sábado, 3 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XI

- Pai, eu acho que os tribunais abusam desse lado político – diz Dorotéia. Veja o caso das terras indígenas. Atropelando o Congresso Nacional, a suprema corte ditou as regras para a demarcação sem atender aos aspectos técnicos e econômicos da região.

- Discordo, apesar de entender a sua visão de geóloga – responde Grimaldi. Os laudos técnicos informam, auxiliam, mas não decidem. Cabe ao juiz examina-los, confronta-los com as demais provas, conjuga-los com os fatores sociais, políticos e econômicos da região e estudar solução razoável para o caso dentro da ordem jurídica. Nisto consiste a louvável e criteriosa função política do magistrado. Procurar a solução mais adequada ao caso concreto dentro das variantes contidas no ordenamento jurídico caracteriza o aspecto político da judicatura. No caso citado por você, Dorotéia, o tribunal ditou regras de execução para demarcar as terras das tribos indígenas e evitar conflitos. O tribunal colocou diques nas águas turbulentas. A região foi pacificada pelo direito e não pelas armas. No âmbito da sua competência jurisdicional e no bojo do devido processo, o tribunal decidiu com fincas nos laudos técnicos, nos argumentos dos interessados, nos depoimentos de funcionários de repartição pública ligada a assuntos fundiários e na especializada opinião de setores da sociedade. Deu magnífico exemplo do que é política do direito sem confundi-la com política partidária.

- Mas havia naquele caso preceitos favoráveis tanto a um lado como a outro – Júnior questiona vivamente e dissimula a intenção de embaraçar.

- A resposta já foi dada por seu avô, Júnior! – Geromina repreende o neto. O tribunal verifica qual a norma que deve prevalecer no caso concreto. No processo judicial, autor e réu expõem as suas razões de fato e de direito; cada qual se sustenta no que a lei lhe favorece e aponta as obrigações do adversário. Este é o jogo forense.

- Os juízes interferem não só na demarcação das terras indígenas como também em outras modificações das áreas dos Estados. Eu acho isto um absurdo! Tais assuntos são da exclusiva alçada do povo, dos seus representantes no Congresso Nacional e do Presidente da República.

Dorotéia inflamou-se ao falar. Leopoldo, Júnior e Isolda apoiaram-na. Disseram que era aquilo mesmo; que os juízes estavam abusando; que estavam judiciarizando a política; que interpretaram canhestramente a lei da ficha limpa e mantiveram escancaradas aos bandidos as portas do legislativo federal, estadual e municipal; que deram uma bofetada no povo sabendo que essa lei era de iniciativa popular.

Com o sangue tirolês fervendo nas veias, Geromina se pôs em pé, traçou com o braço direito um semicírculo no ar abrangendo filha, genro, netos, e os admoestou.

- O que é isso? Que bombardeio é esse? O que vocês entendem de direito? Dorotéia entende de Geologia; Leopoldo, de História; Júnior e Isolda ainda são estudantes. Todos nós entendemos alguma coisa da vida, mas o tanto que ignoramos certamente é enorme. O que sabemos corresponde à ponta do iceberg. Grimaldi se aposentou para ficar longe dessas encrencas jurídicas e vocês querem lhe roubar o sossego?

Grimaldi levantou-se, dirigiu-se ao sofá onde Geromina tornara a sentar-se. As suas mãos emolduraram o rosto da esposa com a delicadeza de quem segura taça de cristal. Beijou-a na testa suavemente, comovido. A lealdade de Geromina se manifestara em diversas ocasiões ao longo do casamento. O tempo passou, o cabelo embranqueceu, a paixão amornou, o amor dominou. Bastava uma troca de olhares para se entenderem. Havia entre eles pequenos gestos de cumplicidade e de carinho: andar de mãos dadas, ajeitarem a gola do casaco ou o cabelo, afago no rosto. Pequenas gentilezas: ceder passagem, servir chá à esposa, fazendo mesuras e graça. Na ausência da filha, do genro e dos netos, esporadicamente, os dois bailavam na cozinha ou na sala.

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