sexta-feira, 28 de outubro de 2011

ADVOCACIA

O Supremo Tribunal Federal, na sessão de 26/10/2011, negou provimento ao recurso extraordinário em que se questionava a constitucionalidade da norma legal que exige o prévio exame para inscrição no quadro da Ordem dos Advogados do Brasil.
Os ministros são fortes na análise e fracos na síntese. Daí a extensão desmesurada dos seus votos. Essa deficiência tem sido atenuada pela salutar e inteligente prática de alguns ministros de abdicar da leitura dos seus votos por concordarem com o voto do relator. Em expressão oral, esses ministros destacam apenas os pontos não abordados pelo relator ou que o foram tangencialmente. Há julgamentos em que os ministros, sem tecer considerações, declaram de modo simples e direto a sua adesão ao voto do relator, o que poupa tempo do tribunal e do público.
No julgamento do recurso acima referido, o público testemunhou a leitura dos votos prolixos dos dois ministros mais antigos da corte. Os dois acrescentavam comentários ao texto. Reflexo da intenção de homenagear a OAB, por sua tradição na defesa das liberdades públicas no curso da história da república brasileira. Em diferentes trechos de cada voto, sem proveito algum para o decisum, notava-se a repetição de argumentos. Em distintos votos, leituras de artigos da Constituição ou da lei já lidos pelo colega. Repetição dispensável. No vezo do mútuo elogio, afirmavam o brilhantismo do voto do relator, que esgotara o assunto de modo magnífico. Ora, se houve esgotamento, qualquer acréscimo é supérfluo. No entanto, os ministros insistiam em se pronunciar.
Floreios e circunlóquios eram próprios da época do império, quando o volume de processos era pequeno comparado com o de hoje. Retórica anacrônica, fruto da vaidade, diletantismo de dias imperiais e dos primórdios da república, que ainda hoje sobrevive na atuação de alguns operadores do direito.
Embora sem pesar mais do que o voto do relator, os votos dos ministros Fux e Maria Lúcia tocaram pontos relevantes. O primeiro, para o aperfeiçoamento da democracia em nosso país; a segunda, para o bom entendimento da matéria sub judice.
Fux menciona a interessante marcha da norma legal em direção à inconstitucionalidade. Entende conveniente, para impedir essa marcha, que o setor público (magistratura, ministério público, defensoria pública) também participe do exame para inscrição de bacharéis no quadro da Ordem dos Advogados do Brasil. Afastar-se-ia a exclusividade da OAB no processo de seleção dos advogados (lei 8.906/94, 44, II). Tendo em vista ser o advogado indispensável à administração da justiça (CR 133), prestar serviço público e exercer função social (lei 8.906/94, 2º, §1º), o interesse na seleção não é só da OAB e sim de toda a sociedade. O Poder Judiciário tem especial interesse na seleção. Advogados bem qualificados contribuem para a boa prestação jurisdicional e para defender com probidade e coragem a liberdade e o patrimônio das pessoas tanto no setor público como no setor privado. Além disto, como integrantes da OAB, a qualificação dos advogados é exigência que decorre do seu vínculo com os objetivos institucionais: defender a Constituição, o Estado Democrático de Direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas (lei 8.906/94, 44, I). Com a presença do setor público no exame de ordem, guardar-se-ia simetria com os exames de admissão às carreiras de juiz de direito e de promotor de justiça, dos quais participa a OAB (CR 93, I; 129,§3º).
Maria Lúcia lembrou a todos que na faculdade formam-se bacharéis e não advogados. Sobre esse tópico, em aula magna proferida em março de 2009, na faculdade de direito da universidade Estácio de Sá, campus de Resende/RJ, adverti os estudantes com as seguintes palavras:
“Cumpre lembrar que o estudante não se forma em advocacia e sim em direito, com o título de bacharel, requisito básico para se dedicar às profissões jurídicas como a de advogado, delegado de polícia, promotor de justiça e juiz de direito. Para ingressar nessas profissões, o bacharel está obrigado a realizar exames e a prestar concursos públicos de provas e títulos. Sem um resultado positivo no exame, o bacharel não pode se inscrever na Ordem dos Advogados. (...) Conforme a tradição, o diploma de bacharel em direito habilitava o portador a exercer a advocacia, independentemente de qualquer formalidade. Com a criação da OAB pelo artigo 17, do decreto 19.408, de 18 de novembro de 1930, a inscrição tornou-se obrigatória. Bastava apresentar o diploma de bacharel em direito para efetivá-la. Com o advento da lei 4.215, de 27 de abril de 1963 (Estatuto da OAB), o bacharel dispunha de dois caminhos alternativos para obter a inscrição: (i) fazendo e comprovando o estágio ou (ii) prestando o Exame de Ordem (art.48, III). Com o agravamento da deficiência do ensino no Brasil, desde o grau primário até o universitário, a partir das décadas finais do século XX, o Poder Legislativo baixou lei condicionando a inscrição à aprovação no Exame de Ordem, sem a alternativa do estágio (inciso IV, do artigo 8º, da lei 8.906, de 04 de julho de l994 – novo Estatuto da OAB). Sem a inscrição, o bacharel não pode exercer a advocacia nem ingressar em carreira jurídica alguma.”
O bacharelado é conditio sine qua para ingresso em qualquer carreira jurídica: advocacia, defensoria pública, delegado de polícia, ministério público, magistratura, magistério. O diploma é fundamental, porém insuficiente. O candidato deve atender a outras exigências legais e constitucionais de ingresso em cada carreira. Há exigências comuns a todas: capacidade civil, título de eleitor, idoneidade moral, preparo teórico e prático verificado mediante exame ou concurso, compromisso perante o competente órgão de classe. Há exigências específicas: (i) para a advocacia: não exercer atividade incompatível com a profissão; (ii) para a magistratura: tempo mínimo de 3 anos de atividade jurídica; (iii) para o magistério: certificado de capacitação (especialização, mestrado, doutorado). No Estado da Guanabara, o título do magistrado (juiz ou desembargador) equivalia ao título de doutor para o ensino na faculdade de direito.
A necessidade de exame prévio para verificar a capacidade técnica, intelectual e moral do bacharel mostra-se razoável e sintoniza com o interesse público. A norma legal (lei 8.906/94, 8º, IV) que o exige, está em sintonia com a norma constitucional do livre exercício de qualquer profissão (CR 5º, XIII), que estabelece a condição: “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Nenhuma categoria organizada para fins lícitos seria prestigiada e respeitada se admitisse pessoas desqualificadas. A parcela indecorosa e despreparada constitui ameaça aos próprios integrantes da categoria.
A pessoa natural ou jurídica coloca nas mãos do advogado a defesa da sua liberdade, do seu patrimônio, dos seus direitos e interesses. O bacharel deve estar bem qualificado para esse múnus privado. A aprovação no exame é indicativa. Após a inscrição, o advogado pode revelar conduta incompatível com o exercício da profissão, possibilidade que ocorre também com o defensor público, com o promotor de justiça e com o magistrado, após o ingresso na carreira. A OAB dispõe do poder de instaurar sindicância e aplicar sanções ao advogado infrator, à semelhança das outras carreiras. A apuração de responsabilidade é própria do regime republicano democrático (CR 1º).
Na década de 70, exercendo a judicatura na cidade do Rio de Janeiro, vara de família, durante audiência, verifiquei evidente despreparo do advogado de uma das partes, declarei-a indefesa, suspendi os trâmites do processo até que fosse constituído novo patrono ou nomeado defensor público, e comuniquei o fato à OAB/RJ. Mesmo diante da probabilidade de a futura sentença ser desfavorável à parte, esta merecia defensor capacitado, em atenção ao princípio da igualdade processual e à garantia do contraditório e da ampla defesa.
O estatuto da advocacia determina a regulamentação do exame mediante provimento do Conselho Federal da OAB (lei 8.906/94, 8º, §1º). Prima facie, tal dispositivo afronta a norma constitucional que outorga, ao chefe de governo, competência privativa para regulamentar as leis (CR 84, IV). O legislador ordinário não pode subtrair do chefe de governo essa competência privativa. Se o fizer, violará o princípio da separação dos poderes, cometerá abuso do poder de legislar e dará azo ao efetivo controle judicial da constitucionalidade.
Acontece que o dispositivo legal em tela não subtrai do presidente da república o poder regulamentar. Nada impede a regulamentação da lei mediante decreto presidencial. A lei 8.906/94 (estatuto da advocacia) determina a regulamentação do exame e não a regulamentação dela própria. Regulamentação interna corporis. Competência administrativa do Conselho Federal exercida mediante provimento. Tribunais e procuradorias também regulam suas atividades em sintonia com a Constituição, leis e decretos. Exemplo: o concurso para ingresso na magistratura é disciplinado pelos órgãos de cúpula do judiciário federal e estadual. O citado e questionado dispositivo legal, portanto, conforma-se à prática jurídica vigente no Brasil.
Caso sobrevenha decreto presidencial regulamentando a lei 8.906/94, o provimento da OAB sobre o exame permanecerá em vigor se compatível; se incompatível, ajustar-se-á ao novo decreto. Em não sendo abusivo ou contrário ao decreto, o provimento permanecerá hígido no ordenamento jurídico. Se houver abuso na sua execução, a responsabilidade será apurada no devido processo legal.

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