sexta-feira, 6 de junho de 2014

FILOSOFIA XII - 12



EUROPA (1000 a 1600). Continuação.

Marsílio de Pádua, Guilherme de Ockham e Miguel de Cesena (Geral da Ordem Franciscana) foram excomungados porque apoiaram os rebeldes franciscanos que haviam desafiado a autoridade do papa em assunto patrimonial. Acoitaram-se na corte do imperador Luís da Baviera. A excomunhão, espada de Dámocles sobre a cabeça de todo cristão, abria aos excomungados as portas de entrada do inferno. Sobre a existência de portas de saída, há divergência. Na opinião de alguns, após estágio no inferno, a alma do pecador ascende ao céu. Na opinião de outros, o inferno é a morada definitiva e eterna da alma do pecador. Sobre o local dessa morada também há discordância. Para uns, fica na Terra: ou no interior do planeta (centro de elevada temperatura) ou na superfície (sociedade humana infernal). Para outros, o inferno localiza-se em mundo distinto (físico ou espiritual). O povo cristão não tem idéia clara do que seja o inferno, mas apenas elementar noção de ser lugar de padecimentos horrorosos. Fora do âmbito religioso, o inferno é visto como invenção de uma elite sacerdotal para disciplinar a massa popular através do medo.
Marsílio, italiano de Pádua, médico, professor na faculdade de artes de Paris, formula idéias sobre a estrutura e o funcionamento dos poderes secular e espiritual (1275 a 1343). Escreveu “Defensor Pacis” (em homenagem ao imperador), “De Translatione Imperii” e “Defensor Minor”. A teoria política de Marsílio repousa nas lições de Aristóteles, na idéia de supremacia da comunidade e da lei, e na sua própria experiência de vida nas comunas italianas. Segundo esse filósofo, a soberania reside no povo; a força criadora das instituições humanas emana do povo. Do concílio {assembléia magna de dignitários eclesiásticos} o povo deve participar. A decisão sobre excomunhão deve competir ao concílio e ser sancionada pelo povo. [Evidente a intenção de Marsílio de retirar do papa o poder de decisão nessa matéria]. O concílio não devia se imiscuir em assuntos de Estado. O poder eclesiástico não deve se estender à sociedade civil cujo governo compete exclusivamente ao imperador. A saúde do reino (paz) consiste na boa organização em que as partes (campônios, artesãos, soldados, mercadores, sacerdotes, príncipe) realizam as obras que lhes são próprias segundo a razão e a sua instituição. A pretensão dos bispos de Roma a uma jurisdição coercitiva sobre o mundo inteiro animada pelo desejo de governar constitui “autêntica peste maligna inimiga irredutível de toda paz e de toda felicidade humana”. As coisas do mundo material, o poder coercitivo principalmente, competem ao príncipe. Se o governante abusar do poder, o povo que o investiu poderá depô-lo. O povo deve escolher homens prudentes e experientes para que elaborem as leis. O clero é necessário para educar e conduzir os homens à salvação espiritual. A igreja se compõe do clero e de todos os crentes. O povo da Igreja (sacerdotes e leigos) e o povo do Estado (cidadãos) são um só, indistintamente. A igreja integra a comunidade civil e está sujeita às leis humanas e à autoridade do imperador. O clero carece de força coativa para impor os seus preceitos; sua autoridade é moral, restrita aos assuntos espirituais. A coação não traz qualquer benefício espiritual para a salvação eterna de quem a sofre. O sacerdote avalia se um ato é ou não é herético, mas compete ao monarca aplicar pena ao réu se comprovada a heresia. Da saúde do corpo, cuida o médico; da saúde da alma, o sacerdote.  
Guilherme (1290 a 1350), inglês, frade franciscano, nascido em Ockham, lecionou em Oxford e Paris. Por tangenciar a ortodoxia, ele foi repreendido pelo papa em 1324 e 1328, antes de ser excomungado. Guilherme adota empirismo radical contrário à metafísica. A realidade é inerente às coisas singulares. Estas se submetem à experiência. Disto, advém conhecimento certo e direto. Para explicar o ser, inútil fazer com mais o que pode ser feito com menos; os entes não devem ser multiplicados além do necessário. Se a Física basta, desnecessário recorrer à Metafísica. Se a explicação simples basta, desnecessário complicar. A Lógica trata das palavras e nela há conhecimento geral do significado. Cuida-se de abstração e não de apreensão direta da realidade. A Lógica há de ser vista como instrumento verbal que se ocupa do significado dos termos no sentido aristotélico. Os conceitos utilizados no discurso são produtos da mente. Declarações sobre coisas (que são singulares ou particulares) não se confundem com declarações sobre palavras (que são universais). O conhecimento de deus é matéria de exclusivamente. O aparato racional é inadequado para esse tipo de investigação e também para explicar o conjunto de dogmas da religião.
O pensamento de Guilherme provoca o divórcio entre filosofia e teologia. Razão e fé são incompatíveis. [A preeminência da igreja no campo filosófico cessa a partir do século XVI]. Na opinião de Guilherme, a igreja é a soma dos cristãos individualmente considerados. [Posteriormente, Lutero quebrou essa unidade e a igreja se dividiu em católica (bizantina + romana) e protestante]. O papa tem primazia no terreno espiritual, porém deve respeitar os direitos dos homens concedidos por deus ou decorrentes da natureza. No domínio temporal, os leigos são mais competentes do que o papa. A intervenção do papa nessa área deve revestir caráter excepcional, longe da plenitude do poder. O papa e o concílio geral (ecumênico) não são infalíveis, inclusive em matéria de fé. Inexiste outro magistério doutrinal além da escritura e da razão. A evidência desse magistério deve ser defendida até contra autoridade (secular ou religiosa). O concílio geral deve ser composto de clérigos e leigos {príncipes e pessoas eminentes, o que lhe dá uma feição aristocrática}. “Defende-me com a espada e eu te defenderei com a pena”, diz Guilherme ao imperador. Compromisso honrado. Guilherme redige textos vigorosos censurando a conduta mundana do papa e defendendo a soberania do imperador. A fonte do poder imperial não está no papa e sim no consenso do povo. [Vox populi vox Dei]. As escrituras, diz ele, não negam ao imperador competência em matéria espiritual. À autoridade secular cabe defender a nobreza de deus e da fé católica e punir o papa ou qualquer sacerdote que se comporte de modo herético ou escandaloso. O imperador deve estar consciente da sua missão espiritual e respeitar os direitos e as liberdades do povo.      
Razão livre dos óbices metafísicos e teológicos abre caminho à investigação científica. No campo da fé, as extravagâncias provocam reação, um movimento místico censor fundado na sensatez. Mestre Eckhart, frade dominicano, foi o grande nome desse movimento. Ele ignora propositalmente as exigências da ortodoxia. Temendo mais o místico do que o livre pensador, a igreja declara heréticas as doutrinas desse frade (1329).

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