domingo, 1 de junho de 2014

O PONTO



Noto um ponto escuro no centro da folha e logo penso em mosca ou lagartixa hóspede do escritório doméstico. Pouco provável, pondero. A folha estava bem acondicionada no pacote dentro da gaveta da escrivaninha. Parece tinta de impressão, pelo menos, esta é a minha impressão. Ponto fixo no centro daquela alvura onde não é ponto de partida e nem ponto de chegada. O ponto de ônibus também é fixo, mas se o coletivo tarda, procuro um ponto de táxi. Dizem que o universo é um organismo vivo. O ponto faz parte do universo. Logo, o ponto é um ser vivo que está morto no meu papel. Contradição existencial. O ponto está inerte. A vida é movimento. Há quem pense diferente. A filosofia é arena de ideias conflitantes. Para Hegel, as ideias condicionam os fatos; para Marx, os fatos condicionam as ideias. Pontos de vista opostos. Do meu ponto de vista, na vida social o condicionamento é recíproco, constante e alternado: ora o fato condiciona a ideia, ora a ideia condiciona o fato, numa dinâmica e contínua relação. 

Pouso novamente a minha cansada vista no ponto do papel. Não se trata de ponto final. Não há frase alguma que o antecede. Ponto solitário, livre, sem dependência de frase alguma. Liberdade em relação à escrita, mas prisão em relação à folha, pois dela não pode sair e nem se locomover na superfície. Os pássaros, plêiade nos céus do meu rincão, também parecem livres com seus trinados matutinos e vespertinos. Voam de árvore em árvore, aterrissam na grama, andam aos pulinhos, banham-se rapidamente na água da piscina e novamente alçam vôo. Essa liberdade está limitada pelo tempo, que exige repouso e pelo espaço, que exige contenção. Determinações naturais. Pobre salmão: luta contra a correnteza para chegar ao ponto da desova. A natureza parece cruel. Na verdade, ela é indiferente, neutra, nem bela nem feia, nem boa nem má. No observador humano residem o senso estético, a bondade e a maldade. O homem é a medida de todas as coisas já dizia Protágoras, o filósofo grego.   

Volto ao ponto no centro da folha. Voltar a algum ponto do discurso ou da senda acontece algumas vezes por necessidade, por algum interesse, ou por saudade simplesmente. Este, agora, é mais um dos retornos. O ponto da folha parece triste na sua ilusória liberdade. Só parece, porque ponto não tem sentimento, não fica triste, nem alegre. Você, meu caro ponto, caso sentimento tivesse, deveria estar feliz por ser o centro dessa alvura. Desculpe o lapso. Concordo com a sua discordância neste ponto. Realmente, ser o centro não significa ser feliz. Ponto para você. Também espero pontos para meu time de futebol vencer o campeonato e que nenhum jogador se lesione ao ponto de levar pontos cirúrgicos e desfalcar o grupo. Estou como o candidato que espera somar suficientes pontos em sua prova a fim de vencer o concurso para ingresso na carreira profissional.     

Eu sei que sou o ponto central da folha da minha vida. Disto, você não precisava me lembrar com esse misto de triunfo e ironia. Saiba, no entanto, meu caro ponto, que diferente da sua folha, a minha não está em branco. Nela, há uma história escrita por mim e por muitas pessoas. Você, ao contrário, está sozinho aí no meio dessa imensa brancura. Eu nunca estive só. No começo, a minha mãe me fazia companhia. Ao sair do útero entrei na multidão, embora desconhecido de quase todos os seres vivos deste planeta. Nas cidades em que vivi continuei desconhecido da imensa maioria. Poucas pessoas me conheceram e me conhecem.

Às vezes, pareço com você na solidão. A diferença é que eu sinto paz e você nada sente, posto ser apenas um ponto imóvel, um lugar geométrico no centro de um papel retangular. Eu poderia tentar mover você para o canto da folha, mas você não seria mais você e sim outro ponto. Você seria apagado e o vazio no centro me lembraria apenas que um dia você existiu.

Tudo bem referir-se aos pontos que se deslocam no firmamento. Interessante isto: apesar de inerte e não emitir som, você fica aí a me provocar e contestar. Arre! Mas, veja bem, meu querido ponto (já começo a gostar de você e a me comover com a sua paralisia): lá no céu não são pontos e sim corpos celestes ou naves se locomovendo. Quando eu desloco um objeto de um ponto a outro da sala, eu desloco o objeto e não o ponto originário. Eu e meus amigos, nos finais de semana, em tempo de mocidade, fazíamos ponto na Rua 15 de Novembro. Olhávamos as garotas a passar. Esporadicamente, um gracejo. Algumas retribuíam com desaforo. A maioria empinava o nariz e nos ignorava afrontosamente. Exibíamos a nossa masculinidade ao gracejar, olhar as pernas e o rebolado das meninas, fumar e coçar o saco. O antigo início da Rua 15 virou Rua das Flores, quiçá para combinar com o apelido de Curitiba: “cidade sorriso”. Eu acho que esse apelido combina mais com Salvador, capital da Bahia. Na Rua das Flores os homens se reúnem nas frias e cinzentas manhãs de sábado e domingo para tomar cafezinho e falar de futebol, de política e de pessoas. O local foi batizado de “boca maldita”. As novas gerações fazem ponto em outros lugares. Preferem os shoppings.

O ponto da minha geração agora é melancólica ausência na calçada oposta ao “Cachorro Quente”. Nesse bar, eu e meus amigos de boemia, às vezes, terminávamos as nossas noitadas no final dos anos 50 e começo dos 60. Batíamos o ponto para lanchar e tomar a saidera. Batata, maionese, vinas quentes (salsichas) e cerveja. Inaugurada a “Confeitaria Iguaçu”, lá batíamos o ponto aos sábados à noite para tomar chope e comer camarão abraçadinho (no singular): um camarão enroscado em outro camarão e ambos fritos à milanesa. Os comensais não se abraçavam. Os machos não ficavam abraçadinhos. “Bater o ponto” era expressão de escritório e de fábrica por nós utilizada para significar comparecimento regular no costumeiro lugar de encontro. No trabalho, o ponto (livro ou máquina) era forma de controlar a entrada e a saída do empregado; verificar pontualidade. No caso de atrasos seguidos, o empregado sofria descontos no seu salário ou era despedido. Com o funcionalismo público era diferente. Havia enorme tolerância, sem ponto para bater. Ainda hoje se vê nos tribunais, inclusive o supremo, magistrados se atrasarem e também faltarem ao trabalho impunemente apesar das férias de 60 dias e dos períodos de recesso durante o ano. Prejudicam sessões de julgamento e contribuem para o acúmulo de processos e a tardança na prestação jurisdicional.

Havia pontos ocasionais combinados com as namoradas e os amigos. O ponto de encontro podia ser a escadaria da igreja, a saída do colégio, a esquina dos dois marechais (Deodoro e Floriano), o saguão do cinema, a porta da "Confeitaria Guairacá", conforme a conveniência. O comparecimento da pessoa esperada era sempre um ponto de interrogação. Certeza somente havia no ponto em que duas linhas se cruzam na prancheta ou duas ruas se cruzam na cidade. A encruzilhada de duas vidas depende do destino. Achar o ponto certo requer experiência. O segredo da boa pizza está em achar o ponto certo da massa, do tempero e do calor no forno. A água tem o ponto certo de ferver e de gelar. No corpo humano há pontos de contato com sensibilidade diferenciada. Achar o ponto G da parceira é façanha do bom amante.

Pela derradeira vez, olho para aquele ponto. Pequenino. Escurinho. Não é um buraco negro a engolir coisas ao seu redor. Aliás, me parece que “buraco negro” não é realmente um buraco e sim o aumento de massa estelar que atrai para si corpos celestes. O pontinho não atrapalha. Vou aproveitar a folha para imprimir o texto que acabo de escrever.  


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