quinta-feira, 18 de agosto de 2011

CONTO

Capítulo III.

Júnior dirigiu ao pai um olhar interrogante como se indagasse de onde saíra aquele fenecem. Em apreensão telepática operada pela sintonia entre as duas mentes, o pai captou o pensamento expresso no olhar inquisidor do filho.

- Está bem! Substituo por morrem. Está satisfeito? – Leopoldo dá seqüência ao assunto sem esperar a resposta do filho. “O Sol conserva o seu tamanho e a sua intensa atividade, com explosões colossais. Para nós, distantes observadores, os corpos celestes parecem mudar de tamanho na ordem inversa da distância que deles nos separa”.

Leopoldo começava a exagerar na linguagem, nos gestos e no caráter científico da exposição. Parecia professor. Vendo o pai de pijamas, na cozinha, com a frigideira na mão, movimentando os braços e falando em tom doutoral, o menino sentiu vontade de rir, porém se conteve. O pai poderia zangar-se. “Quanto mais longe estiver o observador – dissertava Leopoldo – menor parecerá o objeto observado; quanto mais perto estiver, maior parecerá. No entanto, o tamanho do objeto em si mesmo não se altera. Olhe este ovo”. Júnior olhou e avaliou: pelas manchas amareladas o ovo devia ser de galinha caipira como aqueles ovos da chácara do vô Grimaldi. Implacável, Leopoldo, qual sargento no quartel, ordena: “Vá até a cerca do quintal e olhe para cá. O ovo não parece bem menor?” Júnior concordou e retornou à cozinha, arrependido de acordar o pai antes da hora. Torcia para “dona Dorotéia”, como ele carinhosamente tratava a mãe, e Isolda, sua irmã, logo se levantassem da cama. Provavelmente, a conversa tomaria outro rumo. “Os sentidos da visão, da audição, do olfato, do paladar e do tato podem enganar se não estivermos atentos e se não fizermos bom uso da nossa inteligência”.

Leopoldo concluiu o discurso, entabulou conversa mais amena e continuou a matinal tarefa doméstica. Bateu o ovo contra a quina da frigideira sem a habilidade da esposa. Lá se foram clara e gema a escorregar pelo fogão, atraídas pela força da gravidade, em direção ao tapete de borracha. O garoto notou a clara e a gema unidas até o destino final. A professora dizia que aquilo era uma célula. A gema era o núcleo e a clara o citoplasma. “A tia Olga tomou citoplasma quando foi operada no hospital” – aparteou o garoto na ocasião daquela aula, faceiro por impressionar a classe. Delicadamente, a professora explicou que a tia tomara plasma, parte líquida do sangue que contém substâncias importantes, como glicose e vitaminas. “Citoplasma é a matéria da célula excluído o núcleo. Protoplasma é a matéria da célula incluído o núcleo. Em nosso idioma, uma só palavra pode ter vários significados. Isto ocorre com o vocábulo plasma, que além de significar líquido sanguíneo, significa um tipo de gás carregado de partículas positivas e negativas e também significa a matéria sob alta temperatura nas estrelas”. Júnior gravou na memória a lição da professora. Aquela célula se transformava em pinto dentro da casca do ovo.

Quieto na sala de aula para não ser novamente alvo das zombarias e brincadeiras dos seus colegas, que incluíam tapas na cabeça e empurrões, Júnior lembrou dos ninhos existentes no galinheiro da chácara do seu avô. As galinhas ajeitavam-se sobre os ovos, cobrindo-os por inteiro com os seus corpos cheios de penas. Ficavam ali, dias e dias, chocando aqueles ovos, até a época do nascimento dos pintos. Lembrou da maciez e da cor amarela da penugem dos pintos e de como a galinha ficava irritada e ferozmente agressiva quando alguém se aproximava. Nem os galos ousavam invadir o espaço da galinha e da ninhada de pintos. Por natural associação de idéias, veio à mente de Júnior a conduta de dona Lúcia, moradora do mesmo bairro, mãe dos seus amigos Luiz e Cirilo. Dona Lúcia não temia brigar com os vizinhos, como já acontecera muitas vezes, nem altercar com as professoras nas reuniões dos pais e mestres organizadas pelo colégio, quando se tratava de defender os filhos que, na opinião dela, eram uns anjos, mas na opinião das inspetoras, uns demônios. Em uma dessas reuniões, Dorotéia, na condição de mãe de aluno e na intenção de apaziguar, ponderou: “Devemos examinar o caso de Luiz e Cirilo com tolerância e carinho, pois todos nós somos anjos e demônios. Tal bipolaridade integra a natureza humana. Duas forças antagônicas no mesmo corpo. Durante a nossa existência transitamos incessantemente do pólo angelical ao pólo demoníaco e vice-versa, até o fim da nossa jornada terrena”. O efeito foi desastroso. Os ânimos se exaltaram e de nada adiantou Dorotéia afirmar que era católica. À noite, quando ela narrou o episódio ao marido e aos filhos, a primeira reação foi de espanto, pois corriqueiro no lar, julgavam que aquele modo de pensar também o era na comunidade. Depois, acabaram rindo da ingenuidade deles próprios e da situação embaraçosa em que Dorotéia se metera.

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