sexta-feira, 23 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XXI.

Às vezes, na cidade, a família saía para lanchar, substituindo o jantar caseiro. Sanduíches, sucos, refrigerantes, tigelas de açaí, batatinhas fritas. Os filhos integravam a “geração saúde”: nada de bebidas alcoólicas, drogas e fumo; freqüentavam academias de ginástica e faziam caminhadas ao ar livre. Torciam por times diferentes. Pai e filha eram tricolores. Mãe e filho eram rubro-negros. Comentavam os jogos e a posição dos respectivos times na tabela de classificação do campeonato de futebol. Cada qual puxava a brasa para sua sardinha. Júnior e Leopoldo eram os mais apaixonados por seus clubes e quando a discussão pegava fogo, Dorotéia funcionava como bombeiro: “Basta o conflito em campo e nas arquibancadas”, dizia enérgica. Todos concordavam num ponto: a violência devia ser reprimida. Os árbitros deviam ser mais rigorosos. Os treinadores deviam exigir bom comportamento dos seus jogadores. A virilidade própria do futebol não devia se confundir com brutalidade. Cotoveladas, socos e tapas deviam ser punidos com cartão vermelho. Quem gostasse desse tipo de agressividade devia se dedicar a outro esporte, como a luta livre e o boxe.

Em uma dessas ocasiões, depois de depositar na mesa o guardanapo de papel que absorveu o excesso de molho de tomate que ficara nos cantos da boca, Isolda tomou o suco de maracujá que restava no copo e lembrou das questões de astrologia, do sacerdote e do cientista, postas por seu pai. Leopoldo nega haver tratado de astrologia. Dorotéia esclarece.

- Realmente, a conversa que tivemos na chácara dos meus pais era sobre astrofísica e não sobre astrologia. A opinião do pai de vocês harmoniza-se com a teoria de que o universo é um sistema de forças conexas. Concepção holística. A irregularidade nas órbitas da Lua e de Marte pode produzir efeitos na Terra: terremotos, maremotos, mudanças climáticas. As escrituras religiosas erram ao explicar fenômenos da natureza. Sabemos o que os evangelistas escreveram, mas não sabemos o que o próprio Jesus falou, escreveu ou ditou. Por isso, o pai de vocês citou a distribuição de competências entre o sacerdote e o cientista. Ao pousarem na Lua, os astronautas não encontraram o lanceiro São Jorge, a pé, ou montado em cavalo.

- Na época de Jesus – continua Leopoldo do ponto em que foi interrompido – não havia máquina fotográfica, gravador, aparelho audiovisual, instrumento algum que lhe registrasse a figura e a voz. Sabe-se que ele usava barba comprida e cabelos compridos repartidos ao meio, túnica alva e sandálias, porque assim se apresentavam os nazarenos em público e Jesus era um deles. Ignoramos se ele era alto ou baixo, gordo ou magro, feio ou bonito. Supõe-se que era robusto por suas andanças e seus enfrentamentos com os judeus. Do fato de ser hostilizado e tratado pelos judeus como gentio, isto é, como estrangeiro, podemos concluir que Jesus não era judeu. Por volta do ano 930 a.C, o reino hebreu dividiu-se em dois: Judá e Israel. Judeus e israelitas se odiavam. Os judeus ocupavam a Judéia, sul da Palestina. Os israelitas ocupavam a Samária e a Galiléia, centro e norte da Palestina. Por ser galileu, provável é a origem israelita de Jesus. Provável, também, que Jesus descendesse do povo oriental que ocupou aquela região depois da expulsão dos israelitas pelos assírios por volta do ano 722 a.C.

- A imagem verdadeira de Jesus e dos apóstolos pouco importa – Dorotéia fala convicta. Basta que a imagem do santo sirva de veículo à devoção. Importa o valor místico da personalidade e não o seu corpo. Admira-se a estátua, mas cultua-se o que ela representa. Para seus contemporâneos, Jesus era pessoa comum, alvo da ordinária atenção dispensada aos profetas milagreiros que infestavam a Palestina. Ninguém conhece a fisionomia daquela gente pobre e analfabeta que perambulava pelas ruas seguindo um daqueles profetas.

- Os historiadores que viveram naquele século nada falam sobre Jesus e seguidores, o que mostra a insignificância daquela modesta comunidade – Leopoldo concorda com Dorotéia. Bastou essa verdade assomar à consciência dos povos recentemente para que surgisse a notícia de que um preceptor de Pôncio Pilatos teria descrito a fisionomia de Jesus e que esse rosto coincide com o divulgado pela igreja. Provavelmente, tal notícia prepara mais uma das falsificações perpetradas pelos sacerdotes católicos para proteger os seus interesses e dogmas. Os orgulhosos e autoritários generais romanos não admitiam preceptores a lhes ensinar como agir. Exemplo de uma das falsificações: a via crucis. O caminho que Jesus percorreu com a cruz não é aquele traçado pela igreja em Jerusalém. O verdadeiro caminho é outro, mas permanece o falso para não prejudicar a renda proveniente do turismo.

- As aparências de Jesus e dos apóstolos na “Última Ceia”, pintada por Leonardo da Vinci na parede do refeitório de uma igreja em Milão, saíram da cabeça do artista – afirma Dorotéia. Pelo que se extrai dos evangelhos, os apóstolos não eram tão velhos como ali pintados, nem João era tão infantil e afeminado. A mensagem e os milagres atribuídos a Jesus saíram da mente dos evangelistas. Glorificá-lo e endeusá-lo facilitava adesões e o crescimento da nova religião. Duvidosa a fidelidade de um relato feito 50 anos após a morte de Jesus, considerando as precárias condições da época e a indigência cultural dos apóstolos, salvo poucas exceções.

- Acrescente-se a isso, Dorotéia, o múltiplo significado que uma palavra comporta e a importância de se conhecer o contexto para captar o sentido em que foi empregada. Somente dois evangelistas conviveram com Jesus: Mateus e João. Os demais nunca o viram. Todos os livros e epístolas do novo testamento foram escritos meio século depois da morte de Jesus, o que torna frágil a credibilidade das narrativas. Textos de discípulos que conheceram Jesus pessoalmente, como Felipe e Maria Madalena, foram desprezados pelos eclesiásticos que no terceiro século da era cristã procederam à seleção e formaram o novo testamento. Houve inclusões e exclusões de livros e epístolas segundo os interesses da igreja.

- Pois é, Leopoldo. Há passagens do novo testamento sobre pessoas que manifestavam a vontade de seguir Jesus. A um jovem rico que afirmava cumprir os mandamentos, Jesus aconselhou vender os bens e distribuir o produto aos pobres se pretendesse atingir a perfeição. O jovem desistiu. Jesus então fala da dificuldade de um rico entrar no reino divino. Outras pessoas estipulavam condições para segui-lo: segurança de ter onde reclinar a cabeça, sepultar o pai, despedir-se dos parentes, e assim por diante. Jesus diz, então, não estar apto ao reino de Deus, aquele que olha para trás depois de ter posto a mão no arado.

- Seria mais útil Jesus aceitar a riqueza dos postulantes – Isolda fala em tom de censura e com espírito prático. Essa riqueza ajudaria a cobrir as despesas da escola, a expansão da doutrina, sem depender da caridade alheia. Acho um absurdo Jesus recusa-la e mandar seus discípulos catequizar em diversas cidades e aldeias sem um centavo no bolso, sem bordão, sem mochila, sem pão, só com uma túnica a cobrir o corpo e uma sandália nos pés. Além disto, se fossem esbofeteados em uma das faces, os discípulos deviam oferecer a outra. Ninguém merece!

- Taí! Gostei da escola – Júnior vibrou com a expressão utilizada pela irmã. Se Jesus era mestre, ensinava uma doutrina e tinha discípulos, então havia uma escola. Dispensável casa para que haja escola. Jesus e os apóstolos percorriam cidades e aldeias do território palestino ensinando em lugares fechados ou abertos, como os peripatéticos.

- Eu vi os peripatéticos na televisão – intervém Isolda, alegremente. Eles faziam graça com muita pancadaria.

- Realmente – Leopoldo entra no diálogo dos filhos – Jesus e apóstolos se deslocavam pelo território da Palestina, porém, do novo testamento não se tira a conclusão de que eles ensinavam passeando. Ao contrário, eles ensinavam diante da platéia fixa, em casas, nas sinagogas, no templo de Jerusalém, ou ao ar livre como na montanha do famoso sermão. A escola de Aristóteles recebia o apelido de peripatética por causa do costume do filósofo de ensinar passeando com seus alunos no terreno da academia. Aristóteles agregava gestos e passos às palavras. A sua platéia era móvel. Embora os comediantes gesticulassem muito nos filmes mencionados por você, Isolda, eles o faziam como patetas, ou seja, como pessoas idiotas. Os filmes são antigos e compõem a série intitulada “Os Três Patetas”. A pancadaria é característica do humor estadunidense, inclusive nos desenhos infantis.

Saíram da lanchonete. Passearam pela calçada e pela praça. Galerias e vitrines iluminadas, passos apressados de uns, lentos de outros, veículos a rodar pelas ruas asfaltadas. Retiraram o automóvel do estacionamento, pagaram o tempo de permanência e voltaram para casa. Trânsito bom e noite agradável. Quando o automóvel entrou na arborizada rua da casa onde moravam, sentiram o perfume da flor noturna.

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