domingo, 18 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XIX.

A família estava reunida na chácara dos avós quando Júnior revolve pontos discutidos em dias anteriores. Dorotéia e Leopoldo divergiram sobre a autenticidade da mensagem de Jesus contida nos evangelhos. No entanto, o casal concordara sobre o caráter irracional, falso e fantasioso das explicações sobre a origem do universo e do homem contidas na bíblia. Concordavam em que o antigo testamento resultara da malícia e da esperteza de um pequeno grupo de privilegiados que sabiam ler e escrever por volta dos séculos VI a IV a.C. Essa minoria se aproveitou da ignorância do modesto povo hebreu para mantê-lo sob rédeas através do temor e do terror. Por outro lado, os textos serviram para supervalorizar um povo de pouca significância na época e passar falsa e glorificada imagem para a posteridade. Na opinião do casal, a via adequada para aquelas explicações é a ciência. Isolda pediu exemplo. Dorotéia fornece-o da sua área de estudo.

- De acordo com o Gênesis, livro inaugural da bíblia, Deus criou o universo. O seu espírito pairava sobre as águas e a terra estava informe e vazia.

Dorotéia estica os braços à altura dos ombros, mãos na vertical, palmas voltadas para frente, fecha os olhos e aperta os lábios. Faz suspense por alguns segundos. Grimaldi e Geromina trocam olhar divertido, na cumplicidade gerada por dezenas de anos de vida em comum. Depois do breve intervalo, Dorotéia expõe o seu pensamento.

- Pois, bem. Começo abrindo parênteses porque não consigo me conter. Aqueles espertalhões que escreveram o Gênesis e outros livros da bíblia colocaram a mulher em posição subalterna diante do homem. Fizeram-na sair da costela do homem e não da original criação divina. Adão e animais foram todos formados da terra pelas mãos de Deus. A mulher não. Segundo aqueles escritores, a mulher formou-se do osso do homem; carne da carne do homem. Deus lhe impôs papel subordinado ao expulsá-la do paraíso: “Multiplicarei os sofrimentos do teu parto, darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio”. Segundo o Gênesis, a criação e esse episódio ocorreram por volta do ano 6.000, a.C. Todavia, as mulheres já viviam há milhões de anos e passavam por essas dores e sofrimentos. Nada de novo, a não ser o domínio pelo homem. Aqueles safados estabeleceram o poder do homem sobre a mulher em nome de Deus! Daí a submissão da mulher durante milênios em nações que adotaram a cultura judaica, cristã e muçulmana. Os esforços isolados de algumas mulheres ganharam força no século XX e neste século XXI, em direção à igualdade. A resistência ao movimento feminista foi muito grande e ainda continua. Em decorrência do peso daquelas religiões, grande parcela das mulheres ainda aceita a submissão, o papel subalterno no lar, na sociedade e no Estado. Contudo, nota-se aumento do número de homens que aceitam a igualdade em relação às mulheres tanto no mundo ocidental como no mundo oriental. Fecho os parênteses.

- Ao contrário do que consta da bíblia, as águas brotaram depois da formação geológica do planeta, o que levou bilhões de anos. Parte do volume das águas surgiu dos gases que emanaram do interior do planeta. Esses gases geraram chuvas por milhões de anos do que resultaram oceanos, mares, rios, lagos. Outra parte do volume das águas surgiu de cometas que ao se chocarem com o planeta o inundavam. A fisionomia atual do nosso planeta não é a mesma de bilhões de anos atrás. Houve modificações através das diferentes eras geológicas. Ainda hoje, podemos verificar nos continentes africano e americano o início de alterações que se concluirão daqui a milhares de anos.

Geromina resolve intervir, mostrar que estava atenta e disposta a colocar sua colher naquele mingau. Grimaldi, a filha, o genro e os netos observavam quietos e vivamente interessados no que ela tinha a dizer.

- Assim como Dorotéia, eu também abro parênteses antes do tema principal. Dos livros da bíblia verifica-se que aquele deus hebreu de nome Javé ou Jeová era genocida, cruel, sanguinário, belicista, vingativo, mentiroso. Tratava-se de deus de um povo e não de todos os povos, criado por um grupelho. As outras nações tinham os seus próprios deuses. Na verdade, aquele deus do antigo testamento é o retrato do diabo, deus do ódio e da vingança, diferente do Pai Celestial propagado por Jesus, deus do amor e do perdão. Fecho os parênteses.

- Há outros exemplos que estão na esfera de competência das ciências e não mais da religião. A origem da vida neste planeta é um deles. Certamente, haverá seres vivos em outros rincões deste imenso universo, mas agora focalizo o nosso planeta. Há milhões de anos, quando se reuniram condições favoráveis, como atmosfera, água e diversas associações químicas da matéria, surgiram formas elementares de vida biológica em nosso planeta que evoluíram do simples ao complexo. Vegetais e animais se desenvolveram. Multiplicaram-se as espécies. Ao contrário do que consta da bíblia, a espécie humana surgiu em diversos pontos do planeta como as demais espécies. Não houve um casal único do qual descenderia a espécie. Da história geológica do nosso planeta, como descrita por Dorotéia, constata-se que nunca houve paraíso. Fósseis encontrados e estudados por paleontólogos indicam que tipos humanos surgiram em diferentes locais e épocas.

- Vida biológica, vó? – na pergunta de Isolda vai, implícita, crítica à expressão utilizada por Geromina, como se fosse pleonasmo.

- Isso mesmo, vida biológica – Dorotéia ralha com a filha, antecipando-se a Geromina. Há uma concepção ampla de vida, sabia? Todo o universo é concebido como um organismo vivo. Considera-se vida a energia que movimenta o universo. Este é o sentido cósmico do vocábulo vida. Compõe a mística tríade no âmago do universo: luz, vida e amor.

- A religião tratava do assunto como se a Terra fosse o centro do universo e o homem o centro das atenções de Deus – Leopoldo se pronuncia em sintonia com as opiniões da esposa e da sogra. Ao adquirir autonomia, a ciência mostrou o erro dessa concepção. A bíblia explica a origem e o fim do mundo de um modo diferente da explicação científica. Calcula-se que em seis bilhões de anos, o Sol queimará todas as suas reservas de hidrogênio; converter-se-á em massa vermelha gigante; engolirá os planetas mais próximos: Mercúrio, Vênus, Terra. O universo continuará a existir com seus bilhões de galáxias. Apenas o sistema solar será desmantelado no interior da nossa galáxia. O conhecimento científico e tecnológico conquista terreno próprio e enseja aplicação ao ditado popular: cada macaco no seu galho. À esfera do sagrado, a religião; à esfera do profano, a ciência. Ao mundo espiritual, o sacerdote; ao mundo material, o cientista.

Júnior e Isolda se entreolharam. Os olhos do moço buscavam cumplicidade; os da moça, o hilário. A mãe percebe as nuances da alma dos filhos, ainda quando tentam dissimular.

- Está bem! Sosseguem! O pai de vocês colocou uma pitada de graça na conversa ao mencionar o macaco. Pronto. O fim da vida em nosso planeta pode resultar também da imprudência humana. O planeta pode se esfarelar em conseqüência da explosão de artefatos nucleares. Ação predatória e poluidora pode destruir fontes vitais do planeta. Água pode faltar até o final do século. Dos observatórios astronômicos vem notícia de que a Lua está se afastando da Terra. Algum dia, daqui a milhões de anos, ela escapará da sua órbita, o regime das marés extinguir-se-á e as conseqüências serão desastrosas se ainda houver humanidade.

- Já pensei sobre isso, Dorotéia – Leopoldo aproveita a dica. Vejam: enquanto a Lua vagarosamente se afasta, o planeta Marte se aproxima da Terra conforme aconteceu nos anos 30, do século XX, e voltará a acontecer neste século. Considerando a mútua influência dos astros, esse distanciamento da Lua, apesar de lento, e essa aproximação de Marte, apesar de episódica, certamente acarretam distúrbios na Terra. Esse fato ajuda a explicar alterações climáticas e fenômenos que causam danos e sofrimento à humanidade.

- Segundo lições que aprendi ainda no curso colegial – Júnior estampa no rosto exagerado esforço de memória a fim de impressionar a minúscula platéia – houve distúrbios provocados por choque de corpos celestes contra o nosso planeta. Marcas profundas foram deixadas na superfície. No subsolo, placas tectônicas mudaram de posição. Houve inundação. Foram extintas espécies de seres vivos como os dinossauros. O dilúvio relatado em escrituras e tradições de diferentes povos realmente existiu. Na verdade, houve mais de um dilúvio, vários dilúvios em diferentes épocas. Agora, vem notícia desairosa, apoiada no calendário do povo maia: haverá nova catástrofe no dia 21 de dezembro de 2012, gerada pelo alinhamento dos planetas do sistema solar.

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