O JUDICIÁRIO E A
RAPINA.
A Justiça Eleitoral pretendia construir um edifício
destinado à sede do Tribunal Regional Eleitoral. Celebrou parceria com o
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que obteve da Prefeitura
Municipal do Rio de Janeiro cessão de um terreno localizado na Avenida
Presidente Vargas, na região urbana denominada Cidade Nova. A passarela que
havia nessa área foi desmontada para tornar possível a obra. Como esta não se
realizou, a população ficou sem a passarela e sem o novo edifício. O presidente
do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro, desembargador
Bernardo Garcez Neto, por decisão datada de 10.03.2014, suspendeu a obra por
causa das irregularidades e ilegalidades constatadas no curso de um processo
administrativo. Percebe-se que a decisão brotou de um espírito independente,
honesto e corajoso, ou seja, de um juiz e não de um barnabé de toga. Minuciosa
e clara exposição dos fatos bem assentada na robusta prova produzida durante a
instrução do processo administrativo. Fundamentação jurídica bem sintonizada
com os fatos desde os princípios constitucionais até as normas de menor
hierarquia. Conduta dos agentes da ilicitude bem descrita com o correspondente
e adequado enquadramento legal. Na parte dispositiva da decisão, determinações
firmes para o restabelecimento do direito, ressarcimento do erário e punição
dos responsáveis pelas ações e omissões ilícitas.
Se a justa decisão terá conseqüências na esfera penal,
civil e administrativa é um enigma. As vias judiciais devem ser esgotadas. Isto
demora. O espírito corporativo pode influir. Pessoas reunidas em grupo estável,
irmanadas nos mesmos procedimentos, submetidas ao mesmo e específico estatuto,
com finalidades e interesses comuns, constituem corporação que pode exibir duas
faces: uma positiva e outra negativa. A face positiva da corporação corresponde
à sua função construtiva na sociedade, à realização regular de objetivo lícito
como: defesa dos legítimos direitos próprios e dos membros; assistência aos
membros e às respectivas famílias no terreno da saúde; financiamento para
aquisição de bens; lazer em colônias de férias; e assim por diante. A face
negativa perverte os fins e interesses legítimos da corporação; protege ações e
omissões imorais e antijurídicas, procura escamotear a verdade, livrar do
processo e da punição os membros que violam a Constituição e as leis. Precavido
contra a dimensão negativa do espírito de corporação, ao verificar a evidência da
ilicitude dos atos e fatos provados no processo, o presidente Garcez enquadrou
na lei os prevaricadores e corruptos, inclusive os seus colegas de toga,
desembargadores Luiz Zweiter e Letícia Sardas, ex-presidentes daquele tribunal,
os auxiliares, os funcionários, a empresa “vencedora” do certame e o seu
representante legal, todos envolvidos na fraudulenta licitação e na maliciosa
celebração e execução do contrato administrativo.
Propósitos estranhos ao bem-comum e ao interesse
público podem interferir em favor dos delinqüentes no processo de
responsabilização jurídica, como soe acontecer nesta república plutocrática. A
fraude nas licitações públicas e na elaboração e execução dos contratos é
notória, corriqueira, “normal”, nesta terra descoberta por Cabral, país do português
degradado e do índio batizado e do negro escravizado e do mulato inzoneiro (citado nos versos de Ari Barroso) e do
macunaíma (retratado na prosa de Mário Andrade) e do mazombo (tipo da antropologia brasileira). O caso ora comentado ilustra bem essa vergonhosa realidade.
Esta prática delituosa não é exceção, posto figurar nos costumes e na cultura
brasileira. A exceção está na instauração do devido processo legal, na apuração
da responsabilidade e na aplicação das penas aos responsáveis pela fraude. Esta
exceção assemelha-se a aquela outra do processo penal alcunhado de “mensalão”
em trâmites pelo Supremo Tribunal Federal. Quiçá, no futuro, exceções éticas como
as duas aqui citadas se tornem regra geral e comum para o bem do Brasil e
orgulho dos brasileiros.
Durante a leitura da decisão proferida pelo eminente
desembargador Garcez, alguns questionamentos visitaram a minha mente. O
tribunal eleitoral é órgão federal. Cabe
à União Federal o projeto e a construção do edifício destinado a tribunal
federal. A União deve arcar com todas as despesas. O erário estadual destina-se
às despesas regulares e legais do Estado federado. Não se afigura correto
desviar o dinheiro do contribuinte estadual para obras federais. Outro dado
interessante: o edifício seria construído em terreno da prefeitura. Destarte, o
edifício seria propriedade municipal e não estadual, tendo em vista as normas
de direito civil: “são bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar
natural ou artificialmente”. “O proprietário pode conceder a outrem o direito
de construir ou de plantar em seu terreno”; nesta hipótese, o construído e o
plantado ficam incorporados ao imóvel, ou seja, são de propriedade do dono do
terreno. Do ponto de vista administrativo, a cessão do terreno pela prefeitura
municipal a outro órgão público é juridicamente possível, desde que feita
dentro dos parâmetros legais e atenda ao bem da coletividade.
O edifício projetado destinava-se a um tribunal do
Poder Judiciário. Portanto, o projeto arquitetônico devia prever um espaço para
o plenário, local das sessões
jurisdicionais, administrativas e cívicas, em que se reúnem todos os juízes
componentes do tribunal. No entanto, pelo que consta da decisão do presidente
Garcez, o projeto não previa este salão essencial ao funcionamento de um
tribunal. A espantosa e inacreditável omissão levanta sérias dúvidas sobre a
idoneidade técnica e profissional do arquiteto. O projeto é de uma obra
faraônica como a do Tribunal Superior Eleitoral (Brasília). Tal projeto segue o
padrão da safadeza: obra pública demasiadamente cara, sofisticada e
superfaturada. Quanto mais cara a obra, maior o volume do propinoduto e mais intenso o
assédio das aves de rapina, consoante tolerada praxe da administração pública
brasileira. A majestade da obra discrepa da penúria em que vive grande parcela
da população. Este contraste lembra o Império Centro-Africano (1976 a 1979): trono de ouro
do imperador e miséria dos súditos (Jean-Bèdel Bokassa, 1921 a 1996).
Diante de tal quadro, não admira que a corrupção
grasse também no Poder Judiciário, ambiente em que teoricamente devia
prevalecer a justiça, a honestidade e a verdade. A bandalheira na alta esfera
do Judiciário gera tristeza e acabrunhamento. Abatido em seu ânimo frente ao
indecoroso episódio, o juiz honrado perde a capacidade de se indignar; a ira
santa não mais navega por suas veias. A desilusão faz soçobrar o barco da
esperança.
Na vizinhança do terreno destinado à futura sede do
tribunal eleitoral há um hospital federal que entra na categoria de imóvel
tombado. Diante disto e por motivo ambiental, o limite da altura do novo
edifício devia ser igual ou inferior a dezoito metros. No entanto, a altura
prevista no projeto era de sessenta metros. A megalomania, que caracteriza o
administrador público brasileiro, criou a necessidade de um espaço para pouso
de helicópteros na cobertura do edifício. Certamente, além dos magistrados, os
helicópteros transportariam ao tribunal os políticos que respondem a processos
por crime eleitoral.
Faltavam elementos essenciais ao projeto básico que na
forma da lei devia preceder e condicionar a licitação. Mesmo assim, a licitação
foi realizada. Como havia uma única empresa inscrita no certame, a obra
milionária lhe foi adjudicada. Posteriormente, a empresa “vencedora” procedeu a
alguns adendos, modificando a situação anterior. Este golpe é comum nas
licitações. O ajuste posterior compensa o valor menor lançado na proposta
inicial. O objetivo do pequeno valor inicial da proposta para realizar a obra é
o de vencer a licitação. Obtida a vitória, cobra-se o triplo mediante ajustes. A obra estagnou ainda no início dos trabalhos em virtude
das ilegaliddes e irregularidades verificadas. Apesar disto, a empresa
“vencedora” recebeu doze milhões de reais. Certamente, parte dessa verba
escorreu pelo propinoduto. Como sempre acontece, o valor indevidamente recebido
pelo agente do crime dificilmente será devolvido ao erário. Constará do
orçamento estatal sob a rubrica “verba a fundo perdido”. A sensibilidade moral
dos corruptos situa-se no mais baixo grau da escala ética. Pouco importa ser
condenado por juiz, tribunal ou pela opinião pública. Para eles, o importante é
ficar com o produto do crime. Há especialistas para lavar o dinheiro sujo.
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