EUROPA (1000
a 1600). Continuação.
Marsílio de Pádua,
Guilherme de Ockham e Miguel de Cesena (Geral da Ordem Franciscana) foram
excomungados porque apoiaram os rebeldes franciscanos que haviam desafiado a
autoridade do papa em assunto patrimonial. Acoitaram-se na corte do imperador
Luís da Baviera. A excomunhão, espada
de Dámocles sobre a cabeça de todo cristão, abria aos excomungados as portas de
entrada do inferno. Sobre a existência de portas de saída, há divergência. Na
opinião de alguns, após estágio no inferno, a alma do pecador ascende ao céu.
Na opinião de outros, o inferno é a morada definitiva e eterna da alma do
pecador. Sobre o local dessa morada também há discordância. Para uns, fica na
Terra: ou no interior do planeta (centro de elevada temperatura) ou na
superfície (sociedade humana infernal). Para outros, o inferno localiza-se em
mundo distinto (físico ou espiritual). O povo cristão não tem idéia clara do
que seja o inferno, mas apenas elementar noção de ser lugar de padecimentos horrorosos.
Fora do âmbito religioso, o inferno é visto como invenção de uma elite
sacerdotal para disciplinar a massa popular através do medo.
Marsílio, italiano de
Pádua, médico, professor na faculdade de artes de Paris, formula idéias sobre a
estrutura e o funcionamento dos poderes secular e espiritual (1275 a 1343). Escreveu
“Defensor Pacis” (em homenagem ao imperador), “De Translatione Imperii” e
“Defensor Minor”. A teoria política de Marsílio repousa nas lições de
Aristóteles, na idéia de supremacia da comunidade e da lei, e na sua própria
experiência de vida nas comunas italianas. Segundo esse filósofo, a soberania
reside no povo; a força criadora das instituições humanas emana do povo. Do concílio {assembléia magna de
dignitários eclesiásticos} o povo deve participar. A decisão sobre excomunhão
deve competir ao concílio e ser
sancionada pelo povo. [Evidente a intenção de Marsílio de retirar do papa o
poder de decisão nessa matéria]. O concílio não devia se imiscuir em assuntos
de Estado. O poder eclesiástico não deve se estender à sociedade civil cujo
governo compete exclusivamente ao imperador. A saúde do reino (paz) consiste na
boa organização em que as partes (campônios, artesãos, soldados, mercadores,
sacerdotes, príncipe) realizam as obras que lhes são próprias segundo a razão e
a sua instituição. A pretensão dos bispos de Roma a uma jurisdição coercitiva
sobre o mundo inteiro animada pelo desejo de governar constitui “autêntica peste maligna inimiga irredutível
de toda paz e de toda felicidade humana”. As coisas do mundo material, o poder coercitivo principalmente,
competem ao príncipe. Se o governante abusar do poder, o povo que o investiu
poderá depô-lo. O povo deve escolher homens prudentes e experientes para que
elaborem as leis. O clero é necessário para educar e conduzir os homens à
salvação espiritual. A igreja se compõe do clero e de todos os crentes. O povo
da Igreja (sacerdotes e leigos) e o povo do Estado (cidadãos) são um só,
indistintamente. A igreja integra a comunidade civil e está sujeita às leis
humanas e à autoridade do imperador. O clero carece de força coativa para impor
os seus preceitos; sua autoridade é moral, restrita aos assuntos espirituais. A coação não traz qualquer benefício
espiritual para a salvação eterna de quem a sofre. O sacerdote avalia se um
ato é ou não é herético, mas compete ao monarca aplicar pena ao réu se
comprovada a heresia. Da saúde do corpo, cuida o médico; da saúde da alma, o
sacerdote.
Guilherme (1290 a 1350), inglês, frade
franciscano, nascido em Ockham, lecionou em Oxford e Paris. Por tangenciar a
ortodoxia, ele foi repreendido pelo papa em 1324 e 1328, antes de ser
excomungado. Guilherme adota empirismo radical contrário à metafísica. A
realidade é inerente às coisas singulares. Estas se submetem à experiência. Disto,
advém conhecimento certo e direto. Para explicar o ser, inútil fazer com mais o que pode ser feito com menos; os entes não devem ser multiplicados além
do necessário. Se a Física basta, desnecessário recorrer à Metafísica. Se a
explicação simples basta, desnecessário complicar. A Lógica trata das palavras
e nela há conhecimento geral do significado. Cuida-se de abstração e não de
apreensão direta da realidade. A Lógica há de ser vista como instrumento verbal
que se ocupa do significado dos termos no sentido aristotélico. Os conceitos
utilizados no discurso são produtos da mente. Declarações sobre coisas (que são
singulares ou particulares) não se confundem com declarações sobre palavras
(que são universais). O conhecimento de deus é matéria de fé exclusivamente. O aparato racional é inadequado para esse tipo
de investigação e também para explicar o conjunto de dogmas da religião.
O pensamento de Guilherme
provoca o divórcio entre filosofia e teologia. Razão e fé são incompatíveis. [A
preeminência da igreja no campo filosófico cessa a partir do século XVI]. Na
opinião de Guilherme, a igreja é a soma dos cristãos individualmente
considerados. [Posteriormente, Lutero quebrou essa unidade e a igreja se
dividiu em católica (bizantina + romana) e protestante]. O papa tem primazia no
terreno espiritual, porém deve respeitar os direitos dos homens concedidos por
deus ou decorrentes da natureza. No domínio temporal, os leigos são mais
competentes do que o papa. A intervenção do papa nessa área deve revestir caráter
excepcional, longe da plenitude do poder. O papa e o concílio geral (ecumênico) não são infalíveis, inclusive
em matéria de fé. Inexiste outro magistério doutrinal além da escritura e da
razão. A evidência desse magistério deve ser defendida até contra autoridade
(secular ou religiosa). O concílio geral
deve ser composto de clérigos e leigos {príncipes e pessoas eminentes, o que
lhe dá uma feição aristocrática}. “Defende-me
com a espada e eu te defenderei com a pena”, diz Guilherme ao imperador. Compromisso
honrado. Guilherme redige textos vigorosos censurando a conduta mundana do papa
e defendendo a soberania do imperador. A fonte do poder imperial não está no
papa e sim no consenso do povo. [Vox
populi vox Dei]. As escrituras, diz ele, não negam ao imperador competência
em matéria espiritual. À autoridade secular cabe defender a nobreza de deus e
da fé católica e punir o papa ou qualquer sacerdote que se comporte de modo
herético ou escandaloso. O imperador deve estar consciente da sua missão espiritual
e respeitar os direitos e as liberdades do povo.
Razão livre dos óbices
metafísicos e teológicos abre caminho à investigação científica. No campo da
fé, as extravagâncias provocam reação, um movimento místico censor fundado na
sensatez. Mestre Eckhart, frade dominicano, foi o grande nome desse movimento.
Ele ignora propositalmente as exigências da ortodoxia. Temendo mais o místico
do que o livre pensador, a igreja declara heréticas as doutrinas desse frade
(1329).
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