sábado, 1 de outubro de 2011

CONTO

Capítulo XXV.

- Estou sentindo que é nesse ponto que a senhora e o papai divergem – Isolda fala como se houvesse descoberto um segredo.

- No que tange à humildade, não há discrepância entre a minha opinião e a da sua mãe – Leopoldo explica aos filhos. A diferença está no cenário. Não acredito absolutamente em reino de Deus separado dos reinos da natureza e da cultura. Creio na unidade do mundo e na multiplicidade das faixas vibratórias. Não acredito no juízo final. Juízo é operação mental própria do ser humano e que exige o cérebro como instrumento, tal como o conceito e o raciocínio. As personalidades desencarnadas intuem diretamente as coisas, sem necessidade de cérebro e dessas operações. Jesus está desencarnado, portanto, não formulará juízo algum. Se aceitarmos a proposição de que Deus não se confunde com Jesus, nem com qualquer outro ser existente no universo; que Deus é energia imanente e transcendente em concomitância; que Deus é luz, vida e amor; então, não haverá sentido atribuir-lhe cérebro e operações mentais a que estão sujeitos os seres encarnados. Se Deus é onisciente, onipotente e onipresente, então, ele tudo sabe por intuição direta, sem necessitar de órgãos físicos e das operações próprias do entendimento humano. Assemelhar Deus aos seres humanos é equívoco e o juízo final, grosseiro embuste.

Curioso e sedento por uma discussão entre os pais, Júnior refere-se a outros pontos de divergência. Isolda vibra no mesmo diapasão. “O cenário é mais amplo”, ela dizia para estimular a conversa. Leopoldo se prontifica a responder, embora em tom de encerramento e disposto a se recolher ao quarto de dormir, disto prevenindo os filhos.

- Penso que a divisão entre reino espiritual e reino material tem apenas importância didática. O reino divino abrange todas as galáxias, os reinos mineral, vegetal e animal, os universos paralelos, tudo vibrando em freqüências distintas. Vocês observaram o Rex? O nosso cão sente e ouve coisas que nós não sentimos e não ouvimos. Quando Dorotéia, longe da vista, a quilometro de distância, está para chegar de automóvel, Rex, no quintal, ergue a cabeça e fica de orelha em pé a espera. A sensibilidade do cachorro aos estados psíquicos do dono impressiona. Sentem quando o dono está saudável e quando está doente. “Só falta falar” dizem as pessoas ao notarem o cão sem adestramento atender ao comando verbal do dono. Mais do que o som das palavras, o cachorro capta a vontade do dono telepaticamente. Há vibrações percebidas pelos cães que os nossos cinco sentidos não registram. Segundo a Física, matéria é energia na sua origem e elementar expressão. A natureza dessa energia é vibratória. A vibração ocorre em freqüências distintas. Essas freqüências geram diversos campos de energia. Isto conduz a uma realidade mais ampla do que a percebida pelos cinco sentidos humanos, tanto na direção da baixa como da alta freqüência. O denominado mundo espiritual faz parte dessa realidade. Cuida-se de um campo de alta freqüência vibratória do qual o ser humano toma consciência esporadicamente pela intuição. Na opinião de René Descartes, a glândula pineal, localizada no centro do cérebro, é o órgão sensorial dessa intuição.

- Assim como nossos primitivos ancestrais – Júnior dá sinais exteriores de espírito crítico e tece algumas considerações – continuamos a crer em espíritos que falam e sentem como os humanos; que o chamado mundo espiritual é uma réplica do mundo material. Não creio que isto seja verdadeiro e sim que no mundo espiritual desaparecem as preocupações vividas no mundo material. Eventuais compensações por desvios de conduta são realizadas no mundo material, segundo a lei do karma. Pecado e crime são fatos e noções do mundo material. Tudo isto desaparece no mundo espiritual, campo vibratório de superior freqüência, como diz o senhor, meu pai. Nesse campo, as personalidades anímicas estão mergulhadas na lucidez e no amor da alma universal, sem os entraves da matéria. Nessa sublime realidade não há lugar para castigo e purificação. Cada personalidade ocupa o nicho compatível com a sua freqüência vibratória.

- Entre a minha opinião e a do seu pai há certa convergência – Dorotéia intervém com brandura. Acreditamos que no chamado mundo espiritual há personalidades que viveram entre nós e passaram pela transição; que podemos nos comunicar com essas personalidades; que tal mundo não tem estrutura atômica; situa-se fora do espaço e do tempo. Divergimos quanto à reencarnação das personalidades. Leopoldo nela acredita; eu, não. Penso que a personalidade anímica não tem existência individual, separada da alma universal.

- Desde a mais primitiva organização tribal, os silvícolas acreditavam na reencarnação dos ancestrais. No Oriente essa crença é antiga e permanece até hoje. No Ocidente, tornou-se um dos pilares do espiritismo e da doutrina mística.

- Apesar disto, Leopoldo, você sabe que tenho sérias restrições a essa tradição. Vejo muita crendice e pouca verdade. Essa crendice, no Ocidente, foi enxertada com uma indevida aplicação da teoria da evolução. A teoria de Charles Darwin se presta para explicar fenômeno natural que ocorre no planeta Terra e não para justificar doutrina religiosa. A reencarnação do mesmo Dalai-Lama, sempre um tibetano, líder de uma das seitas budistas, afigura-se ilusão provocada pela comunicação telepática entre a consciência da comissão investigadora e a consciência do investigado; simpatia entre investigador e investigado contribui para a escolha. O Dalai-Lama acumulava a função de pontífice com a chefia de Estado. Assim, o reencarnado devia pertencer à nação do Tibete. Separadas as funções, o Dalai-Lama poderá, sem óbices políticos, visitar qualquer nação que se disponha a recebê-lo como pontífice.

- Vejo aí, implícita, a essência do seu pensamento sobre tal assunto – comenta Júnior.

- Eu também – ajunta Isolda.

- Vou explicitar – prontifica-se Dorotéia. Se domar o desejo, o ser humano pode atingir estados de consciência elevados e chegar ao nirvana ainda em vida, sem passar pela roda de reencarnações mencionada por Sidarta Gautama, o primeiro buda. Após a morte do corpo, a personalidade anímica permanece onde sempre esteve: no seio da alma universal, oceano cósmico em que está mergulhado todo o universo. Não existe alma isolada, individual, no interior do corpo e sim uma personalidade formatada a partir do nascimento com vida e integrada à alma universal. Em não havendo alma individual, não há falar em reencarnação do indivíduo. O cadáver decompõe-se quimicamente. Vira pó, quando sepultado; vira cinza, quando cremado. Ressurreição e reencarnação não se sustentam diante dos fatos da natureza. Tais crenças resultaram da enganosa esperança de imortalidade de quem escreveu os textos religiosos. Produto da ignorância do passado, essas crenças são incompatíveis como o estágio atual do conhecimento. Personalidade alguma volta do mundo espiritual para ocupar um corpo que não existe mais, ou um novo corpo que ainda está no útero materno, ou que acabou de ser expelido. Ademais, esse retorno exigiria redução da freqüência vibratória, o que contraria a progressividade característica da energia fundamental. Em sendo matéria, o corpo vibra em baixa freqüência. A natureza não dá saltos. Logo, admissível o axioma: a freqüência vibratória é progressiva do mundo físico ao mundo espiritual. Não há retrocesso. Segundo o preceito místico “assim como encima, é embaixo”, cada faixa vibratória tem a sua própria freqüência, da esfera física à metafísica; diferentes tonalidades do teclado cósmico; acordes da mesma sinfonia.

Ao encerrar a explicação, Dorotéia diz que a personalidade anímica, após a morte do corpo, liberta-se das limitações da matéria e transita para faixa de superior freqüência no seio da alma universal; que desconhece a extensão desse teclado cósmico, se é limitada ou ilimitada; provável que a personalidade anímica vivencie luz maior e prossiga por freqüências mais elevadas sem abandonar o mundo espiritual; possível que algumas personalidades, seres iluminados, estacionem em alguma faixa vibratória daquele mundo com o propósito de orientar a humanidade, como os budas ou bodhisattvas, referidos na doutrina budista.

- Eu tenho a impressão de que a senhora já tocou neste assunto – Isolda faz breve comentário de aveludada censura, temperado com malícia, a fim de mordiscar a vaidade da mãe.

- É mesmo? Sintoma da terceira idade embora eu nem tenha completado 50 anos. Aliás, teus avós não são repetitivos, apesar de septuagenários. Conto com a tua benevolência. Receba a repetição como reforço das minhas idéias. – Embora falando baixo, Dorotéia estava irritada, pois percebera a intenção oculta na expressão da filha.

- Será a terceira idade de uma mulher simpática, bonita, lúcida, inteligente – atalha Júnior, animadamente, como fã incondicional da mãe.

Nenhum comentário: