quarta-feira, 10 de julho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO XI


Combinando oportunismo e visão de estadista, Vargas reprime a sua simpatia pessoal para com os governos autoritários do Eixo (Itália + Alemanha + Japão) e alinha-se com os EUA na segunda guerra mundial ao lado de outros países americanos, respeitando a posição firmada na conferência dos chanceleres no Rio de Janeiro (1932). Vargas permite a instalação de bases aéreas estadunidenses em Belém, Natal e Recife. Combatendo ditaduras na Europa, as forças armadas brasileiras ficaram numa situação contraditória ao sustentarem ditadura no seu próprio país (quiçá advertidas no palco da guerra pelos oficiais dos países aliados). Cônscio disto, Vargas convoca eleições em fevereiro de 1945, antes do final da guerra. Os parlamentares eleitos teriam poderes para reformar a Carta de 1937. Políticos e professores universitários aproveitaram o ensejo para divulgar manifesto à nação em que levantavam suspeita de fraude nas eleições. O movimento ganhou fôlego e apoio das forças armadas. Em sintonia com os rumos sociais e políticos da época, Getúlio Vargas entrega o poder nas mãos do grupo militar que sempre o apoiou e que agora o pressionava. O cerco ao Palácio do Catete em 29 de outubro de 1945 foi simbólico. O objetivo era mostrar aos EUA e à Europa a nova roupagem democrática das forças armadas. Respeitado e com honras de Chefe de Estado, Getúlio volta ao rincão gaúcho em avião militar (a presidência da república ainda não dispunha de avião civil próprio). José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal, assume a presidência da república (recebe o cargo das mãos do Ministro da Guerra) e expede: (1) a lei constitucional nº. 11, de 30 de outubro de 1945, emendando o artigo 92, da Carta de 1937, para atribuir funções eleitorais aos juízes; (2) a lei constitucional nº. 13, de 12 de novembro de 1945, declarando que os candidatos eleitos para a Câmara e para o Senado, nas eleições marcadas para 02 de dezembro de 1945, teriam poderes constituintes e se reuniriam em assembléia 60 dias após as eleições para elaborar nova Constituição. A segunda república brasileira chegava ao fim (1930 a 1945).
A história brasileira registra episódios pitorescos. O primeiro Chefe de Estado do Brasil independente (não mais unido a Portugal) era estrangeiro. A primeira Constituição exclusivamente brasileira era genuinamente européia e foi outorgada por um europeu. Escalão subalterno (Ministro da Guerra) dá posse a escalão superior (Presidente da República). Pacíficas e quase solenes passagens do bastão da autocracia à democracia. Candidato só alega fraude se perder as eleições; se ganhar mantém o vício benfazejo. Ao ocupar o governo, o liberal da véspera se revela conservador; o inflamado esquerdista da véspera se revela um fascista morno e se deixa embalar no colo da elite burguesa. Dois meses depois de se retirar da presidência, Getúlio é eleito senador por dois Estados (São Paulo e Rio Grande do Sul) e deputado por vários Estados, fato inédito na historia do Brasil. O ex-ditador participa da assembléia constituinte. O Ministro da Guerra do seu governo é eleito Presidente da República. Na eleição seguinte, o ex-ditador retorna à presidência da república pelo voto popular (1950).
Terminada a guerra mundial em 1945, brisa democrática sopra nos céus europeus; povos atarefados na reconstrução material e moral dos seus países, na recomposição dos danos, na superação do trauma. O direito valoriza-se como fator de paz social e condicionador da ação política. Renasce a doutrina do direito natural como referencial de legitimidade do poder político e alicerce das decisões do Tribunal de Nuremberg. Desce do pedestal a doutrina positivista que norteou o direito nas autocracias européias. A Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) assinada em 26 de junho de 1945 por representantes de diversos países conclama os povos a: (1) conjugar seus esforços para coexistência pacífica e segurança internacional; (2) usar a força apenas no interesse comum; (3) empregar mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos; (4) preservar as futuras gerações do flagelo da guerra; (5) respeitar obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional. Coerente com a sua carta de fundação, a ONU promulga em 10 de dezembro de 1948 (com o voto contrário da URSS) a Declaração Universal dos Direitos do Homem com as seguintes proposições: (1) liberdade, justiça e paz no mundo sustentam-se no reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis; (2) a mais alta aspiração do homem comum consiste no advento de um mundo em que os seres humanos gozem da liberdade de palavra, de crença e de viverem a salvo do temor e da necessidade; (3) direitos do homem protegidos pelo império da lei de modo a evitar a rebelião como recurso contra a tirania e a opressão; (4) relações amistosas entre as nações; (5) melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla; (6) fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher. 
No Brasil, após eleições diretas em dezembro de 1945, o general Eurico Gaspar Dutra toma posse como Presidente da República para cumprir mandato de cinco anos (1946 a 1950). Começa a terceira república. Apegado ao texto constitucional, o general governou imbuído de um nacionalismo mitigado pelo ambiente internacional posterior à guerra. Os parlamentares eleitos e reunidos em assembléia constituinte cobrem o espectro ideológico da extrema esquerda à extrema direita. Dela participam o revolucionário comunista Luiz Carlos Prestes e o revolucionário capitalista Getúlio Vargas, líderes carismáticos e mitológicos, eleitos senadores, cada qual com enorme votação. Nos trabalhos constituintes predominam os partidos: (1) social democrático (PSD) braço burguês de Vargas, integrado por industriais, comerciantes e fazendeiros; (2) trabalhista (PTB) braço proletário de Vargas, integrado por sindicalistas, operários, políticos getulistas, cuja proposta era a defesa dos interesses dos trabalhadores e impedir que eles aderissem ao comunismo; (3) liberal democrático (UDN) opositor ferrenho de Vargas, integrado pela aristocracia urbana e rural conservadora. Os deputados constituintes criaram comissão que elaborou o projeto de Constituição. No plenário da assembléia o projeto foi emendado, debatido e votado. Coerente com o seu passado de árbitro dos antagonismos internos, Vargas se recusa a assinar a Constituição. Motivo explícito da recusa: a assembléia rejeitara a representação profissional. Motivo implícito: desconforto de assinar uma Constituição democrática sucessora da Carta do seu governo autocrático. A Mesa da Assembléia Nacional Constituinte promulgou a Constituição dos Estados Unidos do Brasil em 18 de setembro de 1946, fruto de um compromisso entre as forças progressistas e as forças conservadoras, ensejando o modelo social democrático de governo na esteira da Constituição brasileira de 1934, da alemã de 1919 e da mexicana de 1917.
Nos moldes da Constituição dos EUA, os legisladores constituintes adotaram: (1) forma republicana federativa de Estado; (2) separação dos poderes; (3) sistema de governo democrático, representativo e presidencialista. A separação entre os poderes era flexível. Os ministros de Estado, cujo cargo era compatível com o de parlamentar, podiam comparecer ao Congresso Nacional para tratar de assuntos atinentes às suas pastas. Cuidava-se de técnica parlamentarista no presidencialismo brasileiro (influência da Constituição francesa de 1848). Aos magistrados, o legislador constituinte deu garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. O Poder Judiciário era composto dos seguintes órgãos: Supremo Tribunal Federal, Tribunal Federal de Recursos, juízes e tribunais militares, eleitorais e do trabalho. A Justiça Federal ordinária foi criada pelo Ato Institucional 12/65. A Justiça Estadual vinha disciplinada em título próprio, o que atendia ao princípio federativo de autonomia constitucional dos Estados federados.

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