém, com divisão de tarefas como exige o princípio da separação dos poderes. As ações de prevenção e repressão cabem ao aparelho de segurança do Poder Executivo, que inclui as polícias civil e militar e o ministério público. O juiz não deve participar de tais ações, nem do planejamento respectivo, menos ainda se mancomunar com policiais, promotores e advogados. A toga não se presta a capa de justiceiro e de herói. Atar-se ao veleiro da justiça e não se deixar seduzir pelo canto da sereia é conduta que se espera do magistrado. Resistir ao fascínio dos holofotes é imperativo de quem exerce a magistratura. Basta ao juiz a coragem de julgar. O juiz não deve se comprometer com a prisão de quem está solto, nem com a liberdade de quem está preso, porque a ele cabe o exame imparcial da legalidade dos casos submetidos à sua apreciação. O juiz deve resguardar a independência do cargo, manter eqüidistância dos atores do drama criminal, assegurar a igualdade de todos perante a lei.

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