quarta-feira, 21 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XX.

Enquanto Júnior comentava as catástrofes do passado remoto e do futuro próximo, Isolda foi entristecendo e acabou chorando. Naquela semana, os dias estavam ensolarados, o céu magnificamente azul, flores no jardim, grama e árvores no verdor exuberante, sonoro canto do bem-te-vi. De repente, ela sentiu de perto a dolorosa probabilidade da perda de toda essa beleza; dor, também, pela morte dos pais, dos avós, do irmão e dos amigos, se a vida no planeta se extinguisse.

Dorotéia levantou-se e foi se aconchegar à filha na poltrona individual. Leopoldo consolou-a com breve relato sobre o povo maia que viveu na América até o século XV da era cristã, na região compreendida entre a Guatemala e o sul do México. Falou sobre a cultura desse povo que incluía técnicas agrícolas, cerâmica, escultura em terracota, construção de templos, pirâmides e palácios, culto a divindades, cerimônias fúnebres, trocas comerciais entre cidades, jogo de bola e escrita hieroglífica. O calendário cíclico criado por esse povo incluía calendário solar, calendário sagrado e calendário que partia do ponto zero localizado no ano 3113 a.C. Júnior fez menção de interromper. Leopoldo o deteve com aceno da mão.

- Já sei. Você quer citar a semelhança da cultura maia desenvolvida no continente americano com a cultura egípcia desenvolvida no continente africano. Tal semelhança tem sido objeto de especulações. Quanto à catástrofe prevista no calendário dos maias, antes de nos desesperarmos, devemos consultar os astrônomos que dispõem de dados atuais. Caso o alinhamento dos astros se confirme, devemos nos informar sobre os prováveis efeitos disto em nosso planeta. Na hipótese de efeitos danosos, convém nos informarmos sobre a respectiva extensão, se afetará todo o planeta, se há meios de proteger os seres vivos. O prognóstico pode não se confirmar. Evitemos pavor precipitado. Bastam os suicídios gerados por falso alarme sobre o fim do mundo no século passado.

- Não era isso o que eu queria dizer – insiste Júnior. Eu queria dizer que o fim da humanidade e do planeta pode acontecer amanhã. Basta um meteoro gigante colidir com a Terra. Existe tal probabilidade. Em escala cósmica, o nosso planeta é um grão de areia. Pedra de 50 quilos lançada sobre um grão de areia tritura-o. Dir-se-á que, ao contrário do grão de areia, falta uma base sólida e fixa de resistência ao impacto necessária à trituração do planeta. Digo, então, que o impacto se assemelhará à cortada na bola em jogo de vôlei. O meteoro lançará nosso planeta fora da órbita. Adeus: privados destinos, papas, dalai-lamas e rabinos. Adeus: virgens cobiçadas e mulheres defloradas, busto de bronze e trem das onze. Adeus: olimpíadas e seminários, florestas e campanários. Adeus: arte e tecnologia, ciência e filosofia. Adeus: religião e misticismo, soberania e ativismo. Adeus: grandes países e dinásticas raízes; presidentes e ditadores, honestos e corruptores. Adeus: de poucos à riqueza e de muitos à pobreza, gente boa e gente à toa. A divina bondade tirou férias. Das forças telúricas, Deus não protege os seres vivos. Salve-se quem puder. Ao contrário das leis humanas, as leis divinas são inflexíveis e não admitem privilégios. O sol nasce para todos; as intempéries atingem a todos; os padrões divinos vigem nas galáxias, indistintamente.

Foi possível perceber uma dose de sarcasmo na intervenção de Júnior. Leopoldo o advertiu sobre o momento impróprio daquela manifestação. A irmã estava abalada emocionalmente com as perspectivas aterrorizantes e ele, Júnior, insistia no assunto e neutralizava os esforços da mãe para consolar Isolda.

- Meu filho, a compaixão deve existir mesmo entre irmãos – Leopoldo sentiu que tal palavra estava derrogada pelo caráter utilitário e consumista da sociedade contemporânea. Sei que compaixão soa como algo jurássico, todavia, por mais refratária que seja a sociedade atual, os sentimentos nobres resistem e sobrevivem porque emanam da força angelical que também integra a natureza humana.

Leopoldo fala convicto. Concorda com o pensamento e a crença da esposa de que na estrutura do ser humano interagem duas potências: uma angelical e outra demoníaca. O pólo positivo da força angelical vincula o humano ao mundo espiritual, desperta o sentimento ético, religioso e místico, a aspiração à santidade e a vocação para o sagrado e o artístico. O pólo negativo da força angelical desliga o humano das coisas do mundo material, despreza o corpo, estimula o jejum e a expiação pela tortura física. O pólo positivo da força demoníaca vincula o humano ao mundo material, orienta-o na busca do alimento, da água, do abrigo; estimula-o à relação sexual; previne-o do oculto perigo; dá-lhe a noção do profano; desperta o senso prático, a vocação para a tecnologia, a ciência, a filosofia, a política, a economia e o direito. O pólo negativo da força demoníaca desliga o humano das coisas do mundo espiritual; despreza a santidade e a moralidade; estimula a ambição e a competição selvagem; provoca destruição, guerra, vícios, crimes; busca domínio através da sensualidade.

- Às vezes, vem uma tristeza não se sabe de onde, chega sem avisar, entra sem bater e se acomoda em nosso coração – ao falar, Grimaldi exibe rosto sombrio, aperta a mão direita espalmada contra o peito. Sentimos vontade de chorar. Reviramos a nossa memória na busca da origem dessa visita sentimental. Talvez, venha da saudade que sentimos de pessoas que já morreram, ou de pessoas vivas, porém distantes. Quiçá, seja nostalgia dos amores perdidos. A fonte dessa tristeza pode ser a perda patrimonial recalcada. A compaixão pelos que sofrem neste planeta, despertada pelas cenas deprimentes transmitidas por veículos de comunicação de massa, pode ser a fonte dessa tristeza. Agitadas em nossa alma, as cenas provocam aquela tristeza em momento incerto, inesperadamente. Há uma sensação de impotência.

- A compaixão também propicia lucros aos espertalhões – Dorotéia apimenta o discurso de Leopoldo e de Grimaldi. Vejam o que acontece com a ajuda internacional a países da África. O dinheiro vai para o bolso dos governantes. Alimentos, bebidas, remédios, roupas e outros bens, são desviados e lançados no comércio, gerando ganhos a indivíduos impulsionados pelo pólo negativo da força demoníaca. Os destinatários da ajuda continuam ao desamparo.

- Não precisa ir a outro continente, minha filha – observa Geromina. Aqui mesmo em nosso país, a malandragem se faz presente. A cada catástrofe circulam vultosas quantias em dinheiro e enorme quantidade de bens de consumo. A população se mobiliza e presta ajuda humanitária. Parte dos destinatários fica a ver navios. O grosso do dinheiro vai para o bolso dos políticos. Parcela dos bens vai para armazéns de comerciantes. Os desonestos tiram proveito do espírito solidário do povo para lucrar.

- Na verdade, nem sempre há compaixão nessas tragédias – afirma Grimaldi. Na maioria das ajudas há solidariedade, ou espírito solidário, como diz Geromina, mas não há compaixão. Há senso de responsabilidade fundado na fraternidade, no sentimento ético, no reconhecimento de laços de mútua dependência e de comuns interesses, direitos e obrigações. A boa ação dá prazer ao benfeitor. Compaixão implica sentir a dor alheia, compartilhar da dor alheia. Isto é diferente de o benfeitor sentir-se moralmente gratificado pela ajuda prestada.

- A compaixão seria dispensável se houvesse felicidade na vida individual e coletiva dos humanos – comenta Dorotéia.

- Acontece que felicidade perene seria possível se houvesse paraíso – Leopoldo fala sisudo. A compaixão tem lugar no mundo terreno. Há momentos em que a nossa personalidade anímica vibra feliz. Há contentamento, júbilo, prazer, alegria, bem-estar, êxito, que juntos ou em separado, geram ditoso estado de espírito. Depois, passa. Vem a rotina. Vem a preocupação. Vem o sofrimento. O segredo é aumentar aqueles momentos felizes. Encarar a família, o estudo, a profissão, a natureza, como bênçãos. Tratar os dissabores alquimicamente.

- Tirar a cruz do ombro. Desmontá-la. Fazer linda fogueira. Cantar e dançar em volta. Vibrar de amor, incondicional amor – diz Dorotéia com entusiasmo. Ela cita imagem retirada do cancioneiro popular: a felicidade é como a pluma/ que o vento vai levando pelo ar/ voa tão alto/ mas tem a vida breve/ precisa que haja vento sem cessar.

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