quarta-feira, 24 de agosto de 2011

CONTO

Capítulo VI.

Recordando os episódios de antanho vividos na cozinha da sua casa e na escola, inspirado pelo ambiente rural da chácara do avô, Júnior matutava: “Ao comermos o ovo antes de o pintinho nascer impedimos um ser galináceo de vir à luz do mundo. O destino do ovo é virar pinto para multiplicação da espécie. Portanto, comer o ovo seria crime contra a vida”. Júnior traçou paralelo com o embrião humano valendo-se das lições de ciências naturais que recebera nas séries avançadas do primeiro grau de estudos, antigo curso ginasial. Imaginava o que aconteceria se com o embrião humano se fizesse o mesmo que se faz com o ovo. Muitas crianças deixariam de nascer. Gente é diferente (saboreou a rima). Prosseguiu no solilóquio. “Se não nos alimentássemos dos produtos da natureza não haveria como sobreviver. Dos seres vivos tiramos a vida para vivermos”. Na íntima fanfarronice, louvou a sua sabedoria. À noite, durante o jantar, ele tocou no assunto. O avô não gostou. “Que coisa mais desagradável e inoportuna para trazer à mesa, Júnior!”. Dorotéia saiu em socorro do filho.

- Vegetais são arrancados da terra e animais são mortos para alimentar os seres humanos e lhes conservar a vida. Essa é a lei natural. Comemos os ovos das galinhas, as próprias galinhas e a carne de animais dos quais retiramos peles, ossos e chifres para fazer agasalhos, botões, adornos. Colhemos frutas, verduras, legumes e cortamos árvores para fabricar casas, móveis, papel.

- A bem da saúde do nosso planeta e da humanidade, a cada árvore cortada deviam ser plantadas duas – acrescenta Leopoldo.

Isolda não perdeu a chance de azucrinar o irmão e, ao mesmo tempo, agradar ao avô. Os dois adolescentes viviam às turras. Isolda não era de esquentar a cabeça. Embora inteligente e observadora, era menos questionadora do que o irmão. Ela era mais prática e um tanto manipuladora. Achava o irmão “um porre” quando questionava demais.

- Pô, Junior, você se acha tão inteligente, mas não sabe distinguir as coisas. A criança está na barriga da mãe e o ovo fora da galinha, seu bobo.

- Criança uma ova! Na barriga da mãe está o embrião ou o feto, sua idiota – retrucou Júnior, irritado com a picardia da irmã. Sem se importar com o muxoxo do avô, ele vai em frente: “Na aula de religião o aborto é tratado como crime contra a vida e um pecado contra Deus. Reluto em aceitar o ensinamento, já que impedir o nascimento do pintinho é o mesmo que provocar aborto. Tal impedimento seria crime contra a vida e pecado contra a lei divina, o que ninguém admite. O governo chinês incentiva o aborto. Os chineses são criminosos e pecadores? Há povos virtuosos e inocentes e povos viciosos e culpados? Povos pecam ou só os indivíduos?”.

O avô, maçom de carteirinha, 33º grau do rito escocês e aceito, interrompeu a discussão antes que os dois netos se engalfinhassem.

- Eu sabia que o assunto terminaria em briga. Esse é um tema que a ciência encampou e do qual a igreja se nega a abdicar. A igreja resiste ao conhecimento científico quando discrepa dos seus dogmas. O feto só se torna criança depois de sair do corpo da mãe, uma vez cortado o cordão umbilical e desde que respire pela primeira vez, exibindo vida autônoma. Aliás, há religiões como a cristã, a judaica e a muçulmana que insistem em explicar os fenômenos da natureza através de dogmas que não se sustentam diante da ciência física e da ciência jurídica ocidental.

Júnior aproveitou o ensejo e se dirigiu à irmã com um provocador “viu o que o vô disse?”. Em atitude desafiadora, Isolda respondeu: “Não, não vi; eu apenas ouvi; seu pamonha”. Dorotéia repreende os dois: “Parem as agressões. Mantenham a linha da boa educação ou então encerro a conversa; daqui da varanda vocês irão para os quartos”.

Nenhum comentário: