sábado, 3 de janeiro de 2015

FILOSOFIA XV



EUROPA (1900 a 2014).

Houve mudanças significativas na vida privada durante o século XX. O enlace entre autoridade, liberdade e igualdade deixou tênue a fronteira entre o público e o privado. O Estado regula e fiscaliza: (1) as relações de família (casamento, regime de bens, poderes paterno e materno, adoção, sucessão, divórcio); (2) as obrigações civis e os contratos; (3) as relações de trabalho e profissão; (4) a aquisição, o uso e a disposição dos bens móveis, imóveis e semoventes; (5) a expressão do pensamento e a locomoção; (6) a educação, a saúde, o esporte, a cultura; (7) a reclusão em instituições sociais como asilos, hospícios e internatos. O padre, o médico e o notário não são mais os depositários exclusivos dos segredos da família. As instituições públicas e privadas com seus bancos de dados, exigências de cadastramento, indiscrições e espionagem, abriram brechas no muro da privacidade e do sigilo. Os dados pessoais e a impressão digital ficam registrados no departamento de polícia e na carteira de identidade. Para dirigir veículo, o indivíduo tem que se habilitar perante órgão público. Para construir casa, o indivíduo tem que obter licenciamento e seguir as diretrizes da administração municipal. Na guerra e na paz, a casa tem sua privacidade invadida por agentes do governo e por emissoras de rádio e televisão. Há bairros proletários e cortiços onde o espaço para a privacidade é exíguo e a promiscuidade inevitável. Na zona rural, cada vez mais mecanizada, eletrificada e informatizada, a casa ainda é a unidade econômica básica, apesar das cooperativas agrícolas. Família e terra se conjugam. Pais e filhos operam na economia familiar rural com divisão de tarefas entre homens e mulheres. Filhos saem para a cidade e estudam; alguns regressam ao campo com conhecimento técnico para melhorar a produção. Depois da segunda guerra mundial, a choupana do campônio cedeu lugar a uma casa de maior tamanho, melhor construída, cômodos separados, mais segura e salubre. A economia pesqueira se torna cooperativada, industrializada e exportadora. A agricultura, a pecuária e a pesca recebem incentivos e orientação técnica do governo, mormente diante das entressafras, estiagens e épocas de reprodução.         

A inserção da mulher na vida pública intensificou-se. Os negócios públicos e privados deixaram de ser assunto exclusivamente masculino. A mulher concorre com o homem na fábrica, na loja, no escritório, no serviço público civil e militar, na atividade científica e tecnológica, na magistratura, no ensino em todos os graus, nas profissões liberais. Conquistou o direito de ingressar em sindicato e em partido político, de votar, de se candidatar a cargos públicos eletivos e de exercê-los se eleita. A prostituição, o salão de beleza e a moda deixaram de ser exclusividade feminina. Tolerada no passado, a violência contra a mulher, dentro e fora do ambiente doméstico (agressão física, estupro, assédio), é combatida com vigor crescente a partir da segunda metade do século XX. Inconformada com a sina de ser apenas esposa, mãe e dona de casa, a mulher se despojou do vestuário castrador. Usa roupa colante, transparente, calça comprida, short, minissaia, biquíni, monoquíni; exibe decote, coxas, calcinha rendada; pinta-se, tatua-se, veste-se, conforme seu gosto e disposição. Com os crescentes asseio e preocupação estética, a cultura física feminina entra em voga e as academias se multiplicam. A mulher faz ginástica, dança, pratica esporte e arte marcial; freqüenta lugares públicos sem companhia masculina; bebe, fuma e paga as suas despesas em dinheiro, cheque ou cartão de crédito; pilota motocicleta, automóvel, barco e avião. A mulher sequiosa superou a mulher domesticada. O pudor perdeu a realeza. O diário perdeu a confidente. O piano perdeu a função de promover socialmente a jovem burguesa. Amor, beleza, charme, patrimônio, endogamia (mesma posição social, afinidade de gosto, de crença, de pensamento) influem na escolha de parceiro. Coração e razão disputam preferência nupcial. Nas metrópoles, os casamentos tardam e as dissoluções ocorrem cedo. A igreja perdeu o monopólio da celebração do matrimônio. Vigora o casamento civil. A desvalorização da virgindade ensombreceu a lua-de-mel. A relação sexual entre solteiros e a coabitação antes do casamento se incorporaram aos costumes. Para esses casais, a viagem de núpcias tem sabor recreativo de morna sensualidade. A coabitação e o leito compartilhado conhecem exceções. Por conveniência, conforto ou higiene, alguns cônjuges moram em casas separadas ou ocupam cômodos separados na mesma casa, sem dissolver o vínculo conjugal. Os empregados domésticos conquistam direitos iguais aos dos operários. Animais mantidos dentro de casa recebem os cuidados de crianças e adultos.

Depois da segunda guerra mundial, o padrão de vida quadruplicou; a desigualdade social permaneceu; a taxa de natalidade regrediu. Na região urbana, a maioria dos partos é assistida em maternidade pública ou particular e não mais em casa da parturiente. Salvo situações especiais (gravidez indesejada ou rebento deformado), os filhos são exibidos com orgulho pelos pais e levados ao batismo em igrejas, sinagogas e templos. Com o recuo da idade de 13 para 7 anos, a primeira comunhão na igreja católica deixa de ser um rito de passagem da infância à adolescência. Menos numerosos nas famílias ricas e remediadas, os filhos recebem mais atenção dos pais. Há filhos criados por um só genitor. Os espancamentos retrocedem, apesar da conspiração do silêncio ocultá-los. [Na Suécia, os filhos podem apresentar queixa judicial contra os pais por maus-tratos]. Métodos educativos mais suaves são empregados pelos pais. Por quatorze anos, aproximadamente, as escolas públicas e particulares encarregam-se da formação intelectual e moral dos jovens, desde o maternal até o umbral da universidade. O regime de estudo varia: período parcial ou integral e internato. Pais e filhos adotam modelos de conduta e consomem bens sugeridos na publicidade veiculada por jornal, rádio, cinema, televisão, revista, prospecto, outdoor, rede de computadores. As roupas e calçados são comprados em lojas. A freguesia do alfaiate, da costureira e do sapateiro ficou menor. Comida enlatada, congelada, encomendada, pão e bolo de padaria e confeitaria, substituem eventualmente a arte culinária caseira. Os filhos de gente rica e remediada gozam de privacidade nos seus respectivos quartos guarnecidos de cama, armário, prateleira, bancada para estudar e aparelhos sonoros e audiovisuais. Ali recebem amigos e amigas, conversam, distraem-se com jogos, drogam-se e transam sexualmente. Entre os irmãos há rivalidade decorrente: (1) das preferências afetivas do pai e da mãe; (2) das diferenças de temperamento, talento e inteligência. A expectativa de duração da vida aumentou. Morrer no campo de batalha, no hospital, no asilo, no hospício, na rua, no interior de veículos terrestres, aéreos, fluviais e marítimos, tem sido mais comum do que morrer em casa. O período de luto foi reduzido, roupas pretas usadas por breve tempo, freqüência dos enlutados a lugares festivos liberada mais cedo. A partilha dos bens deixados pelos pais é fator de disputa e inimizade entre irmãos.

Os bairros refletem o status dos moradores. Nas cidades maiores, nos dias úteis da semana – e não apenas aos domingos – as pessoas se banham, usam desodorante, roupas limpas, calçados (sapato, tênis, sandália). A languidez no banho convida a jovem a masturbar-se. A liberdade sexual adentrou os costumes. No coito heterossexual, a mulher também fica encima, escolhe posição e preliminares. O adultério deixa de ser crime, mas justifica o divórcio. Afrouxaram as amarras sociais sobre a interrupção da gravidez, o controle da natalidade e a inseminação artificial. Lesbianismo e pederastia ganham permissão na sociedade e proteção legal. “Os homossexuais tomam a si mesmos como objeto sexual; eles partem do narcisismo e procuram jovens parecidos com eles que podem amar como foram amados por suas mães” (Freud). O casamento entre homossexuais e a adoção de crianças por esse tipo de casal foram permitidos na Inglaterra. O dândi, homem preocupado em se vestir bem e se perfumar, amante do disfarce, do acessório e da postura aristocrática, desprendido em relação ao dinheiro, mas cioso da sua fonte de renda, cultor da ociosidade, gozador dos prazeres da mesa e da cama, refratário ao casamento e à procriação, tem horror à igualdade social e oscila entre o heterossexual e o homossexual. O dandismo é a ética do celibatário.

A família não é mais o principal cenário da vida privada. Fios da antiga unidade, como dinheiro, sentimentos e segredos, converteram-se em muros de separação. Os laços sanguíneos e a história da família perderam a força vinculativa e unificadora. O centro comercial, o jardim público, o bar, a danceteria, a arena dos espetáculos musicais, a casa do amigo ou da amiga, são pontos de encontro dos jovens. Os parentes com doença mental são depositados no hospício; os velhos são abandonados no asilo. Diminuiu o uso da carta e dos cartões natalinos, parcialmente substituídos por mensagens através da rede de computadores e de telefones convencionais e celulares. O sigilo das comunicações privadas é violado por intromissões autorizadas e não autorizadas. As visitas sociais de amizade e parentesco saíram de moda nas grandes cidades, efeito do ritmo alucinante da vida contemporânea. As férias anuais se tornaram uma questão de saúde, uma necessidade visceral. O almoço domingueiro se faz mais em restaurante do que em casa, exceto na camada pobre da população. As esporádicas reuniões por motivo religioso ou para comemorações civis às vezes culminam em brigas. A casa não é só refúgio para descanso e lazer, mas também arena de gladiadores, escritório e balcão de negócios. A “célula da sociedade” no mundo ocidental ficou cancerosa. Tal qual o átomo da matéria, a família nuclear, “átomo da sociedade civil”, também é divisível e explosiva. O “princípio do Estado” agora é a senzala.


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