sábado, 6 de julho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO IX



A Carta de 1937 foi inspirada na lei fundamental da Polônia de 1935.  Denomina-se “Carta” a lei fundamental de origem autocrática; documento sem participação do destinatário (povo), como nas epístolas e nas cartas régias. Denomina-se “Constituição” a lei fundamental de origem democrática; documento do qual o destinatário participa direta ou indiretamente (através de representantes eleitos). Quando vigora a democracia, a Constituição é elaborada pelo próprio destinatário (povo). Getúlio Vargas afirmou que a Carta era provisória e se destinava a propiciar uma economia forte sem a qual nenhum país é livre. Almejava pacificar a política interna e alcançar a união e a integração nacional. Pontos programáticos dos integralistas constaram dessa Carta. Em relação ao regime anterior foram mantidos: a forma republicana federativa de Estado, o sistema presidencialista de governo, a separação funcional dos poderes, a declaração de direitos com restrições, as normas sobre família, educação, cultura e economia, as leis compatíveis com o novo regime e os símbolos nacionais; foram excluídos: o Senado Federal, os órgãos de cooperação nas atividades governamentais, as justiças federal e eleitoral e os símbolos estaduais e municipais; foram criados: o Parlamento Nacional (Câmara dos Deputados + Conselho Federal) e o Conselho de Economia Nacional (representantes da produção com paridade entre empregados e empregadores designados pelos sindicatos e associações profissionais).

O órgão de cúpula do Poder Judiciário (Corte Suprema) recebeu de volta o nome antigo: Supremo Tribunal Federal. Juízes e tribunais estavam proibidos de apreciar questões exclusivamente políticas. As três garantias clássicas dos juízes constaram da Carta: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos, reconhecidas como indispensáveis à independência do julgador em relação aos poderes executivo e legislativo; aposentadoria compulsória aos 68 anos de idade ou por invalidez; remoção compulsória em virtude do interesse público por decisão de 2/3 dos juízes do tribunal; vencimentos sujeitos aos impostos; controle da constitucionalidade e legalidade dos atos do poder público.

Do corpo eleitoral foram excluídos os analfabetos, os militares em serviço ativo, os mendigos e os que estivessem privados dos direitos políticos. Foram assegurados os direitos à liberdade, segurança individual e propriedade. O direito à subsistência foi tratado no tópico sobre a família. Aos direitos de feição liberal havia restrições: (1) censura prévia da imprensa, do teatro, do cinema e do rádio (ainda não havia televisão); (2) proibição à circulação, difusão e representação a critério da autoridade e no interesse da paz, da ordem e da segurança pública; (3) pena de morte para delitos contra o Estado e para o homicídio praticado por motivo fútil e com extremos de perversidade; (4) exclusão da prisão disciplinar do âmbito do habeas corpus; (5) tribunal especial para o processo e julgamento dos crimes contra o Estado e contra a economia popular; (6) exercício dos direitos e garantias condicionado ao bem geral, à paz, à ordem e às exigências de segurança da nação e do Estado.

Vargas defendia o Estado Novo contra as investidas da parcela da aristocracia rural e urbana que pretendia (real ou supostamente) restaurar as práticas da primeira república. Os opositores sofriam perseguição implacável. No interesse do serviço público ou por conveniência do regime, o presidente podia aposentar ou reformar funcionários civis e militares (a seu exclusivo arbítrio, nos 60 dias após a promulgação da Carta). A camada baixa da sociedade e os excluídos do corpo eleitoral pouco se importavam com as restrições à liberdade política. Nas disposições transitórias e finais essa Carta: (1) decretou o estado de emergência em todo o país; (2) previu plebiscito nacional para confirmá-la, regulado mediante decreto do Presidente da República; (3) renovou o mandato do presidente em exercício (Vargas) até a realização do plebiscito; (4) dissolveu os órgãos legislativos federais, estaduais e municipais, cabendo ao Presidente da República marcar as eleições ao Parlamento Nacional depois de realizado o plebiscito; (5) determinou que fosse constituído o Conselho da Economia Nacional antes das eleições; (6) autorizou o Presidente da República a expedir decretos-leis sobre matérias da competência legislativa da União enquanto o Parlamento Nacional não se reunisse; (8) recepcionou as leis compatíveis com o novo regime.

O plebiscito nacional que submeteria a Carta à apreciação do povo não se realizou {no jargão técnico, tratava-se de referendo (consulta posterior ao ato legislativo ou administrativo) e não de plebiscito (consulta anterior ao ato legislativo ou administrativo)}. O Parlamento Nacional nunca se reuniu. O presidente Vargas legislou durante o período em que se manteve no poder (1937 a 1945). O estado de emergência só acabou quando ele deixou a presidência. A ordem econômica e social reproduzia disposições da Constituição brasileira de 1934, da Carta do Trabalho italiana e do programa da Ação Integralista Brasileira. Isto se nota dos seguintes preceitos:
(1) a riqueza e a prosperidade nacional fundam-se na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público;
(2) a intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção de maneira a evitar ou resolver conflitos e introduzir no jogo das competições individuais os interesses da nação que o Estado representa (intervenção sob a forma de controle, de estímulo ou de gestão direta);
(3) o trabalho é um dever social antes de ser um direito individual; o trabalho honesto, como meio de subsistência do indivíduo, é um direito de todos; o trabalho constitui um bem que cabe ao Estado proteger; dos contratos coletivos de trabalho concluídos pelas associações de empregadores, de trabalhadores e artistas, devem constar: a remuneração, horário de trabalho, duração do vínculo e disciplina interna;
(4) a modalidade do salário deve ser a mais apropriada às exigências do operário e da empresa; nas empresas de trabalho contínuo, a mudança de proprietário não rescinde o contrato de trabalho; os direitos do empregado em face do antigo proprietário são mantidos junto ao novo; as associações de trabalhadores devem prestar aos associados assistência nas práticas administrativas ou judiciais relativas aos seguros sociais e de acidente de trabalho;
(5) o sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem direito exclusivo de: (I) representar legalmente os integrantes da respectiva categoria de produção; (II) defender os direitos dos associados; (III) celebrar contratos coletivos de trabalho; (IV) estipular contribuições aos associados; (V) exercer funções delegadas;
(6) a greve (paralisação do trabalho) é nociva ao capital e o lockout (paralisação da empresa por decisão do empresário) é nocivo ao trabalho; ambos (greve e lockout) são incompatíveis com os interesses da produção nacional; produção organizada em corporações representativas das forças do trabalho nacional colocadas sob assistência e proteção do Estado; as corporações são órgãos do Estado e exercem funções delegadas do poder público;
(7) usura punível, nacionalização da economia, terras dos silvícolas inalienáveis, concessão de terras de área superior a dez mil hectares só mediante autorização do Conselho Federal. 

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