sexta-feira, 26 de agosto de 2011

CONTO

Capítulo VII.

Chovera forte à noite. A família reparava os estragos. Telhados do galpão e do curral, quintal, jardim, varanda, tudo fustigado pela ventania. Durante a faina, pausas para sanduíches e refrescos. Ao findar o dia, findou o trabalho. A poda das árvores abaladas ficou para o dia seguinte. Banho tomado, roupas limpas, veio o jantar preparado por Anastácia e Geromina. Depois, acomodaram-se na sala. Tomavam chá digestivo. Motivada pelos constantes xingamentos entre os filhos, Dorotéia dizia que o fato de eles serem irmãos não afastava o dever de mútuo respeito e que esse dever estava na base das relações humanas saudáveis, dentro e fora de casa. No intuito de adular a mãe, embora com nuance zombeteira para compensar a reprimenda, Isolda sugere que a mãe devia ser advogada ao invés de geóloga, tendo em vista a sua facilidade de expressão.

- Adoro a minha profissão e não a troco por outra. Ademais, expressar-se bem não é apanágio dos advogados. Alguns até se expressam mal, falando ou escrevendo.

- Delegados, promotores, procuradores, juízes, também apresentam deficiência quando externam suas opiniões e formulam seus raciocínios – emendou o avô.

- Até juízes, vô? – pergunta Júnior, com espanto.

- Sim, até juízes. Não se iluda com o estereótipo: “juiz exerce missão divina, é pessoa sagrada, culta, de perfil moral e intelectual superior ao dos outros cidadãos”. Nada disto. Sinto muito desapontá-lo. A missão nada tem de divina e o juiz nada tem de sagrado. Julgar é operação mental própria do ser humano: reunir idéias em proposições. Em sendo onisciente, onipresente e onipotente, Deus apreende as coisas diretamente sem necessidade alguma das operações da inteligência humana como a de julgar e a de raciocinar. Em decorrência daqueles atributos, Deus não necessita de analisar, sintetizar, deduzir ou induzir. A missão do juiz é humana: declarar o direito, resolver litígios na forma da lei, inspirado no ideal de justiça. Como pessoa, o juiz pode ser religioso e caridoso. Como juiz, a pessoa exerce a autoridade do Estado para resolver controvérsias, sejam os litigantes crentes ou ateus, ricos ou pobres, civis ou militares, todos iguais perante a lei. O magistrado não julga em nome de Deus e sim em nome do Estado. Ao julgar, não faz caridade e sim justiça.

- O senhor fala em justiça, mas o que é e onde está essa tal justiça? – Isolda perguntou incrédula e agressiva ao mesmo tempo, decepcionada com decisões dos tribunais.

Os pais disseram para Isolda dar um tempo, controlar-se. “O mênstruo deve ser a causa da irritabilidade dessa mocinha”, pensou o avô, antes de dizer que estava tudo bem e que aquela atitude era própria da adolescência. Grimaldi atendeu à marota interpelação da neta. Complacência de avô. Ajeitou-se na poltrona, pigarreou, juntou os dedos das mãos à altura do peito, fitou o ar, refletiu e externou o pensamento.

- Justiça está em qualquer recanto onde houver comunidade humana. Justiça é um valor categórico brotado do sentimento e da noção do bem e do mal. Consiste em cada ser humano receber o que merece na proporção das suas ações e omissões. Da conduta humana resultam prazer e dor, alegria e tristeza, felicidade e infortúnio, prêmio e castigo. Justiça compreende honestidade, respeito à vida, à dignidade, à liberdade e ao patrimônio das pessoas. Como acentuou Aristóteles e nele se inspirou Ruy Barbosa, justiça implica tratar a todos igualmente na medida em que se desigualam. Em função da necessidade de ordem sem a qual a comunidade humana se desintegra, nem todos se dedicam às mesmas tarefas. As pessoas vivenciam situações distintas e ocupam diferentes posições na organização social. Diferenças naturais e diferenças artificiais indispensáveis ao funcionamento da sociedade entram no cálculo do justo. Ignorar essas diferenças e nivelar pura e simplesmente é forçar igualdade e cometer injustiça.

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