segunda-feira, 17 de março de 2014

RAPINA



O JUDICIÁRIO E A RAPINA.

A Justiça Eleitoral pretendia construir um edifício destinado à sede do Tribunal Regional Eleitoral. Celebrou parceria com o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que obteve da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro cessão de um terreno localizado na Avenida Presidente Vargas, na região urbana denominada Cidade Nova. A passarela que havia nessa área foi desmontada para tornar possível a obra. Como esta não se realizou, a população ficou sem a passarela e sem o novo edifício. O presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro, desembargador Bernardo Garcez Neto, por decisão datada de 10.03.2014, suspendeu a obra por causa das irregularidades e ilegalidades constatadas no curso de um processo administrativo. Percebe-se que a decisão brotou de um espírito independente, honesto e corajoso, ou seja, de um juiz e não de um barnabé de toga. Minuciosa e clara exposição dos fatos bem assentada na robusta prova produzida durante a instrução do processo administrativo. Fundamentação jurídica bem sintonizada com os fatos desde os princípios constitucionais até as normas de menor hierarquia. Conduta dos agentes da ilicitude bem descrita com o correspondente e adequado enquadramento legal. Na parte dispositiva da decisão, determinações firmes para o restabelecimento do direito, ressarcimento do erário e punição dos responsáveis pelas ações e omissões ilícitas.
Se a justa decisão terá conseqüências na esfera penal, civil e administrativa é um enigma. As vias judiciais devem ser esgotadas. Isto demora. O espírito corporativo pode influir. Pessoas reunidas em grupo estável, irmanadas nos mesmos procedimentos, submetidas ao mesmo e específico estatuto, com finalidades e interesses comuns, constituem corporação que pode exibir duas faces: uma positiva e outra negativa. A face positiva da corporação corresponde à sua função construtiva na sociedade, à realização regular de objetivo lícito como: defesa dos legítimos direitos próprios e dos membros; assistência aos membros e às respectivas famílias no terreno da saúde; financiamento para aquisição de bens; lazer em colônias de férias; e assim por diante. A face negativa perverte os fins e interesses legítimos da corporação; protege ações e omissões imorais e antijurídicas, procura escamotear a verdade, livrar do processo e da punição os membros que violam a Constituição e as leis. Precavido contra a dimensão negativa do espírito de corporação, ao verificar a evidência da ilicitude dos atos e fatos provados no processo, o presidente Garcez enquadrou na lei os prevaricadores e corruptos, inclusive os seus colegas de toga, desembargadores Luiz Zweiter e Letícia Sardas, ex-presidentes daquele tribunal, os auxiliares, os funcionários, a empresa “vencedora” do certame e o seu representante legal, todos envolvidos na fraudulenta licitação e na maliciosa celebração e execução do contrato administrativo. 
Propósitos estranhos ao bem-comum e ao interesse público podem interferir em favor dos delinqüentes no processo de responsabilização jurídica, como soe acontecer nesta república plutocrática. A fraude nas licitações públicas e na elaboração e execução dos contratos é notória, corriqueira, “normal”, nesta terra descoberta por Cabral, país do português degradado e do índio batizado e do negro escravizado e do mulato inzoneiro (citado nos versos de Ari Barroso) e do macunaíma (retratado na prosa de Mário Andrade) e do mazombo (tipo da antropologia brasileira). O caso ora comentado ilustra bem essa vergonhosa realidade. Esta prática delituosa não é exceção, posto figurar nos costumes e na cultura brasileira. A exceção está na instauração do devido processo legal, na apuração da responsabilidade e na aplicação das penas aos responsáveis pela fraude. Esta exceção assemelha-se a aquela outra do processo penal alcunhado de “mensalão” em trâmites pelo Supremo Tribunal Federal. Quiçá, no futuro, exceções éticas como as duas aqui citadas se tornem regra geral e comum para o bem do Brasil e orgulho dos brasileiros.
Durante a leitura da decisão proferida pelo eminente desembargador Garcez, alguns questionamentos visitaram a minha mente. O tribunal eleitoral é órgão federal. Cabe à União Federal o projeto e a construção do edifício destinado a tribunal federal. A União deve arcar com todas as despesas. O erário estadual destina-se às despesas regulares e legais do Estado federado. Não se afigura correto desviar o dinheiro do contribuinte estadual para obras federais. Outro dado interessante: o edifício seria construído em terreno da prefeitura. Destarte, o edifício seria propriedade municipal e não estadual, tendo em vista as normas de direito civil: “são bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente”. “O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno”; nesta hipótese, o construído e o plantado ficam incorporados ao imóvel, ou seja, são de propriedade do dono do terreno. Do ponto de vista administrativo, a cessão do terreno pela prefeitura municipal a outro órgão público é juridicamente possível, desde que feita dentro dos parâmetros legais e atenda ao bem da coletividade. 
O edifício projetado destinava-se a um tribunal do Poder Judiciário. Portanto, o projeto arquitetônico devia prever um espaço para o plenário, local das sessões jurisdicionais, administrativas e cívicas, em que se reúnem todos os juízes componentes do tribunal. No entanto, pelo que consta da decisão do presidente Garcez, o projeto não previa este salão essencial ao funcionamento de um tribunal. A espantosa e inacreditável omissão levanta sérias dúvidas sobre a idoneidade técnica e profissional do arquiteto. O projeto é de uma obra faraônica como a do Tribunal Superior Eleitoral (Brasília). Tal projeto segue o padrão da safadeza: obra pública demasiadamente cara, sofisticada e superfaturada. Quanto mais cara a obra, maior o volume do propinoduto e mais intenso o assédio das aves de rapina, consoante tolerada praxe da administração pública brasileira. A majestade da obra discrepa da penúria em que vive grande parcela da população. Este contraste lembra o Império Centro-Africano (1976 a 1979): trono de ouro do imperador e miséria dos súditos (Jean-Bèdel Bokassa, 1921 a 1996).
Diante de tal quadro, não admira que a corrupção grasse também no Poder Judiciário, ambiente em que teoricamente devia prevalecer a justiça, a honestidade e a verdade. A bandalheira na alta esfera do Judiciário gera tristeza e acabrunhamento. Abatido em seu ânimo frente ao indecoroso episódio, o juiz honrado perde a capacidade de se indignar; a ira santa não mais navega por suas veias. A desilusão faz soçobrar o barco da esperança. 
Na vizinhança do terreno destinado à futura sede do tribunal eleitoral há um hospital federal que entra na categoria de imóvel tombado. Diante disto e por motivo ambiental, o limite da altura do novo edifício devia ser igual ou inferior a dezoito metros. No entanto, a altura prevista no projeto era de sessenta metros. A megalomania, que caracteriza o administrador público brasileiro, criou a necessidade de um espaço para pouso de helicópteros na cobertura do edifício. Certamente, além dos magistrados, os helicópteros transportariam ao tribunal os políticos que respondem a processos por crime eleitoral.
Faltavam elementos essenciais ao projeto básico que na forma da lei devia preceder e condicionar a licitação. Mesmo assim, a licitação foi realizada. Como havia uma única empresa inscrita no certame, a obra milionária lhe foi adjudicada. Posteriormente, a empresa “vencedora” procedeu a alguns adendos, modificando a situação anterior. Este golpe é comum nas licitações. O ajuste posterior compensa o valor menor lançado na proposta inicial. O objetivo do pequeno valor inicial da proposta para realizar a obra é o de vencer a licitação. Obtida a vitória, cobra-se o triplo mediante ajustes.  A obra estagnou ainda no início dos trabalhos em virtude das ilegaliddes e irregularidades verificadas. Apesar disto, a empresa “vencedora” recebeu doze milhões de reais. Certamente, parte dessa verba escorreu pelo propinoduto. Como sempre acontece, o valor indevidamente recebido pelo agente do crime dificilmente será devolvido ao erário. Constará do orçamento estatal sob a rubrica “verba a fundo perdido”. A sensibilidade moral dos corruptos situa-se no mais baixo grau da escala ética. Pouco importa ser condenado por juiz, tribunal ou pela opinião pública. Para eles, o importante é ficar com o produto do crime. Há especialistas para lavar o dinheiro sujo. 

Nenhum comentário: