segunda-feira, 31 de março de 2014

SUPREMO TRIBUNAL



Esquizofrenia. O modo como os ministros se manifestam sobre o tribunal a que pertencem assemelha-se ao processo mental esquizofrênico. Eles falam como se o tribunal estivesse situado em outro espaço e dele não fizessem parte, ou como se eles estivessem fazendo citação em peça postulatória. Dizem: “o Supremo Tribunal Federal já decidiu”, “a jurisprudência do Supremo Tribunal é em tal sentido”, “a súmula do Supremo dispõe” e assim por diante. Quem está assistindo às sessões pela TV pensa que errou de canal. Intrigado, o leigo pergunta: “onde está esse tribunal que os ministros tanto falam?” Perceber diferenças é próprio do animal e refletir sobre as diferenças percebidas é próprio do animal racional. Então, o leigo deduz: “deve ser um tribunal supremo composto só de juízes e não de ministros funcionando em algum lugar que não aparece na TV”.
Os ministros falam daquela maneira por modéstia, insegurança, pusilanimidade? Ou será porque não se enxergam como juízes? Se eles se consideram juízes, cônscios do seu relevante papel social, então devem se expressar de acordo com esta condição. Por exemplo: “este tribunal já decidiu”, “a jurisprudência deste tribunal é no sentido”, “súmula por nós elaborada dispõe”, “o nosso tribunal tem se orientado”, e assim por diante. Na hipótese de o juiz ter participado de um precedente poderá dizer: “nós já decidimos caso semelhante”. Juízes autênticos, convictos, corajosos, independentes, honestos, levam segurança aos jurisdicionados e tranqüilidade à nação.
Privilégio. Nas infrações penais comuns, os parlamentares federais só podem ser processados perante o Supremo Tribunal Federal – STF, conforme dispõe a Constituição. Gozam de foro privilegiado por prerrogativa de função. Trata-se de decisão política do legislador constituinte que excepcionou o princípio republicano refratário a privilégios e o princípio de isonomia refratário a discriminações, ambos preciosos à democracia. Essa decisão do legislador constituinte mostra como na república brasileira sobrevive a mentalidade aristocrática do período monárquico. O pobre, o remediado, o rico, o culto, o iletrado, o civil, o militar, o religioso, todos gostam de receber tratamento bom, especial e diferenciado. A prerrogativa de função casou bem com essa mentalidade e com a malandragem característica de parcela do povo brasileiro.
O esperto mecanismo feito sob medida para proteger gente corrupta assim funciona: (1) durante os trâmites da ação penal, o réu afasta-se definitivamente do exercício do mandato, quer por exaustão do prazo, quer por renúncia; (2) de acordo com jurisprudência do STF – que se mostrou nefasta – sempre que cessar o motivo justificador da prerrogativa a marcha processual é interrompida e os autos do processo remetidos à justiça ordinária; (3) no decorrer dos trâmites na justiça ordinária, o réu torna a se eleger; (4) o processo volta ao STF; (5) expira o mandato parlamentar do réu; (6) o processo baixa outra vez à justiça ordinária; (7) o réu se elege novamente; (8) o sobe e desce prossegue. Passam-se dezenas de anos sem o desate do caso até que a punibilidade do réu se extingue pela prescrição. A impunidade se mantém como regra. A esperteza maliciosa triunfa.
Não se há de lançar a culpa nos advogados, como vulgarmente se faz. Nenhum advogado sente-se feliz com a condenação do seu cliente. Ele invoca a jurisprudência, a lei e a doutrina sob ângulo favorável ao seu cliente. Este é o dever decorrente do seu ministério privado. O problema está na dinâmica processual perniciosa. Irrelevante e inoportuno o debate sobre a qualidade da prestação jurisdicional, se melhor na justiça ordinária ou na justiça extraordinária, ou se o réu terá maior benefício nesta ou naquela. Importa mais acabar com esse jogo indecoroso altamente prejudicial à imagem da justiça brasileira e incompatível com os fins estabelecidos pelo povo brasileiro ao instituir o Estado Democrático: assegurar a igualdade e a justiça e construir uma sociedade livre, justa e solidária; fins expressamente declarados na Constituição (preâmbulo + art. 3º, I).         
Competência. O direito se compõe de princípios e regras. No direito brasileiro há um princípio denominado “perpetuatio jurisdictionis” posto como regra explícita com o seguinte enunciado: determina-se a competência no momento em que a ação é proposta, sendo irrelevantes as modificações de estado de fato e de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia (artigo 87 do Código de Processo Civil). Cuida-se de princípio que assegura estabilidade à relação processual em sintonia com os princípios constitucionais da celeridade processual, da razoável duração do processo, da moralidade e da eficiência. Esse princípio dignifica a função jurisdicional do Poder Judiciário.    
Destarte, no caso dos parlamentares federais, definida a competência do STF com o recebimento da denúncia (petição inicial da ação penal), atendido estará o princípio do juiz natural que informa a regra da autoridade competente para processar e julgar a ação penal. O respectivo processo terá de seguir os seus trâmites até a decisão final sem sair da órbita do STF, ainda que cesse o exercício do mandato do acusado. As exceções previstas na processualística estão ausentes tendo em vista que: (1) o STF ainda não foi suprimido; (2) a competência em razão da matéria não foi afetada até porque se trata de outro fundamento (prerrogativa de função); (3) a hierarquia jurisdicional somente pode ser modificada por lei e não pelo fato de o réu alterar o seu estado.
O que muda no contexto da ação penal com a extinção do mandato é a situação pessoal do réu, o seu status; isto não autoriza mudança no âmbito jurisdicional depois de instaurado o devido processo jurídico. Na hipótese de atos administrativos, permanece a competência por prerrogativa de função mesmo que a ação judicial seja iniciada após a cessação do exercício da função pública pelo acusado (artigo 84, §1º, do Código de Processo Penal). O legislador ordinário preservou intacto o princípio da perpetuatio jurisdictionis na hipótese de a ação judicial ser proposta antes da cessação do exercício da função pública pelo acusado.
Caso. Na sessão do STF do dia 27.03.2014, essa questão veio à balha ante a renúncia do réu Eduardo Azeredo ao seu mandato parlamentar. O ministro Luis Roberto Barroso votou pela remessa dos autos do processo à justiça ordinária, na forma da tacanha jurisprudência em vigor, mas apresentou proposta para mudá-la: admitida a denúncia (petição inicial da ação penal), o processo terá seus trâmites pelo STF até o fim, ainda que o réu se desligue da função pública. A proposta dá eficácia ao salutar princípio da perpetuatio jurisdictionis. Além disto, respeita o princípio da identidade física do juiz com a causa. Cuida-se de garantia das partes no processo judicial contra o rodízio de juízes. A variedade de juízes no mesmo processo gera distintas apreciações e orientações e contribui para a morosidade, o tumulto e a insegurança. Invocando o princípio da identidade, o juiz que recebe os autos do processo pode renovar a instrução, principalmente se houver prova testemunhal, a fim de formar a sua convicção e decidir de acordo com a sua consciência. Esta determinação do novo juiz implica delongas para localizar as testemunhas, expedir precatórias, ouvir peritos, remarcar audiências e demais providências. O ideal é a extinção do privilégio de foro mediante emenda constitucional. Isto acabaria com uma das discriminações odiosas existentes em nosso país, teria efeito profilático em relação à mentalidade aristocrática e prestigiaria os princípios republicano e isonômico.

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