sábado, 8 de novembro de 2014

SANTO DIÁLOGO



No entardecer de um dia de muito calor, o profeta Kon Fu Tzo e seu discípulo Xang Li Npo dialogavam sob frondosa árvore. Soprava suave brisa. 
- Amado mestre! Noto tristeza no seu semblante. Algo não está bem?
- Neste mundo terreno, meu caro casulo, o que está bem? Você pode ser feliz quando a humanidade é infeliz? Quando a ameaça de uma hecatombe paira no ar? Quando nações se guerreiam? Quando pela astúcia ou pela força um país explora a riqueza do outro? Quando uma nação quer impor a sua cultura a outra? Quando há fartura para poucos e miséria para muitos? Quando só pela posse de bens materiais o valor pessoal é medido? Quando o genocídio, o homicídio, a tortura, o roubo e a corrupção se banalizam? Quando poucos se encantam com o sorriso de uma criança? Quando o nascente encontra todos dormindo, o poente não mais emociona e só o medo de perecer faz a humanidade respeitar a natureza?
- Entendi amado mestre. Entretanto, sem contestá-lo, gostaria apenas de ponderar: há coisas belas e nobres que tornam a vida agradável aqui na Terra.
- De fato, Xang Li Npo, há flores que nascem no lodo. O planeta é azul, bonito, mas os humanos nele construíram um mundo conflituoso, moralmente sujo e espiritualmente escuro. No lamaçal humano é possível encontrar alguma coisa preciosa a indicar que este mundo pode ser diferente e melhor. Mas também sei que do ventre da leoa não sai cordeiro.   
- Amado mestre. O povo diz que o senhor é deus. Isto é verdade?
- O que é a verdade, meu caro casulo? Vox populi vox dei. Eu sou deus aqui na Terra e o meu pai é deus no Céu.
- Temos, então, amado mestre, dois deuses: um na Terra e outro no Céu?
- Meu caro casulo: meu pai e eu somos um... Caso sério...  Tango e bolero...
- Mestre! O senhor está cantando e remexendo os quadris!
- Opa! Memória musical inoportuna. Lembrei-me das canções e ritmos que presenciei na América. Como eu ia dizendo... O que mesmo eu ia dizendo meu caro casulo?
- Que o senhor e seu pai eram um.
- Ah! Sim. Ele é o meu duplo e eu o dele. Estive com ele no Pico do Marumbi, na Serra do Mar, trecho do Paraná, num país chamado Brazil.
- Nome esquisito desse país, amado mestre. Lembra calor, brasa.
- É por aí mesmo, casulo. Fica na América do Sul. Lá a terra é quente como brasa. Não há neve, como aqui. A gente de lá é fogosa como brasa. Quanto mais pobre, mais filhos. Trovador daquelas paragens cantava aquela brasa, mora. Lá havia árvores cor de brasa das quais se produzia tinta vermelha. Por todo esse braseiro o país recebeu o nome de Brazil.
- Como foi que o senhor descobriu e escalou aquela montanha?
- Por ferrovia que descortina paisagens maravilhosas. Lá estava a me esperar o meu divino pai. Por quarenta dias e quarenta noites, sem comer, sem beber, sem defecar, sem urinar, varamos madrugadas, ele a ditar e eu a escrever textos religiosos. O meu pai celestial estava descontente. Ele disse: minha vontade é acabar com essa raça humana definitivamente. Eu disse: tenha um pouco mais de paciência meu querido pai; passaram-se apenas cinqüenta mil anos desde que essa raça começou a pensar; vamos lhe dar um crédito de mais cinqüenta. Ele então se levantou, envolveu o meu ombro com o braço esquerdo, mirou a imensidão sem fixar o olhar em ponto algum, movimentou o braço direito à nossa frente traçando um semicírculo e disse: meu querido filho, doravante este planeta e tudo que nele existe te pertence: minério, petróleo, planta, animal, rio, oceano, os seres humanos e suas riquezas; esta é a minha doação a você e a toda a tua descendência. Cuide bem desta herança. Emocionado, prostrei-me aos pés dele e chorei. Notei pontos escuros naqueles pés e senti certo odor. Ele pisara em alguma coisa deixada por algum bicho.    
- Deus prometeu tudo isto ao senhor, digno mestre?
- Não, casulo; ele não prometeu; ele me deu tudo isso. Ele tem o direito de doar sem escritura pública o que ele criou sem auxílio de ninguém. Ele tem o poder de fazer do seu filho unigênito – que sou eu – o proprietário inclusive dos bens produzidos pelos humanos.
- Mas, então, por que a sua inquietação, amado mestre?
- Porque algumas pessoas não acreditam nessa doação, embora conste da escritura sagrada. Felizmente, Xang Li Npo, a maioria das pessoas acredita que a escritura é a palavra de deus, que foi ditada por meu pai celestial e anotada por mim. A minoria é de gente má que não acredita nisso e se aferra à inteligência. 
- Amado mestre, perdoe a minha impertinência, mas o senhor se parece fisicamente com os humanos e aquela minoria acredita que a redação da escritura sagrada esteja comprometida com as fraquezas da espécie.
- Esse argumento, Xang Li Npo, peca por ser racional. Eu escrevi, mas quem ditou foi o meu pai que está no Céu. Sem fé nesta verdade não há salvação. A falta de fé torna os homens infelizes. Agora, levante e se ajoelhe à minha frente. Com as minhas mãos sobre a tua cabeça eu te abençôo e te constituo a pedra fundamental da minha igreja. Você divulgará a sagrada escritura e convencerá o povo de que a fé é superior à razão, de que a inteligência é coisa do demônio e de que 1/3 da renda e dos bens das pessoas deve ser doado à santa madre igreja organizada por você. Louvados sejam: eu e o meu pai celestial por todos os séculos e séculos.   
- Amém. Prometo ser fiel à escritura sagrada, cumprir a missão que me foi confiada, convencer o povo, arrecadar os bens e permanecer humilde depois de ficar rico. Quanto aos infiéis, prometo cobri-los de bordoadas, cozinha-los em óleo fervendo, queima-los vivos, ou decapita-los para maior glória do pai celestial.

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