sexta-feira, 21 de outubro de 2011

POESIA

Uma coisa é cantar a amada, outra, ai de mim, é cantar o culpado e oculto deus rio do sangue. Aquele que a amada reconhece de longe, seu amante, que sabe ele do senhor da volúpia que tantas vezes o assaltava em plena solidão, antes que a mulher amada o abrandasse, como se nem mesmo ela existisse? Como o deus emergia a irreconhecível face gotejante, invocando a noite para o delírio infinito. Ó Netuno do sangue, com o hediondo tridente e o obscuro vento de seu peito, concha enrodilhada! Ouve como a noite se recurva e se aprofunda. Não se origina em vós, estrelas, a alegria que o amante respira no rosto da amada? A compreensão profunda de sua face pura, não a tomou ele das constelações tranqüilas? Tu não foste, ai, sua mãe não foi, quem assim distendeu o arco excitado de suas sobrancelhas. Não foi ao teu encontro, jovem eterna e sensível, que se animaram esses lábios numa expressão fecunda. Crês que assim o agitaria teu passo ligeiro, ó tu que te moves como a brisa da manhã? Apavoraste, entretanto, seu coração: antigos terrores nele despertavam a esse embate. (...) Não amamos como as flores, depois de uma estação: circula em nossos braços, quando amamos, a seiva imemorial. Ó jovem, amávamos em nós, não um ser futuro, mas o fermento inumerável; não uma criança, entre todas, mas os pais, ruínas de montanhas repousando em nossas profundezas; e o seco leito fluvial das mães de outrora, e toda a paisagem silenciosa, sob o destino puro ou nebuloso: - eis aqui, amada, o que adveio antes de ti. E tu mesmo, que sabes? Despertaste no amado a pré-história obscura. Que sentimentos, em seres desaparecidos agitaste! Que mulheres, nele, te odiaram! Que homens sombrios em suas veias jovens despertaste! Crianças mortas para ti se volveram. Oh! Retoma diante dele, com doçura, uma tranqüila tarefa cotidiana – dá-lhe a paz de jardins e a outra face das noites. Retem-no. (“Elegias de Duino” – excertos – Rainer Maria Rilke).

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