domingo, 31 de julho de 2011

CONTO

VENÂNCIO, O CORNO.

A criança jazia sobre a mesa. Velas acesas. Mãe à cabeceira, blusa e saia desbotadas, sandália puída. Filhos em torno, sentadinhos, pés descalços. Os vizinhos traziam condolências. Solidariedade na dor. Nas festas juninas e paroquiais, aquelas pessoas também se reuniam e esqueciam as dores, as preocupações, a dureza da labuta diária, e se entregavam ao folguedo, à alegria. Aos domingos, na missa, rezavam, cantavam os hinos, seguiam o ritual, sentiam-se unidas pela fé como uma só e grande família. Fortaleciam-se para enfrentar as agruras da vida.

Solitário no quintal, Venâncio nutria pensamentos contraditórios e sentimentos opostos. “Após algum tempo e algumas mortes, a gente não consegue mais chorar. Secaram os olhos, o corpo, o rio e o pasto. A seca matou as poucas cabeças de gado que tanto me custou criar e acabou com a lavoura. Se tomo dinheiro emprestado, não posso pagar. Ademais, quem vai me dar crédito? O cachorro magrelo. Não há mais galinhas para sacrificar. Farinha com água turva: isso lá é comida de gente? Os filhos vão se indo embora, carcomidos pela fome. Bocas a menos, graças a Deus! Eles estão bem melhor na companhia de Jesus. A mulher não para de embarrigar. Cortar o meu trabuco é que não vou. Quanto maior a miséria, maior a filharada. Falta comida? Aumenta a procura da mulher. Parece coisa do capeta. Vou para outras plagas, mudar de vida. Depois venho buscar a mulher e os filhos que sobraram”.

Por onde anda Venâncio? Os amigos e parentes ajudavam como podiam. De pouco dispunham, compartilhavam a pobreza, mas seguidamente faziam aquela pergunta. A resposta era invariável: “sei, não”. Às velhas cruzes do cemitério, algumas novas se juntaram.

Longe dali, na periferia da cidade grande, Venâncio, agora operário da construção civil, Júlia, a nova mulher, e Luis Inácio, o pequeno filho do casal, esperavam melhorar o padrão de vida. Venâncio desistira do prometido regresso. Vez ou outra um aperto por dentro do peito e uma sombra de tristeza nos olhos vinham lembrá-lo da promessa não cumprida. Então, manejava a pá com mais vigor, lançando o cimento para cobrir o tijolo e a lembrança. Voltava ao cotidiano de homem urbano.

Lourenço do Pó, mulato tesudo, aprumado lugar-tenente da organização controladora do tráfico de entorpecentes no bairro, despertou, em Júlia, admiração e apreço. Venâncio aspira o doce perfume que dela emana. “Apesar de ganharmos pouco, ela consegue satisfazer essa pequena vaidade”, pensa e sorri com uma ponta de orgulho.

“Olha aí, gente! Acabou o banho de sol. Voltem todos para as celas”. Venâncio obedeceu ao comando do carcereiro. Entrou na fila com a pele aquecida e o coração gelado. De vez em quando, aflorava à memória o quadro que precedeu à frieza da sua alma. No ar, o choro da criança. Na parede, o “Sagrado Coração de Jesus”. Na mão, a faca e o sangue na lâmina a escorrer. No chão, a mulher exangue. Ela vestia blusa de cores vivas que a ele nenhum centavo custara. Próximo ao corpo, o frasco de perfume.

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