terça-feira, 30 de agosto de 2011

CONTO

Capítulo IX.

Júnior parecia inconformado com as declarações de Grimaldi. “Meu avô deve estar esclerosado, impertinente e implicante por causa da idade” – pensou.

- Vô! Desculpe interrompê-lo. Esse quinto constitucional não foi instituído para arejar os tribunais? – as feições de Júnior denotavam frustração e impaciência.

- Tolice, meu neto. Magra justificativa para o ingresso espúrio. A experiência forense não confirma aquela teoria. Falam de arejar, de renovar o ar, no falso pressuposto de que a atmosfera dos tribunais seria pestilenta se lá funcionassem exclusivamente juízes de carreira. Na verdade, a chegada dos advogados sem concurso nada contribui para melhorar a prestação jurisdicional. Eles compactuam com os vícios existentes nos tribunais; aderem às correntes da jurisprudência e da doutrina já estabelecidas; contribuem para a lentidão da marcha dos processos.

- Das suas palavras, vô, deduzo que mais seguro para os jurisdicionados é o exercício da função judicante exclusivamente por juízes que prestam concurso público.

Grimaldi, experiente desembargador aposentado, olha firme para o neto, movimenta a mão com o indicador ereto apontado para o teto e explica.

- Sim, mas note que no concurso para juiz de carreira intervêm padrinhos e mecanismos que favorecem os apadrinhados. Alguns candidatos são aprovados pela idoneidade do saber enquanto outros são beneficiados por aqueles mecanismos. Alguns são capazes e outros incapazes de operar com o raciocínio jurídico, a mais sutil forma de pensar. Os incapazes aplicam mal a lei. Capazes e incapazes podem comungar o senso de justiça, mas os primeiros colocam-no adequadamente nos seus atos jurisdicionais. Beneficiários dos camuflados mecanismos paralelos de ingresso e progresso na carreira, os incapazes atendem solicitações de lobistas e de padrinhos; pouco se importam com a justiça ou injustiça das suas sentenças. Inclua no rol das anomalias: raciocínio capenga, manobra cerebrina, expressões vulgares. As maiores vítimas dessa conjuntura são: de um lado, os jurisdicionados, que vêem as suas causas submetidas a cavalgaduras e a venalidades; de outro lado, o Poder Judiciário, que vê seu prestígio descer a ladeira.

- Pai, o senhor falou em mecanismos paralelos. O senhor poderia ser mais explícito?

- Pois não, Dorotéia. A tua perplexidade ante o meu relato vem acompanhada da sombra de dúvida que percebo no teu pedido. Lembre-se: por décadas eu estive lá dentro. Vi o que gostaria de não ter visto. Recusei-me a imitar o avestruz e cobrir a cabeça na esperança de me defender das coisas desagradáveis que aconteciam nas cercanias. Os mecanismos são conhecidos no setor público: nepotismo, fraudes, adulações. Explicito mais ainda o meu depoimento com o seguinte exemplo. Padrinho obtém junto a membro da banca examinadora informação privilegiada. No bar dos magistrados, na câmara ou na turma, como se falasse ao Olimpo, o examinador diz: “Parece interessante neste concurso solicitarmos aos candidatos conhecimentos sobre tais pontos de tais matérias”. Lançada a senha, o colega interessado passa a informação ao afilhado que, por sua vez, decora a “interessante” matéria. O padrinho passa aos membros da banca breve manuscrito com a letra do afilhado. Na correção das provas, os examinadores identificam o afilhado pela letra e lhe dão a nota máxima. O afilhado é aprovado nos primeiros lugares. Conquista louvor e desestimula censura. Não é à toa que há tantos filhos, filhas, genros, noras, cônjuges, parentes e amigos de desembargadores, ministros e outras autoridades na magistratura.

- Aparentemente, o afilhado preenche todos os requisitos do concurso e ainda é aprovado em primeiro lugar, acima de qualquer suspeita. Creio que isso acontece também em outros setores da administração pública. O nosso país é o paraíso da corrupção – Geromina comenta e balança a cabeça em sinal de desgosto.

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